A propósito de um projeto
de pesquisa sobre Cronicidade Psiquiátrica
Dr. Gustavo fernando Julião de Souza
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Seria um tanto exaustivo proceder a uma
revisão completa sobre o tema cronicidade psiquiátrica,
assunto que por sinal vem despertando o interesse de vários autores
vinculados a inúmeras linhas de pensamento, escolas e convicções
teóricas não somente da Psiquiatria mas, também,
de vários campos de estudo da área das Ciências Humanas.
Com efeito, a enorme complexidade do tema, as várias faces do fenômeno
cronicidade psiquiátrica e as naturais controvérsias existentes
no campo teórico propiciam muitas discussões, polêmicas
e, mais ainda, terminam por dificultar uma delineação conceitual
menos problemática daquele fenômeno. De mais a mais, pelo
menos à primeira vista, parece de todo impossível depurar
completamente qualquer resíduo ideologizante inerente ao próprio
conceito de cronicidade psiquiátrica, principalmente se considerarmos
somente o aspecto clínico-fenomenológico da questão.
* Projeto teórico de pesquisa em
estudos na Coordenadoria Estadual de Saúde Mental na pessoa da
Dra. Gisele Bahia e que demonstrou interesse em sua implementação
operacional no Estado de Minas Gerais.
** - Médico Psiquiatra
- Supervisor Hospitalar do INAMPS/SUS
- Ex-professor de Psiquiatria da Faculdade de Ciências Medicas de
Minas Gerais <FELUMA)
De qualquer maneira, pensamos que, caso
se consiga estabelecer com precisão a natureza e a intensidade
das forças que interagem dinamicamente no interior daquele paciente
psiquiátrico denominado crônico, não há duvida
que se poderá obter uma isenção conceitual suficiente
para desenvolver um trabalho de pesquisa que se mostre ilustrativo, útil
e menos suscetível a críticas tendenciosas e sectárias.
Dito isto, uma pergunta naturalmente se impõe. Será possível
delinear um esboço teórico que consiga não somente
abarcar, pelo menos em parte, a complexidade do problema mas, também,
mostrar-se útil para satisfazer as necessidades práticas
de pesquisa e coleta de dados epidemiológicos institucionais, além
de ajudar os psiquiatras e os demais integrantes das equipes de saúde
mental a caracterizar e lidar de maneira adequada com os chamados pacientes
psiquiátricos crônicos?
Para começar a responder esta indagação, teremos
que estabelecer um padrão conceitual de cronicidade psiquiátrica
de acordo com nossa experiência clínica e o cotidiano de
uma função administrativa específica que desempenhamos
e que é a Supervisão Hospitalar.
Em primeiro lugar, sabe-se, com certeza, que determinados tipos de enfermidades
mentais denominadas psicoses endógenas podem evoluir cronicamente
e desembocar em um estágio de demenciação grave e
irreversível caracterizado por um comprometimento severo da vida
afetiva e das funções cognitivas. Tal é o caso de
algumas formas clínicas de psicose esquizofrênica, geralmente
de inicio temporal precoce como a hebefrenia e a hebefreno-catatonia ou,
mesmo, em alguns quadros mistos esquizoafetivos dotados de evolução
clínica bastante desfavorável. Em alguns enfermos, mesmo
com o emprego adequado da farmacoterapia e de técnicas e abordagens
psicossociais, a doença evolui inexoravelmente para a cronificação
processual acompanhada de uma enorme diversidade de sintomas que vão
desde um profundo alheamento e apragmatismo até a auto e hetero-agressividade
de difícil controle. Entretanto, naquelas formas clínicas
mais brandas e de melhor prognóstico da esquizofrenia, sabemos
muito bem, hoje em dia, da grande importância da exposição
aguda ou prolongada dos pacientes aos chamados estressores psicossociais
no que se refere à exacerbação ou reagudização
de brotos psicóticos durante o curso clínico evolutivo dessa
enfermidade. Em outras palavras, sabemos que intervenções
terapêuticas de natureza psicossocial podem ser valiosas em muitos
casos.
Uma segunda categoria de pacientes corresponde àqueles portadores
de déficit intelectivo severo e que exibem alterações
graves do comportamento em todas as suas modalidades acompanhadas de auto
e hetero-agressividade e de embrutecimento ético e moral. Em um
número variável de casos, esses pacientes podem manifestar,
também, crises convulsivas associadas.
Em uma terceira categoria de pacientes enquadram-se aqueles com desestruturação
orgânica da personalidade resultante de psicossíndromes orgânicas
crônicas tais como traumatismos crânio-encefálicos,
epilepsias, doenças degenerativas do sistema nervoso central e
demências alcoólicas. Em muitos desses casos podem estar
presentes auto e hetero-agressividade, além de destrutividade,
porém em muitos outros constata-se, tão somente, extremo
grau de dependência quanto a alimentação, cuidados
de higiene pessoal e outras iniciativas cotidianas elementares.
A primeira categoria de pacientes, ou seja, a demenciação
resultante da evolução desfavorável de algumas formas
clínicas de psicoses endógenas corresponde ao tradicional
conceito jasperiano de processo psíquico, enquanto a terceira equivale
à noção de processo orgânico. De qualquer maneira,
em todas essas categorias de pacientes podemos detectar uma miríade
de condutas anômalas e socialmente desadaptadas que vão desde
uma dependência extrema a cuidados pessoais elementares até
fugas de casa, agressões, mutilações, violências,
abusos sexuais, tentativas de auto-extermínio e, até, homicídios.
Desse modo, não há maiores dificuldades em caracterizar-se
um estágio de cronificação das enfermidades mentais
graves, levando-se em conta a visível deterioração
das esferas cognitiva e afetiva nesses pacientes, comprometimento esse
que se exterioriza de forma patente para qualquer observador, inclusive
para os leigos. Não há dúvida de que muitos enfermos
nessas condições nunca se submeteram a qualquer tipo de
tratamento e, se algum dia o fizeram, ou o abandonaram precocemente ou
receberam alta hospitalar e não o continuaram, vivendo, na maior
parte das vezes, uma existência errante e miserável, sobrevivendo
geralmente às custas da mendicância ou de furtos eventuais.
Outros terminam por serem condenados pela justiça comum devido
a uma enorme variedade de delitos de graus variáveis tais como
vagabundagem, atentados ao pudor ou ameaças a ordem pública
ou, mesmo, lesões corporais e homicídio. Um número
menor de pacientes acaba por receber proteção de algumas
comunidades, seja pelo seu temperamento plácido, seja pela divertida
bizarrice de seu comportamento, convertendo-se, muitas vezes, em emblemas
folclóricos dos locais onde são acolhidos.
Entretanto, é certo que todos esses
casos guardam uma semelhança comum e que consiste na ausência
absoluta da participação familiar na vida desses pacientes
causada, muitas vezes, pela situação de verdadeira penúria
sócio-econômica e pedagógica das famílias envolvidas
e que costumam induzir uma completa indiferença em relação
ao destino dos enfermos. Com efeito, o abandono e o desamparo familiar
deixam o doente à mercê de sua própria sorte e sujeito
a toda espécie de vicissitudes, violências e arbitrariedades
que são cometidas, infelizmente, de modo assíduo.
Mas, e aqueles pacientes com as características clinicas de cronicidade
nosológica como vimos há pouco e que são mantidos
hospitalizados durante longos períodos de tempo e, ainda, que na
maior parte das vezes perdem totalmente o contato com as suas famílias,
seus amigos e suas comunidades de origem?
E aqueles outros que, apesar de não se enquadrarem nos critérios
nosológicos de cronicidade psiquiátrica mas que, por um
motivo ou outro, são rejeitados e abandonados por seus familiares
e permanecem internados por um longo período completamente isolados
do mundo?
Torna-se desnecessário dizer que, felizmente ou infelizmente, esses
dois grupos de pacientes são os mais acessíveis e os menos
problemáticos para a elaboração de um projeto de
pesquisa sobre cronicidade psiquiátrica devido a algumas facilidades
inerentes à própria situação de hospitalização
que beneficiam o trabalho dos investigadores. Além disso, considerando-se
o grande número de variáveis que interagem com o paciente
estando ele fora do hospital, a análise da cronicidade psiquiátrica
tornar-se-ia uma investigação extremamente complexa e, quiçá,
inviável. Ao contrário, a situação do paciente
hospitalizado implica na consideração de três vertentes
conceituais que se interseccionam e interagem mutuamente e de forma dinâmica,
quais sejam: a variável nosolôgica, a sócio-familiar
e a institucional.
Esses três eixos, dimensões ou variáveis, na verdade,
representam a totalidade de forças às quais todos os pacientes
psiquiátricos hospitalizados estão submetidos e que se configuram,
de maneira especial, naqueles internados durante longos períodos
e que receberam diagnóstico psiquiátrico de cronicidade.
Já discorremos rapidamente a respeito da dimensão ou eixo
nosológico, enfocando, através da visão clnico-fenomenológica,
os principais quadros psiquiátricos que levam a uma deterioração
progressiva e irreversível da vida psíquica. Agora ocupar-nos-emos
da análise da participação institucional no processo
de cronificação psiquiátrica como um todo.
Os pacientes agudos, de maneira geral, pelo fato de receberem alta hospitalar
após um curto período de internação, tempo
suficiente para que haja a remissão completa do quadro psiquiátrico,
não desenvolvem um comprometimento definitivo de sua personalidade
- em interação com sua nosologia - decorrente da exposição
institucional prolongada. Ao contrário, nos pacientes psiquiátricos
crônicos verificamos a incorporação de hábitos,
rotinas e peculiaridades de comportamento próprios das instituições
onde estão inseridos, induzindo uma verdadeira tipificação
de modos de ser e de atitudes. No caso de um paciente acometido de um
surto psicótico agudo, por exemplo, a realidade institucional pode,
pelo menos em um primeiro momento, ser-lhe benéfica à medida
que certas rotinas e normas disciplinares próprias daquela são
significadas como marcos nítidos e incontestáveis do mundo
externo, contribuindo, desse modo, para o fortalecimento de seus juízos
de realidade. É evidente que nada há de melhor para um senso
de realidade débil e oscilante do que alguns dados sensoriais inquestionáveis
que reforcem, emblematicamente, a situação terapêutica
em sua dimensão simbólica mais concreta e inequívoca.
Entretanto, uma exposição institucional prolongada pode
ocasionar a tipificação institucional e que consiste no
verdadeiro instrumento de massificação definitiva dos pacientes.
Ora, nada mais indesejável e nocivo do que isso no sentido de propiciar
a paralisação do desenvolvimento e maturação
dos setores sadios da personalidade do paciente. Desse modo, se, em um
primeiro momento, a inserção institucional funcionou, como
já vimos, à maneira de um verdadeiro "corte institucional"
no sentido de proporcionar ao paciente a imagem reificada de sua patologia
e da necessidade de tratamento, esse fato a longo prazo ira propiciar,
fatalmente, a cristalização da consciência de enfermidade
definitiva vinculada a sentimentos de desinteresse, de inutilidade e de
desesperança. A cronificaçao institucional, dessa forma,
caminha lado a lado com o processo de massificação e se
caracteriza pelo gradual esvaziamento da diversidade de opções,
escolhas, desejos e projetos pessoais, desembocando em um estágio
de diluição da individualidade e inserção
definitiva do paciente no microuniverso normativo hospitalar Assim, haverá
a introjeção exclusiva da dimensão normativa institucional,
a princípio naturalmente desalentadora, rígida e repetitiva,
induzindo não mais que passividade, isolamento e distanciamento
do paciente em relação às perspectivas potenciais
do futuro.
A título de ilustração, tome-se como exemplo um caso
de psicose esquizofrênica com a sua costumeira evolução
clínica desfavorável. Pode-se imaginar como a participação
institucional a longo prazo pode vir a exacerbar os chamados sintomas
negativos da esquizofrenia, tais como apragmatismo, autismo e indiferença.
A falta de um projeto terapêutico específico para esse caso
hipotético, a ausência de visitas dos familiares ou de qualquer
outro estímulo ou reforço positivo externo acentuará,
sem dúvida, o alheamento do paciente, a precariedade de sua linguagem
verbal e gestual e o seu isolamento do mundo. Para agravar tal situação,
sabe-se que muitos psiquiatras e outros profissionais da área de
saúde mental manifestam atitude terapêutica de cômoda
indiferença em suas prescrições, freqüência
de visitas e elaboração de projetos terapêuticos para
os pacientes já diagnosticados como crônicos, traduzindo
em suas atitudes e rotinas assistenciais uma espécie de descaso
carregado de ceticismo, uma desesperança pachorrenta em relação
a casos considerados antes de tudo como incuráveis. Em contrapartida,
qualquer psiquiatra que sempre se interesse vivamente por todos os seus
pacientes e que nunca se negue a utilizar todas as possibilidades terapêuticas
próprias para cada caso, certamente terá algumas agradáveis
surpresas. Sem dúvida, não são poucos os pacientes
previamente diagnosticados como crônicos e que, após uma
revisão detalhada do projeto terapêutico e da conseqüente
implantação de novos esquemas de farmacoterapia, terapias
biológicas e outras formas de abordagem sócio-familiar,
manifestam melhora surpreendente.
Dessa maneira, a instituição pode, em princípio,
contribuir para a recuperação e cura do enfermo mental mas
pode, também, participar na manutenção e até
na piora do quadro psíquico, acelerando o processo irreversível
de cronificação. Quanto a isso, não há dúvida
de que existem, incrustados no corpo institucional, alguns elementos positivos
ou integradores agindo lado a lado de outros negativos ou desintegradores
da saúde mental, sendo que a viabilidade do êxito de qualquer
instituição como instrumento restaurador do equilíbrio
psíquico dependerá da predominância absoluta dos primeiros
operando dinamicamente. Por exemplo, uma determinada instituição
poderá reforçar uma demanda sócio-familiar exagerada
no sentido de requerer a hospitalização extremamente demorada
e até definitiva de um paciente. Em outras palavras, o desejo da
família em desembaraçar-se definitivamente do enfermo poderá
ser concretizada pela instituição. Esta, através
de escassa autorização de visitas, da falta de informações
claras e suficientes a respeito da evolução do quadro psíquico,
da ausência de entrevistas com os familiares e/ou com membros da
comunidade de origem, da inexistência de programas de reabilitação
e de ressocialização e do pequeno número de visitas
médicas, todos elementos desintegradores da saúde mental,
estará, sem dúvida, reforçando a exclusão
institucional definitiva de um paciente. A falta de interesse e de empenho
da instituição aliar-se-á, desse modo, ao desinteresse
e indiferença da família de origem. Em contrapartida, a
transparência e clareza dos tratamentos efetuados, a convocação
e orientação constante dos familiares, a implantação
de programas de reabilitação e ressocialização,
a utilização das técnicas de grupos operativos, o
acompanhamento médico diário, as discussões e esclarecimentos
a respeito do diagnóstico e prognóstico dos casos consistem
em elementos institucionais integradores da saúde mental que, forçosamente,
tenderão a diminuir sobremaneira tanto a demanda sócio-familiar
como, também, a demanda nosológica.
Dito isso, penso que este é o momento adequado para propor a apresentação
de um modelo gráfico capaz de permitir a visualização
esquemática dos conceitos emitidos até agora e que irá
suscitar o desenvolvimento e o desdobramento de novas discussões
teóricas até o posterior estabelecimento de um mecanismo
teórico-prático definitivo destinado a apreensão
e coleta de dados objetivos para o trabalho de pesquisa. Tal modelo gráfico
consiste no que se segue:
Vê-se, panoramicamente, como o paciente (P) internado está
submetido a uma série de forças que, em resumo, consistem
na morfologia de sua própria enfermidade, na instituição
em que recebe tratamento e nas variáveis sociais e familiares que
subjazem ao seu adoecer psiquico. Pode-se observar que a abscissa à
esquerda corresponde à demanda sócio-familiar e que a situada
à direita equivale à demanda nosológica, isto é,
ao quadro puramente psiquiátrico com ênfase para a constelação
psicopatológica, o diagnóstico e o prognóstico. Mais,
ambas são pontuadas em um espectro quantitativo progressivo que
varia de O (zero) a ¥ (infinito) com sinal - (negativo) ou + (positivo),
respectivamente. Ainda, a ordenada Instituição até
a intersecção com a abscissa em sua parte superior corresponde
a um espectro numérico de pontuação que equivale
ao sinal + (positivo) ou - (negativo) e que abrange os fatores institucionais
integradores, enquanto em sua parte inferior com sinal - (negativo) ou
+ (positivo) contém aqueles elementos institucionais desintegradores.
É necessário esclarecer, entretanto, que os sinais + (positivo)
e - (negativo) adscritos às pontuações das ordenadas
possuirão duas equivalências distintas, quer se refiram aos
elementos institucionais integradores ou aqueles desintegradores. Por
exemplo, os elementos institucionais integradores, após constatados
e coletados, possuirão sinal algébrico - (negativo) em relação
à demanda nosológica, ao passo que adquirirão sinal
algébrico + (positivo) em relação à demanda
sócio-familiar. O inverso se pode estabelecer quanto aos sinais
algébricos estritos adscritos aos elementos institucionais desintegradores.
Terão sinal - (negativo) em relação à demanda
sócio-familiar e + (positivo) no que se refere à demanda
nosológica. Tal convenção, apesar de aparentemente
complexa, deve-se ao fato de que os elementos institucionais integradores
tenderão, na operação numérica final, a diminuir
quantitativamente tanto a demanda sócio-familiar como a nosológica,
enquanto os elementos institucionais desintegradores aumentarão
quantitativamente as respectivas demandas. Talvez seja mais fácil
dizer que os sinais algébricos adscritos aos valores quantitativos
dos elementos institucionais integradores serão inversos aos das
respectivas demandas, ao passo que os adscritos aos dos elementos institucionais
desintegradores serão consonantes àqueles.
Podemos notar que, imperceptivelmente, estamos considerando o terceiro
eixo estabelecido que interage dinamicamente com os dois anteriores e
que consiste na chamada demanda sócio-familiar, correspondendo
a estratégias e forças integradoras e desintegradoras da
família de origem, extremamente importantes no processo de desencadeamento
e manutenção da patologia do enfermo e que agora intermediam
as forças e estratégias da instituição. A
princípio, é de se esperar que haja um encadeamento ou um
encaixe entre as vivências anômalas dos pacientes e os distúrbios
do comportamento relatados, configurando-se, assim, uma concordância
ou coerência entre a demanda nosológica e a demanda familiar.
Em outras palavras, quanto mais grave for o quadro psiquiátrico,
mais premida estará a família quanto à necessidade
da permanência do paciente no hospital. Ao contrário, quanto
mais brando for o quadro psiquiátrico, menor seria a demanda familiar,
isso pelo menos teoricamente. Assim, grosso modo, sempre deveria haver
uma concordância entre a demanda nosológica e a sócio-familiar.
Contudo, não é exatamente isto que constatamos na prática.
Temos a oportunidade de detectar pacientes com quadros psiquiátricos
muito graves, mas cujas famílias mostram-se extremamente interessadas
e empenhadas no trabalho terapêutico de sua recuperação,
sempre potencialmente disponíveis para dele participar de alguma
maneira. Por outro lado, amiúde, deparamo-nos com pacientes hospitalizados
e totalmente assintomáticos, ansiosos para retornar ao convívio
sócio-familiar mas, infelizmente, de todo abandonados por suas
famílias. Estes dois exemplos díspares talvez se prestem
a demonstrar a utilidade prática do modelo gráfico que estamos
propondo. No primeiro caso, poderíamos quantificar a demanda nosológica
como tendendo ao infinito e a sócio-familiar próxima de
0 (zero) e no segundo exemplo, ao contrário, a demanda nosológica
eqüivaleria a 0 (zero) e a familiar tenderia ao infinito. Sem considerarmos
os pesos relativos aos elementos institucionais integradores ou desintegradores
atuando nos dois casos, podemos afirmar que o primeiro equivaleria, quantitativamente,
a + ¥ e o segundo a - ¥ . Pois bem, não é difícil
imaginar uma infinidade de exemplos muito diversos e que se situariam
de forma intermediária na tabela do modelo gráfico.
Até agora discorremos sobre as demandas nosológica e sócio-familiar
de forma rápida e mais ou menos genérica. Torna-se necessário,
contudo, defini-las de modo preciso, delineando os seus componentes potencialmente
mensuráveis no sentido de se efetuar a coleta de dados.
Quanto à demanda nosológica, teremos que considerar toda
a enumeração das vivências subjetivas anômalas
do paciente, os critérios evolutivos, o diagnóstico final,
os resultados de testes psicológicos e outros exames complementares
que se fizerem necessários, os registros dos atendimentos da Psiquiatria,
da Psicologia, da T.O e do Serviço Social, além dos relatórios
da Enfermagem e de possíveis intercorrências atendidas pelos
plantonistas. A finalidade da análise de todos esses dados será
estabelecer, da forma mais precisa possível, o diagnóstico
definitivo e o prognóstico de cada caso, ou seja, o seu nível
de gravidade e de complexidade. Poder-se-ia sugerir uma pontuação
que elevasse os seus pesos numéricos de acordo com as nosologias
catalogadas no (CID) 10, por exemplo, estabelecendo-se uma pontuação
maior em quadros psicóticos, demenciais e assim por diante.
No que se refere à demanda sócio-familiar, torna-se necessária
toda a enumeração dos distúrbios de comportamento
do paciente induzindo vários padrões de desadaptação
social e familiar, além do registro dos relatos e depoimentos dos
familiares, amigos, vizinhos e colegas de trabalho, o estabelecimento
do nível sócio-econômico da família de origem,
a pesquisa de possíveis indiciamentos judiciais do enfermo, a investigação
dos profissionais quanto ao número de internações
e sobre a aceitação ou não de medicamentos pelo paciente
em seu domicílio. Em suma, trata-se de detectar o nível
de comprometimento familiar em cada caso. Quanto à pontuação,
parece óbvio que se tornaria mais elevada à medida que se
constatasse mais e mais fatores agravantes que traduzissem sobrecarga
e desestruturação familiar.
Por último, cabe revisar aqueles elementos institucionais integradores
e desintegradores de saúde mental, sobre os quais já começamos
a discorrer e caracterizar na página 8. De maneira geral, além
daqueles já citados, podemos considerar como elementos integradores
institucionais todas aquelas exigências de pessoal e de conforto
material contidas na Resolução n.º 435 da SES de Minas
Gerais datada de 29 de dezembro de 1992. Sem dúvida, trata-se de
normas que, caso sejam realmente concretizadas, promoverão o aprimoramento
mínimo da assistência em saúde mental aos pacientes
internados. Ainda, poderíamos adicionar a compatibilidade entre
a prescrição médica e o quadro clínico do
paciente dentre os elementos institucionais integradores, ao passo que
a forma de remuneração ao médicos denominada "pro-labore"
aos elementos institucionais desintegradores. Com efeito, a forma peculiar
que remunera o médico pelos seus serviços prestados ao paciente
internado pode propiciar que a permanência prolongada do paciente
no hospital se deva menos a uma necessidade médica do que a um
simples exercício de lucro contábil.
É de se supor que a pontuação de todos esses itens
consista em um trabalho multiprofissional minucioso e extremamente laborioso.
Entretanto, não vejo nenhuma alternativa senão quantificar
pacientemente e de maneira adequada todos aqueles elementos institucionais
que ou contribuem decisivamente para a recuperação dos pacientes
ou ensejam a sua cronificação.
Pois bem, está terminada a primeira parte do presente trabalho,
qual seja a apresentação do modelo gráfico de uma
concepção teórica visando o estabelecimento da metodologia,
sob a forma de uma configuração ternária, através
de três eixos ou dimensões básicas e axiais (demanda
sócio-familiar, demanda nosológica e elementos integradores
ou desintegradores institucionais), faltando, evidentemente, a discriminação
de todos os pesos particulares nominativos para a pontuação
geral.
Com base naquele modelo gráfico teórico, poderemos chegar
aos resultados efetivos através da visualização da
coleta de dados, ou seja, da elaboração de gráficos
sob a forma de uma configuração binária visando a
apresentação da metodologia aplicada. Tais gráficos
consistiriam em uma abscissa que corresponderia à somatória
geral da demanda nosológica em interação com os elementos
institucionais integradores e desintegradores e em uma ordenada que, por
sua vez, eqüivaleria à somatória da demanda sócio-familiar
em interação com aqueles mesmos elementos institucionais.
Poderemos, assim, visualizar o modelo binário como o gráfico
padrão que se segue:
Onde, Dsf = Demanda Sócio Familiar
Dn = Demanda Nosológica
Fi =Fatores Institucionais Integradores
Fd = Fatores Institucionais Desintegradores
Provavelmente, a curva ideal seria aquela que correspondesse à
distribuição estatística eqüitativa (média)
e que talvez apresentasse a seguinte configuração:
No entanto, isto é apenas uma conjectura
e cabe aos profissionais, em primeiro lugar, quantificarem os ítens
do projeto e, depois, iniciarem a coleta dos dados.
De qualquer maneira, não podemos
deixar de imaginar e indagar quais seriam os traçados gráficos
encontrados nos diversos hospitais psiquiátricos, expressando os
perfis sócio-familiares e nosológicos dos próprios
pacientes, além das esperadas mazelas institucionais.
Finalizando, podemos dizer que o presente
projeto assemelha-se a um determinado mecanismo cuja viabilidade terá
que ser testada e nada melhor para começá-lo do que acertar
os seus ponteiros quantitativamente.
Belo Horizonte, junho de 1993
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