Daphne,
e este é o nome fictício da paciente, procurou-me em dezembro
de 1983 relatando angústia, ansiedade e muitas dificuldades no
que se refere ao convívio social. Essas dificuldades caracterizavam-se
por uma intensa inibição e um medo indeterminado, chegando
a configurar-se como um verdadeiro estado de pânico fóbico
em situações nas quais era obrigada a relacionar-se com
outras pessoas, principalmente os seus colegas de trabalho. Apresentava
uma auto-estima muito baixa, julgando-se uma pessoa desinteressante e
repulsiva e procurava, a todo custo, evitar reuniões profissionais
e fugia de encontros como churrascos, festas e outros eventos sociais
de lazer coletivo. Nessas ocasiões sentia-se extremamente ansiosa,
manifestava taquicardia, extremidades frias, boca seca, sudorese profusa
e tinha ímpetos de fugir precipitadamente do lugar onde se encontrasse.
Além disso, sentia medos e terrores noturnos inespecíficos
e um constante sofrimento íntimo tão intenso que, por vezes,
achava que não o conseguiria suportar por muito tempo. Relatou
piora dos sintomas há alguns meses, acrescentando-se perda considerável
do apetite e emagrecimento. Havia, ainda, outros sintomas tais como distúrbios
gastrointestinais, cefaléia pulsátil acompanhada de náuseas,
dores musculares generalizadas e distúrbios dos ciclos menstruais
(polimenorréia). Quase não saía de casa e vivia em
um estado de tensão emocional constante.
Contava com cerca de vinte e oito anos de idade, era engenheira, solteira
e residia em companhia da mãe e da irmã mais nova. Revelava-se
uma pessoa extremamente tímida, muito contida e meticulosa, com
tendências obsessivas importantes e uma consciência moral
bastante exacerbada. Tinha uma visão de mundo fundamentalmente
pessimista, com tons de desconfiança e de amargura. Por outro lado,
demonstrava um temperamento delicado, afetuoso, sensível e naturalmente
afável, bondoso e altruísta. Apesar de tudo, preocupava-se
com o bem estar das outras pessoas e alegrava-se sinceramente com o sucesso
alheio. Era uma excelente profissional e evidenciava uma inteligência
certamente acima da média. Procurava distrair-se através
do exercício da pintura que praticava regularmente e a boa qualidade
de seus quadros, que pude apreciar depois, indicava um aprimorado potencial
artístico. No mais, não tinha nenhum amigo íntimo
e sua vida social resumia-se a insossas e desinteressantes reuniões
de família. O curso universitário havia se constituído
em um verdadeiro tormento para ela, considerando-se o enorme sacrifício
que representava conviver com seus colegas de turma e tolerar as brincadeiras
buliçosas de toda aquela gente jovem e ruidosa, além das
infindáveis desculpas que tinha que inventar para esquivar-se de
toda sorte de festas, reuniões e comemorações. Quanto
à sua vida sexual, nunca havia sequer namorado e jamais experimentara
qualquer tipo de contato físico com homens.
Na primeira consulta falou, ainda, de um medo indefinido de ‘perder
o controle’, da piora dos sintomas ao anoitecer e de um cansaço
excessivo que nunca a abandonava. Há cerca de oito anos submetia-se
a tratamento psicoterápico de orientação comportamental
e, até aquele momento, não observara nenhuma melhora de
seu estado. A pesquisa dos antecedentes pessoais não revelou nenhum
antecedente médico digno de nota ou acontecimento traumático
importante, exceto a morte do pai, vítima de um tumor cerebral,
que ocorreu quando ela tinha sete anos de idade. Naquela ocasião,
a paciente e sua irmã, um ano mais nova que ela, residiram durante
algum tempo na casa do avô materno.
A primeira impressão que tive, na
época, a respeito dessa paciente foi de que parecia tratar-se de
um quadro depressivo crônico, de longa evolução, incidindo
em uma personalidade anancástica, ou seja, dotada de importantes
traços obsessivos em sua constituição caracterológica.
As suas grandes dificuldades no relacionamento humano, a sua meticulosidade
e rigidez, o seu comportamento evitativo social, a sua visão de
mundo árida e desesperançada consistiam em características
que, à primeira vista, sugeriam uma constituição
de personalidade tal como a descrita antes. Entretanto, o potencial de
afetuosidade genuína que transparecia claramente em seus gestos
e nos seus relatos intrigou-me sobremaneira. Apesar de ser uma pessoa
muito bem educada, não detectei aquela amabilidade insípida,
formal, fria e vazia, quase ritualística, tão própria
dos anancásticos. Ao contrário, o seu modo de ser transmitia,
algumas vezes, a impressão de que era uma pessoa naturalmente vívida,
porém acentuadamente atemorizada e reprimida. De qualquer maneira,
sob o ponto de vista clínico, tratava-se, sem dúvida, de
um quadro depressivo com crises de pânico fóbico, mais precisamente
de fobia social, como patoplastia secundária. Pelo menos, tal foi
a minha concepção diagnóstica, naquela época,
a respeito do caso.
Receitei-lhe clomipramina na dosagem de 75 mg/dia e solicitei que retornasse
vinte dias depois. Voltou ao consultório na data marcada e relatou
melhora razoável, com aumento moderado da disposição.
No entanto, referiu piora do apetite e permanência quase inalterada
da angústia. Insisti durante algum tempo com a medicação,
porém devido ao aumento da ansiedade e à persistência
das crises de pânico fóbico, resolvi mudar a medicação
antidepressiva após dois meses de tratamento. Prescrevi maprotilina
na dosagem crescente de até 150 mg/dia e, com efeito, sentiu-se
melhor, ficando mais tranqüila durante o dia e com elevação
satisfatória do humor. Contudo, as dificuldades de relacionamento
humano persistiam, vivia com sobressaltos indefinidos e continuava se
julgando uma pessoa desprezível, fraca e sem nenhuma qualidade
aparente. Recusava todos os convites para reuniões de lazer, temia
que pudesse vir a se sentir mal, que talvez quisesse fugir do lugar onde
estivesse e que não o conseguiria, enfim, era assolada por toda
uma série de medos, insegurança e temores objetivamente
infundados. Continuou em tratamento medicamentoso comigo até que,
após a morte do avô materno, de quem gostava muito, em agosto
de 1985, houve recrudescimento importante do quadro depressivo. Em novembro
resolveu encerrar o tratamento psicoterápico que vinha fazendo
depois de concluir que não a estava beneficiando e, em dezembro,
começou a ser por mim atendida, duas vezes por semana, com vistas
a um tratamento psicoterápico de orientação psicodinâmica.
Durante os primeiros meses de atendimento, quase todas as sessões
eram preenchidas por infindáveis e monótonas auto-recriminações
que traduziam uma acentuada intolerância e desprezo em relação
a si mesma. Costumava dizer que era uma pessoa “burra”, pois
não conseguia exercer o controle voluntário sobre as situações
que a atemorizavam, enfim, que não conseguia mudar aquele estado
de coisas apesar de assim desejá-lo e decidi-lo. Eram bastante
evidentes as tentativas de solução racional para os seus
problemas. Tinha sérias dificuldades para reconhecer, identificar
e expressar os seus sentimentos e emoções, não conseguia
sequer chorar e, aparentemente, procurava viver sob a égide da
pura lógica. Geralmente convertia as suas dificuldades afetivas
em rígidas categorias morais, sentindo-se, freqüentemente,
uma pessoa egoísta, fraca e repleta de defeitos. Costumava projetar,
maciçamente, o seu auto-rigor nas outras pessoas e ficava bastante
ansiosa em relação à possibilidade de lhe exigirem
mais do que podia fazer. Os seus relatos faziam pensar em uma pessoa ‘plana’,
com uma existência mecânica e com um futuro inteiramente previsível,
sem irregularidades ou alterações de contorno e curso. Por
outro lado, em relação aos conteúdos de seus sonhos,
estes freqüentemente mostravam uma situação interior
bastante turbulenta, caótica e sombria. Freqüentemente sonhava
com a família, ora com o avô e com a avó maternos,
ora com mãe e com a irmã e, quase sempre, os conteúdos
oníricos retratavam explosões, acidentes automobilísticos
e cataclismos. Nessa época, além da interpretação
onírica, eu procurava desfazer, ativamente, as suas tentativas
defensivas de racionalização. Conscientemente, falava de
sua família como sendo constituída por pessoas severas,
impassíveis, respeitáveis, com grande desvelo pela integridade
moral, mas, na região inconsciente, deparava-se com abismos de
sombra e de morte. Pouco a pouco fui percebendo como sua família
possuía alguns modos peculiares de relacionamento com o mundo externo
e algumas disposições específicas de reação
que se constituíam em um verdadeiro agrupamento de leis, normas
e regras familiares. Por exemplo, valorizava-se sobremaneira a discrição,
a contenção emocional e afetiva, o formalismo vazio e cerimonioso,
desprezava-se tudo que fosse ruidoso, vívido, sincero, espontâneo
e natural. Dissimulavam-se sentimentos, evitavam-se cuidadosamente expressões
emocionais que correspondessem a algo agressivo, hostil ou erótico.
Fazia-se uma espécie de culto solene da dor e do sofrimento. Em
contrapartida, conspirava-se surdamente, engendravam-se intrigas desairosas
ocultamente, insultava-se em segredo, traía-se no silêncio.
Essa enorme ambigüidade familiar era retratada nitidamente por aquilo
que fluía da paciente e que se me apresentava nas sessões,
isto é, a procura consciente da impassibilidade da forma em contraste
com a turbulência explosiva das emoções inconscientes.
Passei, então, a comunicar-lhe as minhas impressões a respeito
dos mecanismos do relacionamento intra-familiar com base em seus relatos
o que, constantemente, causava-lhe surpresa e uma certa perplexidade.
Estava, portanto, elucidado o intenso sentimento de desconfiança
que a paciente nutria em relação a todas as pessoas que
dela se aproximavam, inclusive em relação a mim. Isso ficou
bem esclarecido à medida que fui efetuando a análise dos
elementos transferenciais que afloravam com o decorrer do tratamento.
Ora sentia que podia confiar em mim e ora se arrependia em fazê-lo.
Em uma determinada sessão, após relatar um sonho no qual
havia se sentido muito amedrontada, começou a ter lembranças
vagas de uma cena nebulosa que descreveu como se fora “portas se
fechando para ela com estrondo” e, em seguida, foi tomada por medo
indefinido e agudo. Era o primeiro fragmento, ainda difuso, de lembranças
de cenas infantis correspondentes a vivências subjetivas que havia
experimentado quando criança, todas elas de caráter traumático
e que agora começavam a emergir subitamente. Relacionavam-se, como
pude constatar depois, ao período de doença e morte de seu
pai, fase que passou na companhia dos avós maternos e dos tios.
Nessa ocasião, tinha sido muito maltratada e humilhada, principalmente
por uma de suas tias, devido ao fato de procurar defender sua mãe
de acusações e comentários maliciosos por parte da
família. Após a morte de seu pai, iniciou-se um movimento
familiar maciço para que sua mãe, na época uma mulher
ainda jovem e bonita, se comportasse como uma “senhora de moral
inatacável”, ou seja, para que não namorasse e nem
se divertisse. Minha paciente, então uma criança de oito
a nove anos sensível e inteligente, procurou a todo custo protegê-la
da sanha doentiamente moralista que se instalara no ambiente familiar
e que tinha como único objetivo controlá-la e fazê-la
abdicar inteiramente de perspectivas existenciais normais e legítimas.
A família fê-la sentir-se, então, como uma pessoa
diferente e errada que defendia certas atitudes ou desejos maternos considerados
moralmente condenáveis. A partir desse momento, consolidou-se um
pacto inconsciente que teria uma importância crucial para a futura
existência dessa moça, ou seja, foi instituído um
acordo com caráter de lei e de norma determinando o seguinte: ela
se tornava, de maneira definitiva, a perpétua guardiã e
protetora de sua mãe e irmã, renunciando à vida do
mesmo modo que a mãe fora obrigada a fazê-lo. Realmente,
tanto sua mãe como a irmã, apesar de trabalharem fora, terem
formação universitária e rendimentos suficientes,
pareciam pessoas muito dependentes, inseguras com vontade débil,
bastante sugestionáveis e influenciáveis, sendo que, em
relação à irmã, a paciente constantemente
a via em seus sonhos sob forma de um bebê indefeso e desprotegido.
Em casa, era a paciente que tomava todas as iniciativas da vida doméstica,
administrava e organizava o funcionamento de todos os setores e, nas férias,
planejava as viagens que, invariavelmente, faziam sempre juntas. Personificara,
decididamente, a instância da lei e da ordem, atributos perdidos
do longínquo e extinto pai. Sentia-se inteiramente responsável
pela felicidade e pelo bem estar da mãe e da irmã, seus
dois únicos e exclusivos objetos de preocupação e
de dedicação. Entretanto, o tratamento prosseguia e, nitidamente,
a atividade onírica se acentuava bastante.
Havia, basicamente, três categorias de sonhos que se apresentavam
alternadamente nessa época: 1 – Sonhos em que estava presente
a figura do avô materno, patriarca da família, com o qual
havia efetuado uma forte ligação afetiva e que sempre aparecia
como um homem triste, solitário e com determinações
vagas e fantásticas de salvar a família.
2 - Sonhos com a mãe e com a irmã, nos quais ora procurava
salvá-las de inúmeras ameaças e ora se via carregando
pesadas cargas em situações de mudanças de domicílio
num clima emocional de aflição e angústia.
3 – Sonhos com situações de pânico em que se
via tentando fugir, desesperadamente, de recintos fechados e sombrios.
Em uma ocasião, sonhou que estava tentando fugir de um castelo
medieval com masmorras de pedra fria e escura, que associava a sentimentos
de sofrimento e morte. Os significados desses sonhos eram bastante evidentes
e eu procurava verbalizá-los de maneira ativa e dinâmica.
Começaram a surgir evidências clínicas bastante promissoras.
A paciente iniciou a tomar consciência da intensa raiva, até
então reprimida, que tinha dentro de si e, gradualmente, foi-se
permitindo experimentá-la. Amiúde, sofria crises de pânico
durante as sessões e, não raramente, despersonalizações,
náuseas, tonteiras e cefaléias de intensidade quase intolerável.
Entrementes, a sua vida cotidiana melhorava flagrantemente, sentia-se
mais tranqüila, as suas ações começavam a tornar-se
mais espontâneas e naturais, passou a aproximar-se de seus colegas
de serviço, a sair com eles, a participar de festas e reuniões
sociais. Houve remissão completa das crises de pânico fóbico
durante situações de exposição social fora
da família. Tornou-se cada vez mais comunicativa, começou
a ser bastante estimada pelos seus colegas de trabalho, fez amizades gratificantes
e iniciou a experimentar sensações e sentimentos eróticos
em maior grau. Pode parecer estranho, mas até então os sentimentos
eróticos dessa moça estavam tão reprimidos quando
os seus sentimentos de raiva. Afinal, havia abdicado inteiramente da existência
comum, julgava-se infalível, sentia que era capaz de prever e controlar
os seus sentimentos mais íntimos, enfim, sentia-se como se não
fosse humana. Em dezembro de 1987 resolveu expor os seus quadros, fato
que indicava o grau de melhora que havia obtido, isto é, finalmente
estava se sentindo mais à vontade para se expor às outras
pessoas, para correr os riscos naturais inerentes ao intercâmbio
humano. Ao lado disso, passei a observar uma mudança notável
em seus gestos, agora vívidos, em sua mímica, agora descontraída
e expressiva e, fato extraordinário, uma transformação
significativa em suas vestes habituais e na conformação
de seu corpo, que começava a se delinear com linhas francamente
femininas. No início do tratamento, era uma moça sem muitos
cuidados, muito magra e franzina, com grandes olhos assustados e agora
a impressão que eu tinha é que começava a se instalar
em seu interior um esboço tímido de verdadeira e plena feminilidade.
Entretanto, as auto-recriminações continuavam, sendo induzidas
pelo sentimento de culpa motivado pela mudança de sentimentos e
comportamentos não só relacionado à sua mãe
e irmã, como também em relação a quase toda
a família. Passou a ser difícil para ela suportar reuniões
familiares, assim como também lhe era difícil dissimular
certos sentimentos de raiva e desprezo dirigidos a certas pessoas da família.
Não raro demonstrava impaciência e intolerância em
relação a esses familiares. Culpava-se por isso. Os seus
interesses voltavam-se, agora, a outras pessoas e a outras expectativas
existenciais. O equilíbrio intra-familiar, mantido até então
às custas de uma forte repressão e supressão de sentimentos,
começou a ser rompido. Sentia que estava abandonando a mãe
a irmã, julgava-se uma pessoa má, egoísta e injusta.
Entrementes, à medida que o tratamento analítico aprofundava-se,
foram surgindo os primeiros elementos de um tímido, mas progressivo,
amor transferencial. Simultaneamente ao surgimento de novas sensações
e fantasias eróticas e amorosas, passou a reclamar e a queixar-se,
a princípio vagamente e depois diretamente, de meu distanciamento
afetivo e de minha isenção para direcionar certas decisões
e ações de seu cotidiano. Chegou a sonhar, em certa ocasião,
que estava deitada em uma mesa operatória em um bloco cirúrgico
e que eu examinava seus genitais minuciosamente com uma lupa. Sentia-se
ultrajada e humilhada e, não raro, verbalizava sua indignação
pelo fato de, durante as sessões, eu estar facultado do poder de
“devassá-la”, de “desrespeitá-la”,
ou seja, de desvendar seus sentimentos mais íntimos e secretos
e, após o término de seu horário, “mandá-la
embora e entregá-la à própria sorte sem nenhuma preocupação
com seu bem estar e em nada sensibilizado com seu enorme sofrimento”.
Assim, no interior da relação transferencial, ela pôde,
gradualmente, projetar seu manancial de impulsos sexuais e agressivos
para que fossem adequadamente simbolizados e terapeuticamente elaborados.
A sua intensa atividade onírica nessa época mostrava-me,
juntamente com seu avô materno, como principais protagonistas de
complexos, vertiginosos e tumultuados enredos que sugeriam, disfarçada
e metaforicamente, a expressão de provável estase libidinosa
de caráter edipiano. Isto me fazia refletir e constatar, na prática,
como era verdadeira aquela premissa freudiana de que quanto mais acertadas
e oportunas fossem as interpretações do material onírico
efetuadas pelo psicanalista durante o processo terapêutico, maior
e mais rápida seria a melhora clínica do paciente, desde
que o conteúdo metafórico presente nos sonhos equivaleriam
a verdadeiras cidadelas de defesa neuróticas correspondentes aos
conflitos inconscientes e a sua correta interpretação, resultando
em ‘insights’ importantes, seria como uma ‘tomada’
vitoriosa desses núcleos defensivos da neurose como um todo.
Ao mesmo tempo, surgiam algumas novidades alvissareiras em sua vida objetiva.
Matriculou-se, em meados de 1990, em uma escola de dança e, logo,
de maneira surpreendente, mostrou grande habilidade para praticar os mais
variados passos, tornando-se uma das alunas mais expressivas e elogiadas.
Não demorou muito e foi convidada para participar de uma apresentação
de gala na escola e seu número artístico foi muito elogiado
por toda a platéia de professores e demais convidados. Após
um ano, foi convidada para dar aulas de dança na escola, mas recusou.
Havia constituído, ao longo desse tempo, um grupo considerável
de conhecidos e amigos fora do ambiente de trabalho com os quais passou
a sair e divertir-se. Os primeiros flertes e namoricos aconteceram nessa
época e, no final daquele ano, teve sua primeira experiência
sexual consumada. No entanto, após o namorado abandoná-la
pouco tempo depois, sofreu grave crise depressiva que exigiu atendimentos
quase diários e dose alta de antidepressivos tricíclicos
para sua recuperação.
Continuou depois, com entusiasmo, a freqüentar as aulas de dança
e usufruir o ambiente festivo de bailes, eventos e apresentações
artísticas que aconteciam amiúde. Até o ano de 1993
teve mais três namoros, cujos términos foram seguidos de
intenso sofrimento íntimo entremeado por sentimentos de abandono
e de rejeição que terminaram por desencadear recorrências
depressivas de intensidade moderada. Sua vida sexual era insatisfatória,
nunca tendo experimentado orgasmo vaginal. Entretanto, a masturbação
era agora uma atividade rotineira, ao contrário de antes, quando
praticamente inexistia.
Por outro lado, em seu trabalho, apesar de sentir-se bem mais desenvolta
socialmente, ainda julgava-se uma funcionária “medíocre”,
sentia esboços de pânico antes das reuniões de serviço
e, definitivamente, considerava “impossível” apresentar
relatórios de temas técnicos em público. Nas vezes
anteriores que havia sido obrigada a fazê-lo, sentira-se tão
ansiosa que “o coração quase saíra pela boca”,
gaguejara durante a apresentação e estava convicta de que
os colegas de trabalho haviam notado o seu embaraço e o tremor
de suas mãos. Temia que pudesse passar mal durante as apresentações,
que viesse a sofrer um “desmaio”, enfim, que fizesse um “papel
ridículo” e que fosse vítima de comentários
maldosos e de toda sorte de chacotas. A prescrição de medicamentos
beta- bloqueadores simpaticolíticos juntamente com altas doses
de clomipramina, associada a algumas técnicas comportamentais simples,
também não se mostraram eficazes clinicamente para o alívio
da intensa ansiedade antecipatória.
No final de 1993 conheceu um rapaz na escola de dança que continuava
freqüentando. Tratava-se de um homem maduro, bem estabelecido profissionalmente
e que, de imediato, interessou-se vivamente por ela. Logo começaram
a namorar seriamente. Ele era uma dessas almas fleumáticas e plácidas
e, ao mesmo tempo, singelamente afetuoso e bondoso, embora fosse pessoa
de poucas palavras, tímido e introspectivo. Nutriu por ela, desde
o início, uma dedicação incondicional, devota e silenciosa.
Em junho de 1994 pediu-a em casamento e, com efeito, em janeiro de 1995
casaram-se no regime civil e comemoraram o evento com uma festa em grande
estilo.
Estava, então, concluído, com o matrimônio, uma etapa
vital de superação de obstáculos neuróticos
que, até então, haviam bloqueado o desenrolar de seu crescimento
e a obtenção de uma felicidade natural e legítima.
Tinha sido desfeito, finalmente, o pacto neurótico familiar inconsciente
que a condenara a ser uma menina para sempre, sem outras perspectivas
de vida que não fossem aquelas relacionadas aos cuidados e zelo
pela felicidade de sua mãe e irmã.
Entretanto, como persistissem alguns sintomas depressivos leves e sintomas
fóbicos sociais, agora significativamente restritos ao seu desempenho
no serviço, mais especificamente relacionados a apresentações
técnicas que tinha que cumprir no trabalho e a dúvidas e
inseguranças quanto ao seu verdadeiro valor como profissional,
reiniciei paroxetina – droga que havia sido lançada no mercado
em 1993 - em meados de 1998. Havia tentado introduzir esse medicamento
em 1995, mas ela não o havia tolerado satisfatoriamente, tendo
sido obrigado a suspendê-lo três meses depois devido à
aparente interferência na obtenção de orgasmo vaginal.
Isso foi assaz relevante, desde que após algum tempo de casamento,
começara a fruir orgasmos vaginais com certa facilidade nas relações
sexuais rotineiras.
Com efeito, desde então, a vida de Daphne tem se desenrolado de
um modo bastante satisfatório. Viaja com frequência com o
marido a passeio, relaciona-se afetivamente muito bem com ele e, exceto
a frustração de não ter conseguido engravidar, parece
estar feliz. No trabalho, mudanças notáveis ocorreram. Foi
promovida a um cargo de chefia e as dúvidas e inseguranças
em relação a seu valor como profissional dissiparam-se completamente.
Atualmente é a responsável por um grande projeto na empresa
e ministra rotineiramente cursos de treinamento técnico na capital
e no interior, inclusive para platéias numerosas. Esporadicamente,
sofre discretas recorrências depressivas, o que obriga aumentar
a dose de paroxetina para 40 mg/dia, diminuindo-a para 30mg/dia logo em
seguida.
Hoje, quase vinte anos depois do início
do acompanhamento terapêutico de Daphne, analisando-se pormenorizadamente
a progressão de sua vida, a evolução clínica
de sua doença e a melhora visível de sua sintomatologia,
podemos dizer que temos mais indagações do que propriamente
respostas seguras para o que, na verdade, sucedeu no decorrer de seu tratamento.
Em primeiro lugar, no que se refere ao seu diagnóstico, hoje poderíamos
estabelecer com segurança, apoiados no CID-10 e DSM-IV, um diagnóstico
de Transtorno de Ansiedade Social ou Fobia Social coexistindo com uma
Distimia de longa evolução e fases de Depressão Dupla,
ou seja, a irrupção esporádica de fases de Depressão
Maior sobrepondo-se à evolução crônica e ininterrupta
da Distimia. Além disso, podemos suspeitar de uma personalidade
pré-mórbida com traços importantes do grupo “C”
do DSM-IV, isto é, com características temerosas e fóbico-evitativas
em sua constituição caracterológica.
Por outro lado, analisando-se dinamicamente todos os eventos psicopatológicos
ou não da vida de Daphne, para além de qualquer visão
categorial ou criteriológico-nosográfica estática
e compartimentada, ou seja, observando-se o transcurso natural de sua
vida, de seu sofrimento, de seus medos, inibições, desejos
e fantasias, chegamos a algumas conclusões.
No caso em pauta, observamos como a paciente
vinha sofrendo com as suas crises de pânico fóbico que, na
verdade, representavam o imenso pavor que sentia em ingressar na vertente
da vida, ou seja, de usufruir uma plenitude existencial gratificante e
satisfatória. O pacto familiar inconsciente ordenava que ela renunciasse
totalmente à vida e à existência, assemelhando-se,
em essência, a algo bem próximo da morte. Isso se tornava
bem visível pela forma mecânica, monótona e repetitiva
com que expressava os seus relatos e as suas auto-recriminações,
além da vazia imutabilidade de seu existir. Havia, sem dúvida,
alguma coisa inorgânica, ressequida e embalsamada em sua mímica,
em seus gestos e em sua fala, contrastando, extraordinariamente, com os
relâmpagos fugazes de vivacidade e de naturalidade que se lhe escapavam
de modo involuntário. As crises de pânico fóbico eram
ruidosas alegorias do temor profundo de deixar emergir a seiva de vida
orgânica à superfície silenciosa e artificialmente
inabalável e impassível de seu ser. Pois, que o pensamento,
tendo atribuído uma existência real a uma idéia, tem
a necessidade de ver essa idéia viva, e só o consegue personificando-a.
Desse modo, podemos supor, com certa segurança teórica,
que essa paciente não melhoraria de seus sintomas sem um tratamento
psicodinâmico conduzido com alguma paciência e dedicação.
Uma prova dessa hipótese, aparentemente, foi a resposta clínica
insatisfatória que apresentou mesmo após a administração
prolongada de um medicamento antidepressivo, a clomipramina, que seria
provido de uma ação terapêutica especifica para o
tipo de sintoma que apresentava. Esses sintomas agudos, assim como toda
a malha invisível que enformava e sustentava a rigidez existencial
da paciente só poderiam ser dissipados através da revelação
íntima e integral de sua própria existência à
ela mesma, com os subseqüentes e terapêuticos ‘insights’
ou auto-percepções. Creio que somente essas revelações,
percebidas pela paciente com sentimentos de surpresa e perplexidade, poderiam
induzir alguma mudança favorável no seu sobrecarregado equilíbrio
psíquico e ocasionar, como conseqüência, transformações
existenciais saudáveis e promissoras. E, com efeito, isso ocorreu
de maneira lenta, mas, nem por isso, de forma menos espetacular e notável
com o decorrer do tratamento psicoterápico. Com relação
ao tipo de sintomas que apresentava, poder-se-ia dizer que eram, em sua
natureza, inteiramente consoantes com as suas tendências constitucionais
caracterológicas e retratavam, nitidamente, o drama conflituoso
que era vivido na obscuridade de seu psiquismo. As suas características
latentes de personalidade caracterizadas por altivez, orgulho, meticulosidade,
severidade e escrupulosidade moral, além de tendência à
evitação e esquiva, foram acentuadamente realçadas
pelo conflito nuclear inconsciente, o qual poderíamos esquematicamente
conceituar como sendo equivalente a complexos simbólicos constituídos
por sentimentos e idéias sobrevalorizadas oriundas de vivências
subjetivas correspondentes a determinadas circunstâncias situacionais
muito importantes em sua vida.
É bastante provável que determinados traços peculiares
de personalidade norteiem e elejam certas vivências circunstanciais
específicas, cristalizando-as sob a forma de complexos simbólicos
hiperdimensionados dotados de alta valência energética capazes
de inibir e (ou) causar disfunções em circuitos neurais
importantes, sistemas moduladores de neurotransmissores e conexões
neuro-endócrinas. Também é bastante provável
– e atualmente já contamos com evidências oriundas
de neuro-imagem comprovando tal fato - que as psicoterapias, sejam elas
de orientação psicodinâmica, cognitiva ou comportamental,
induzam mudanças reparadoras nesses citados distúrbios ou
disfunções.
De maneira geral, devemos sempre ter em mente que a emergência de
sintomas psiquiátricos, em especial daqueles denominados neuróticos,
obedecem a uma estreita relação compreendida entre vulnerabilidade
específica de personalidade e estressores psicossociais, ou seja,
entre a herança, eminentemente biológica, e os estímulos
ambientais. Dito de outro modo, cada indivíduo lida à sua
maneira com as vivências traumáticas que irrompem em cada
uma de suas trajetórias biográfico-existenciais, ou melhor
dizendo, o que é muito importante para uma pessoa não o
será tanto para outra, e assim por diante.
Em nosso caso, Daphne talvez tenha desenvolvido e manifestado sintomas
fóbico-sociais em decorrência da interação
de sua própria caracterologia com certas circunstâncias biográfico-existenciais
que se mostraram especialmente traumáticas para ela. Tais sintomas,
por seu turno, eram perfeitamente consonantes com suas tendências
constitucionais caracterológicas e retratavam, alegoricamente,
o drama conflituoso que era vivido na obscuridade de seu psiquismo. Como
já dissemos antes, o seu modo de ser naturalmente altivo, severo,
meticuloso e exigente constituiu-se em terreno fértil para que
vicejassem profundos e enraizados sentimentos de vergonha e de humilhação
– que alcançaram uma intensidade clínica fóbico-ansiosa
- desencadeados e sobrevalorizados pelas vivências traumáticas
infantis, além de propiciar um rígido e inflexível
cumprimento do dever neurótico em relação à
mãe e irmã.
Por último, restam algumas indagações que dificilmente
serão respondidas de maneira conclusiva.
Nos últimos quatro anos, a paciente fez uso contínuo de
paroxetina, droga que, de acordo com vários estudos recentes controlados,
tem se mostrado muito eficaz no alívio dos sintomas do Transtorno
de Ansiedade Social ou Fobia Social. Sem dúvida, Daphne manifestou
melhora significativa dos sintomas de ansiedade social nesse período,
mas até que ponto o medicamento realmente agiu? O benefício
clínico teria sido potencializado pela atenuação
dos traços de personalidade e dos sintomas agudos promovidos pela
psicoterapia psicodinâmica a longo prazo?
A droga, por sua vez, teria facilitado as elaborações simbólicas
do processo psicoterápico através da atenuação,
a longo prazo, dos traços anancásticos da paciente?
O que teria sido da vida de Daphne, caso não tivesse se submetido
a tratamento psicoterápico psicodinâmico e desvendado sua
neurose familiar? Será que o desenrolar natural de sua vida, à
mercê de eventos previsíveis ou inesperados, teria desembocado
em uma existência pelo menos em parte gratificante?
Evidentemente, somos incapazes de responder
convincentemente a essas indagações. Entretanto, diante
de nossa experiência em relação ao caso, podemos afirmar,
com segurança, que somente através do estabelecimento de
uma relação médico-paciente calcada na confiança,
respeito e dedicação é que o médico poderá
alcançar algum sucesso terapêutico em casos tão difíceis
e complexos como este. Além disso, torna-se necessária uma
visão teórica desapaixonada e desprovida de qualquer ideologia,
uma abordagem que consiga conciliar aspectos fenomenológico-clínicos
a uma dimensão psicodinâmica inteligível e próxima
da vida real e do conhecimento comum. Somente dessa maneira poder-se-á
efetuar a prática de uma medicina psicanalítica, ou psicanálise
médica, que se expresse de maneira inteligível e que se
mostre eficaz para o alívio do sofrimento íntimo desses
pacientes.
GUSTAVO FERNANDO JULIÃO DE SOUZA
www.gustavojuliao.med.br
|