Osvaldo é um homem de meia idade que me procura no consultório em meados de 1990. Está acompanhado da esposa e mostra-se visivelmente constrangido, esfregando as mãos nervosamente e sempre cabisbaixo. A fala é titubeante, chegando a gaguejar. Diz não sentir nada, “que bobagem, não precisava chegar a esse ponto, consultar com psiquiatra...” Sorri desconcertado e fica olhando estupidamente para o chão. A esposa vem em seu auxílio: “Dr., ele não queria vir de jeito nenhum, mas está precisando...não sai mais de casa, ele era diferente, ativo, dinâmico, independente, mas agora até para ir à esquina lá perto de casa precisa que alguém o acompanhe”. Começo a conversar com o paciente e descubro que ele é comerciante, tem dois filhos adolescentes e que trabalha com venda de autopeças. Levava uma vida normal, sem maiores problemas até há dois anos atrás. Nessa época, em uma determinada noite, havia acordado durante a madrugada passando mal. Despertara subitamente, atordoado e, ao mesmo tempo, extremamente assustado, suando muito, com uma sensação de sufocamento insuportável, sentindo palpitações, mãos e pés gelados e uma indizível sensação de morte iminente. Tinha certeza de que estava sendo vítima de um ataque cardíaco e, apesar da dificuldade de comunicar-se, pediu, com fala trôpega e gestos de agonia, que o levassem imediatamente a um pronto socorro. Levaram-no às pressas a um hospital com serviço de urgências cardiológicas e, em lá chegando pouco depois, para surpresa dos familiares, começou a melhorar. Quando o médico o examinou, a crise já havia passado e o eletrocardiograma revelou apenas um discreto aumento da freqüência cardíaca (taquicardia sinusal). O facultativo olhou-o demoradamente, auscultou-o novamente e, após algum tempo, sentenciou: “’Isso não é nada, trata-se de uma crise de ansiedade, nada de grave...”. Receitou-lhe um ansiolítico, Lexotan de 3 miligramas, “tomar um comprimido à noite” e despediu-o sumariamente sem maiores explicações. Osvaldo voltou para casa abatido, cansado e, predominantemente, inseguro. A forte crise de que fora vítima deixara-lhe uma forte impressão. Sempre fora homem resoluto, de temperamento otimista e dotado de grande capacidade de trabalho. Além disso, era pessoa sociável, comunicativa e seus clientes conheciam-lhe bem o gosto quase proverbial por pescarias, jogos de “truco”, brincadeiras e piadas de todo gênero. Era naturalmente gentil, cordial e sorridente, gabava-se de ter muita boa saúde e ria das doenças e achaques alheios, que atribuía à “falta de diversão”, denominando-os “encucações”. Os sofrimentos psíquicos, tais como depressão e ansiedade, tão comuns nos dias de hoje, chamava-os, sem nenhuma cerimônia, de “frescuras” e “doenças de ricos”. Freqüentemente contava anedotas de psiquiatras, os quais denominava “médicos de loucos”. Mas, agora, sentia-se vagamente ameaçado e amedrontado. A crise aguda que sofrera deixara-lhe uma constante secura na boca, uma sensação de pêlos eriçados e um indefinível sentimento de apreensão que nunca o abandonava. Passou a ter dificuldades para conciliar o sono. Tinha medo de que viesse a sofrer uma outra crise semelhante durante o sono, à semelhança da primeira. E ao despertar, sentia-se acompanhado por essas incômodas sensações, via-se como que desprotegido e estranhamente vulnerável. Dez dias depois, estando ele em uma fila de supermercado, sentiu subitamente que estava na iminência de sofrer uma nova crise aguda. Estava aguardando a sua vez, aparentemente tranqüilo, quando, repentinamente, sentiu o sangue fugir-lhe, o coração bater rapidamente e a voz faltar-lhe, em um sufocamento. A esposa dissera-lhe que tinha ficado muito pálido e com a expressão facial assustadiça e perplexa. Saiu do local rapidamente e foi levado novamente ao serviço de urgências cardiológicas. Dessa vez foi internado pelo médico de plantão do hospital, com suspeita de infarto agudo do miocárdio. Entretanto, o diagnóstico inicial não se confirmou. Apesar disso, recebeu prescrição de medicamentos próprios para pacientes cardiopatas e recebeu alta hospitalar três dias depois, sentindo-se melhor. A partir de então, apesar de usar regularmente os medicamentos receitados pelo médico cardiologista, Osvaldo foi-se, cada vez mais, sentindo-se pior. A incômoda sensação de insegurança mais e mais se acentuava. Esporadicamente, notava taquicardia e grande sensação de desconforto. Passou a restringir suas saídas de casa. A sua atividade profissional limitava-se e deteriorava-se progressivamente. Começou a tentar resolver todos os negócios por telefone, pois assim não teria que sair e arriscar-se a passar mal na rua. Essa era, atualmente, a sua grande preocupação: precisar sair de casa e correr o risco de sentir-se mal, sozinho, não tendo ninguém para socorrê-lo. Tal pensamento causava-lhe calafrios e um mal estar na boca do estômago. E, no entanto, não conseguia pensar em outra coisa. Sentia-se mudado. Agora recusava todos os convites para pescarias e viagens, inventando toda a sorte de desculpas. Esquivava-se de festas e reuniões sociais. Tornou-se sombrio, assustadiço e taciturno. Enquanto isso, continuava a usar medicamentos para doenças cardíacas sem resultados, sentia-se seriamente enfermo. Os ataques de pânico, embora mais brandos, persistiram, realimentando seus medos e apreensões. A última crise havia ocorrido por ocasião de um passeio que estava fazendo com a família no “shopping”. Tinha se sentido mal subitamente e voltado às pressas para casa. Disse-me à consulta: “Pois é Dr., nem passear com minha família eu consigo mais...desse jeito, não vale a pena viver...eu mudei, antes vendia saúde, hoje estou medroso, acovardado...” Com efeito, Osvaldo havia desenvolvido, ao longo da penosa doença que o acometia, aquilo que os especialistas chamam de síndrome de desmoralização, ou seja, uma diminuição progressiva de sua auto-estima e amor próprio. Sentia-se inseguro, medroso e fracassado, os negócios não iam bem, os fornecedores já não confiavam nele como antes, perdeu algumas representações, os ganhos financeiros minguavam. Escondia-se dos amigos e conhecidos, evitava a todos, preferia ficar sozinho dentro de casa, o único lugar onde ainda se sentia um pouco seguro. Por algumas vezes, algum amigo recomendava-lhe que consultasse outro médico, que fosse ao psiquiatra, mas ele se negava, renitente. Considerava que ficaria mais desmoralizado caso todos ficassem sabendo que havia consultado com um “médico de loucos”. Só lhe faltava essa, dizia contrariado, consultar com um psiquiatra, ora, pensariam que tinha ficado “doido”. No entanto, como a situação de Osvaldo foi se tornando cada vez mais grave, sua esposa o levou praticamente à força em meu consultório, desde que meu nome havia sido indicado por um cliente que já tinha se tratado comigo e que, também, conhecia a família. Percebi, imediatamente, a gravidade do caso e concluí que não havia mais tempo a perder. Por outro lado, tornava-se necessário lutar contra os preconceitos do paciente em relação aos seus próprios sintomas, que analisava sob o ponto de vista estritamente moral, julgando-se um homem “fraco” e “covarde”. A primeira providência a ser tomada seria convencer o paciente de que era portador de uma doença psiquiátrica, ou seja, de um Transtorno de Ansiedade, mais especificamente denominado Transtorno do Pânico, distúrbio relativamente comum, mas que pode transformar-se em uma enfermidade crônica e, até, incapacitante, caso não seja reconhecida precocemente e tratada adequadamente. Disse-lhe, após examiná-lo cuidadosamente e ver todos os exames que havia realizado naquele período, que não era portador de nenhuma doença cardíaca, mas, sim, de Transtorno do Pânico. Disse-lhe, também, que poderia melhorar muito dos sintomas que o afligiam caso aceitasse usar os medicamentos que eu iria receitar-lhe, além de seguir corretamente minhas instruções. Expliquei-lhe que a causa provável da doença consiste em uma disfunção da produção de alguns neurotransmissores (substâncias químicas que são produzidas pelos neurônios e que permitem a passagem dos impulsos nervosos) em determinada região do cérebro. A liberação súbita e maciça desses neurotransmissores na corrente sanguínea é responsável pela maior parte dos sintomas típicos da doença, tais como taquicardia, palpitações, mãos e pés frios, falta de ar, sensação de asfixia e de morte iminente. O alívio de tais sintomas deve-se ao fato de alguns medicamentos específicos bloquearem esses ‘disparos’ aleatórios produzidos nessa região do cérebro. O T. do Pânico também possui um componente genético, sendo mais comum em determinadas famílias provavelmente com maior predisposição para desenvolver o distúrbio e é detectado mais freqüentemente em mulheres. Além disso, pode iniciar-se depois de exposição aguda ou crônica a situações estressantes como, por exemplo, acidentes, circunstâncias traumáticas e ameaçadoras, perdas, lutos, separações, términos de relacionamentos amorosos e doenças de longa duração. O tratamento consiste, além do uso de medicamentos específicos, em uma psicoterapia destinada a readaptar o paciente às suas condições rotineiras de vida, ou seja, obter o alívio de todos aqueles medos e temores que se desenvolveram e se cristalizaram no decurso da doença. Pois é comum que se instale, secundariamente, aquilo que os especialistas chamam de agorafobia, isto é, medo de espaços abertos, de sair à rua, passar mal e não ser socorrido. Ainda, são freqüentes as fobias secundárias, ou seja, a evitação obstinada de situações ou locais análogos àqueles nos quais o paciente sofreu seus ataques de pânico. No caso de Osvaldo, vimos como ele passou a evitar, de maneira fóbica, o seu escritório de trabalho, a casa de amigos, viagens, o “shopping center” e, até, conciliar o sono, tudo isso devido ao medo incontrolável e justificado de sentir-se mal. Pois bem, um mês depois de iniciado o tratamento, Osvaldo já se sentia bem melhor. Os ataques de pânico cessaram completamente e ele, pouco a pouco, foi voltando à sua vida normal. De início, muito cautelosamente, desconfiado e apreensivo, mas, como percebesse que estava melhor, gradualmente foi se sentindo mais e mais confiante para retomar as suas atividades profissionais e sociais. Ao fim de seis meses, praticamente já havia recuperado inteiramente a confiança em si mesmo e aceitou o convite dos amigos para uma pescaria. O fantasma de seus medos e terrores estava, finalmente, sendo exorcizado. Ele sabia que o tratamento seria longo, mas também sabia que, caso interrompesse o medicamento, correria o risco da doença voltar a se manifestar. Aceitou de bom grado algumas restrições em sua vida como, por exemplo, não poder ingerir bebidas alcoólicas. Hoje, passados dez anos e ainda em uso de uma dose mínima do medicamento, mas sem nenhum sintoma da doença que tanto o afligira e vivendo normalmente, Osvaldo tem uma resposta divertida para aqueles amigos que insistem e tentam convencê-lo a tomar cerveja em festas e pescarias. Com o seu habitual bom humor, olha à sua volta, ri, dá uma piscadela e sai-se com essa: “Posso não sô... se eu misturar bebida com os sossega-leão que o meu psiquiatra receita, aí é que eu vou ficar doido de vez...”
GUSTAVO FERNANDO JULIÃO DE SOUZA
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