Os Estados Psicóides - Caso Clínico: "A Professora de História"

Devido ao interesse que um artigo de minha autoria vem despertanto em nosso meio osiquiátrico (publicado em junho/97 pela "Prática Psiquiátrica" - Lab. Jassen - sob o título "Uma Interpretação Dimensional dos Transtornos Psicóticos - Da Tipicidade à Atipicidade"), fui gentilmente convidado a desenvolver alguns aspectos do tema já no primeiro número deste periódo. Entretanto, se naquela publicação fui obrigado a ser consico devido à falta de espaço, talvez tenha que sê-lo mais, agora, em decorrência das normas editorias que naturalmente limitam a dimensão do texto. Contudo, como em Psiquiatria nada é mais rico e ilustrativo em termos de conhecimento do que a  presentação de um caso clínico interessante e desafiador, fá-lo-ei em seguida, pretendendo que o leitor acompanhe, passo a passo, os meandros fenomenológicos da formulação diagnóstica e das controvérsias teórico-práticas que sempre acompanham o tratamento de casos atípicos.

Descrição do caso

Trata-se de uma paciente que chamaremos de V., 32 anos, solteira, professora de História. Apresentava, em novembro de 1989, quadro depressivo com episódios muito freqüentes de despersonalização e desrealização, além de crises imotivadas de explosividade e agressividade verbal dirigida aos familiares. Estes relataram que V. ficava a maior parte do tempo trancada em seu quarto e, quando de lá saía, passava a insultar e ameaçar a todos, principalmente seu cunhado que nunca nada lhe fizera. Apresentava, também, alternado com as explosões de cólera, choro contínuo e convulso, denotando, por vezes, um semblante transtornado com a expressão de olhar brilhantemente fixa, recusando-se a conversar com quem quer que fosse.

Nessas ocasiões, ao mesmo tempo em que se sentia distante do mundo exterior, era presa de forte angústia e ansiedade e, então, alguns acontecimentos desagradáveis de seu passado biográfico, a maioria deles desprovidos de importância decisiva em sua vida, passavem a ocupar seu psiquismo de forma obsessiva, repetitiva e persistente, induzindo grande sofrimento íntimo. Nesses momentos, vivenciava um ódio inusitado dirigido a algumas pessoas da família, além de fantasias e impulsos altamente agressivos e destrutivos que, ocasionalmente, culminavam em ruidosas explosões de cólera e rompantes impetuosos que surpreendiam a todos. Ao primeiro exame e subseqüentes entrevistas, não detectei atividade delirante e/ou alucinatória, a consciência era clara, a linguagem caracterizava-se por rica fluência verbal, o pensamento e demais funções psíquicas mostravam-se normais. Tive a impressão de tratar-se de pessoa com traços esquizóides, muito reservada e contida, mas notei uma singular frieza afetiva envolvendo seus relatos, inclusive aqueles que, forçosamente, deveriam induzir mobilização emocional importante. Isto era, de certo modo, acentuado por uma leve afetação que impregnava seu modo de falar e sua espontaneidade gestual era ligeiramente embotoada por uma vaga conotação mecânica. Essa impressão de falta de naturalidade era reforçada pela expressão do olhar e pela mímica, ambas pouco expressivas. Esse conjunto de impressões clínicas, como um todo, coincidia mais com a cçássica incoerência ou discordância significativa na sintonia afetiva, pairando, no contato verbal, apenas uma leve sensação de estranheza.

Antecedentes Pessoais

Vários tratamentos psiquiátricos desde a adolescência, inclusive ECT aos 17 anos. Provavelmente, transtorno distímico desde a infância com acessos recorrentes de depressão dupla (sobreposição de fase depressiva maior à condição distímica).

Timidez excessiva na infância e adolescência. Temperamento contemplativo e introvertido. Pouca necessidade de vida amorosa. Curso de pós-graduação no exterior e empregos interrompidos devido às crises depressivas e à explosividade, apesar de seu desempenho intelectual e profissional ser considerado excelente.

Antecedentes Familiares

Alguns casos psiquiátricos na família compatíveis com transtornos de personalidade. Pai tem o diagnóstico de "esquizofrenia".

Tratamento e Evolução Clínica

Não houve melhora dos sintomas com administração de imipramina e maprotilina. No auge das crises, prescrevi palmitato de pipoazina (25mg IM quinzenalmente) com resultados surpreendentemente positivos a partir do terceiro dia após a primeira dose. Houve remissão dos sintomas agudos, persistindo depressão leve que melhorou com a introdução de clorimipramina (50mg/dia). A partir de então, o quadro clínico evoluiu muito bem, com o desaparecimento das crises agudas e das vivências anômalas, inclusive dos episódios de despersonalização e de estranheza do percebido. Há quatro anos não usa a pipotiazina e há cerca de três anos substituí a clorimipramina pela paroxetina (40mg/dia) com bons resultados. Atualmente trabalha gerenciando um pequeno estabelecimento comercial de sua propriedade.

Impressão Diagnóstica

Quadro psicótico atípico (estado psicóide) em paciente com algumas características clínicas de Transtorno Esquizóide da Personalidade.

Discussão

V. apresentava, desde a infância, além de distimia, acessos melancólicos periódicos graves. Entretanto, as crises mais sérias, caracterizadas por cólera imotivada, agressividade despropositada, isolamento, inadequação e vivências anômalas, haviam se agravado muito há algum tempo. O que significaria tudo isso? Em primeiro lugar V. possuía uma estrutura caracterológica complexa, aliando alguns traços esquizóides (tendência à vida solitária, temperamento contemplativo e introvertido) a outros de caráter limítrofe (grande vulnerabilidade a perdas e separações, dificuldade extrema em concretizar qualquer projeto de vida, impulsividade). De mais a mais, tratava-se de pessoa muito conscienciosa e escrupulosa, de índole boa e de constituição tímida e delicada. Pois bem, penso que - considerando o fato de que era bem estabelecido o diagnóstico de transtorno de humor unipolar (depressivo) - seria razoável supor que agora estaria apresentando fases de elevação anormal do humor (hipomania ou hipertimia) com morfologia clínica atípica. Mais precisamente, as crises agudas seriam compatíveis com Transtorno Misto do Humor, apresentando-se elementos semiológicos depressivos (ruminações do passado, despersonalização e desrealização) simultaneamente aos hipertímicos (irritabilidade, cólera e explosividade). Por outro lado, a estrutura caracterológica de V.,  notadamente os traços esquizóides, agia como uma espécie de "filtro" ou "prisma caracterológico", imprimindo no transtorno básico de humor as suas cores singulares, conferindo-lhe assim, um aspecto clínico esquizomorfo. Este caso é apenas um exemplo dos muitos quadros atípicos que venho observando ao longo dos anos na clínica diária e que denomino estados psicóides. Acredito, particularmente, que tais quadros clínicos atípicos representem a evolução incompleta e malograda de nosologia correspondente ou transtorno de humor típico ou a um outro de caráter esquizomorfo. Assim, a morfologia clínico-fenomenológica desses quadros correspoderia a vivências anômolas abortadas oriundas de sintomas schneiderianos ou afetivos típicos ou, ainda, de ambos simultaneamente. Finalmente, considerando-se que essa expressão psicopatologicamente prevalente corresponde a sintomas frustos e abortados de quadros psicóticos bem definidos, é de se esperar que sua evolução clínica seja também frusta e malograda, ocasionando um decurso clínico relativamente favorável e benigno.

 

Gustavo Fernando Julião de Souza
Preceptor da Residência de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da UFMG.