Música de Câmara:
Um breve roteiro
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A chamada música clássica
ou erudita sempre ofereceu aos seus ouvintes oportunidades muito diversificadas
de deleite e apreciação. Essa arte, que era considerada
pelos gregos como a mais nobre e espiritualizada dentre todas as outras,
evoluiu no mundo ocidental de um modo inteiramente peculiar e muito próprio,
adquirindo uma roupagem e complexidade capaz de exprimir toda a universalidade
dos sentimentos humanos, até os mais íntimos e recônditos.
A música, como diz Oto Maria Carpeaux, não pode ser traduzida
por palavras e, se o pudesse, não seria necessária. O certo
é que continua estimulando e alimentando nossa sensibilidade e
capacidade de contemplação através de todos os seus
gêneros, sejam peças sinfônicas, concertos, óperas,
oratórios e cantatas. Entretanto, nenhum gênero musical alcança
a faculdade de expressar os sentimentos humanos de uma forma tão
completa e intimista como a música de câmara. Assim, toda
uma gama de sentimentos podem ser despertados e vivenciados tais como
tristeza, nostalgia, religiosidade, expectativa, espanto, tensão,
alegria, paixão, saudade e otimismo, de acordo com as diversas
tonalidades, ritmos, compassos e linhas melódicas das composições
musicais. Sabe-se que Schumann, no início de sua carreira de compositor,
dedicou-se ao estudo minucioso e contemplativo das obras completas para
cravo de J. S. Bach, descobrindo nelas expressões sublimes, inefáveis
e misteriosas dos sentimentos humanos em toda sua universalidade. Esta
é, sem dúvida, a verdadeira função da música,
ou seja, materializar sonoramente a apreensão estética da
realidade humana. Neste breve roteiro de música de câmara
procuraremos indicar aquelas composições mais conhecidas
e que podem se constituir numa espécie de guia sumário para
os amantes da música clássica que, por alguma razão,
ainda não tiveram a oportunidade de conhecer melhor esse gênero
musical. As peças aqui selecionadas e recomendadas o foram exclusivamente
pela preferência pessoal, desde que seria impossível não
cometer nenhuma injustiça por não citar esta ou aquela obra
de determinado compositor.
A música de câmara desenvolveu-se enormemente a partir do
início do século XVIII com os compositores do período
barroco, como Bach, Vivaldi e Telemann, principalmente. Destacamos, de
autoria de J. S. Bach (1685-1750), as sonatas para violino e cravo em
lá maior e em mi maior e as sonatas para flauta e cravo, música
verdadeiramente celestial, com ênfase para aquela em si bemol menor,
uma verdadeira obra prima.
Antonio Vivaldi (1678-1741), o mestre italiano, é autor dos Concerti
da camera, uma deliciosa sequência de pequenos concertos utilizando
a combinação de vários instrumentos de sopro (oboé,
fagote,flauta doce e transversa), violino, cravo e baixo contínuo.
O resultado é música torrencialmente harmoniosa e imaginativa,
dinâmica, com uma riqueza instrumental que faz jus ao gênio
inventivo do mestre.
Por seu turno, Georg Philipp Telemann (1681-1767) talvez tenha sido o
compositor mais profícuo do período barroco e não
podemos deixar de ouvir a sua Tafelmusik (Música para Banquetes),
um enorme conjunto de suítes e concertos para diversos instrumentos,
notável pela sua beleza melódica e instrumental.
O advento do classicismo na música, por volta da segunda metade
do século XVIII, propiciou a emergência das gigantescas figuras
de Joseph Haydn (1732-1809), Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e Ludwig
van Beethoven (1770-1827) que foram os precursores do romantismo musical
do século XIX.
Haydn, apesar de não ser considerado o inventor do quarteto de
cordas (dois violinos, viola e violoncelo), compôs uma série
de verdadeiras obras primas nesse gênero, consolidando-o definitivamente.
Assim, merecem menção os Quartetos op. 33 e os Quartetos
op.64 que reluzem no universo haydniano de música de cordas, além
dos belíssimos Trios para piano,violino e violoncelo, sem exceção.
Mozart é autor de vários Quintetos e Quartetos de cordas
e de sete Trios para piano, violino e violoncelo nos quais a forma clássica
da música não consegue disfarçar um profundo sentimento
que já anuncia a proximidade do romantismo. Neles, a música
de estilo galante do século XVIII, a "música de reverência",
polida e formal, dilui-se na efervescência de sentimentos e emoçôes
e cede ao gênio do compositor, tornando-se eterna.
Os dezesseis Quartetos de cordas de Beethoven consistem, à semelhança
daqueles de Haydn, em um universo musical bastante complexo e intrincado,
onde se pode acompanhar a evolução e o amadurecimento progressivo
da arte do genial compositor. Consistem em uma fonte inesgotável
e perene de contemplação estética dos sentimentos
humanos sob uma perspectiva universalmente caleidoscópica. Talvez
nunca o espírito humano tenha alçado um vôo tão
alto. O Trio para piano, violino e violoncelo em ré maior op.70,
nº1("Geister") é belo, surpreendente e misterioso
e o Trio para piano em si bémol maior op.97("Archduke")
é serenamente sombrio e sua beleza elegíaca assemelha-se
à inexorável força do destino. As Sonatas para violino
e piano nº 9 em lá maior op. 47("Kreutzer") e nº5
em fá maior op.24 ("Frühlingssonate") também
ocupam um lugar especial dentro da obra de câmara de Beethoven.
A primeira, de beleza áspera e crispada, leva-nos a uma jornada
mítica e emocionante e a segunda, delicada e melodiosamente romântica,
é um vigoroso cântico à primavera.
Quanto aos compositores do Romantismo, enumeraremos algumas obras de câmara
de três que consideramos os mais representativos do século
XIX, a saber, Franz Schubert (1797-1828), Robert Schumann (1810-1856)
e Johannes Brahms (1833-1897).
Schubert compôs um Quinteto para violino, viola , violoncelo, contrabaixo
e piano em lá menor denominado "Truta", uma peça
encantadora e de inesgotável riqueza melódica, de presença
constante nas salas de concerto. Também ainda são muito
executados os seus belos Trios para piano, violino e violoncelo, romanticamente
clássicos, e o Quarteto para cordas em ré menor ("A
Morte e a Donzela").
Por sua vez, de Schumann cabe destacar o Quinteto para piano e cordas
em mi bemol maior, op.44, obra que parece marcar o clímax do Alto
Romantismo alemão, profundamente densa e bela, além das
maravilhosas peças para oboé e piano, op.94, 85, 70,73 e
102, idílicas e melancólicas.
Finalmente, os quatro Trios para piano, violino e violoncelo de Brahms
já prenunciam as profundas mudanças que ocorrerão
na concepção musical do fim de século e que culminarão
na música contemporânea, apesar da essência genuinamente
romântica contida em um cuidadoso e austero rigor da forma. O mesmo
se pode dizer de seus Quintetos para cordas op.88 e 111, obras solidamente
belas e das suas Sonatas para clarinete e piano op.120, uma espécie
de exercício lúdico do espírito. Entretanto, valem
um destaque especial a Sonata para violino e piano nº1, op.78, onde
o mestre se permite cantar com todo o seu lirismo e o Quinteto para clarinete
e cordas op.115, de beleza estranha, áspera e selvagem.
Finalizando, é mister lembrar que o presente roteiro consiste,
apenas, em uma breve viagem de reconhecimento a um universo que transcende
por inteiro nossa razão e sensibilidade, correspondendo àquilo
que de mais humano existe em nosso espírito e que, no dizer do
poeta, "em tantas horas cinzentas nos levou para um mundo melhor".
GUSTAVO FERNANDO JULIÃO DE SOUZA
www.gustavojuliao.med.br
Publicado no Jornal Mineiro de Psiquiatria
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