Prática Psiauiátrica
Um Caso de Delírio Sub-Agudo de Ciúmes com Resposta
Clínica Favorável à administração
de Risperidona
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L.C. é uma moça
de vinte e cinco anos, semblante apreensivo e que gesticula muito ao falar.
Mostra-se muito aflita e exaltada à consulta. À medida que
vai relatando seu infortúnio, fica arrebatada, com o olhar brilhante,
face e boca crispadas pelo ódio que a domina. Afirma, com veemência,
que não confia no namorado e que seu maior desejo é desmascará-lo
no momento oportuno, desde que suspeita seriamente que é traída
por ele.
Informa que ele está terminando o seu curso universitário
em uma cidade relativamente distante daquela onde reside e nos finais
de semana, quando liga para a república onde mora, percebe que
os colegas dele tratam-na com "falta de consideração
e ironia". Queixa-se, com indignação: "atendem-me
com voz de deboche, ficam gozando a minha cara depois que eu desligo".
A paciente procurou-me em 22/09/2000 por indicação de seu
irmão, também meu cliente, após algum tempo de tratamento
psicológico em sua cidade e que se revelou infrutífero.
Ela havia buscado auxílio terapêutico devido aos seus "ciúmes
excessivos" que a faziam perder noites de sono remoendo obsessivamente
certas dúvidas, suspeitas e desconfianças em relação
ao namorado. Tais pensamentos e fantasias mostravam-se nitidamente exagerados
ou, mesmo, absurdos até para si mesma quando refletia mais demoradamente
sobre a questão. O namorado parecia gostar dela, aproveitava todas
as folgas na Universidade que cursava para viajar e encontrar-se com ela.
Aparentemente, o rapaz possuía temperamento plácido e afetuoso,
pois ria de suas suspeitas e procurava acalmá-la com afagos e juras.
Entretanto, mesmo sem apontar uma evidência real que pudesse justificar
tamanhas suspeitas, L.C. vivia debatendo-se no interior de uma gigantesca
teia de desconfianças que ela mesma construía dia após
dia, impelindo-a a ligar compulsivamente para o namorado, incomodando-o
em seus afazeres e interrompendo seus compromissos.
Vivia permanentemente desconfiada que uma colega de trabalho estava interessada
por ele e as brincadeiras mais espontâneas e os inúmeros
comentários banais que ocorriam no cotidiano de seu serviço
eram interpretados por ela como "indiretas" e "provocações"
intencionais e malévolas. Assim, uma piscadela de olhos de sua
colega acompanhada de um sorriso pareciam-lhe tão cheias de significados
maliciosos e intrigantes, que lhe provocavam imediatamente "uma dor
no coração e um nó na garganta". De modo semelhante,
uma frase solta, uma interjeição de surpresa ou um inocente
comentário sobre o tempo pareciam-lhe carregados da mais vil e
perversa intencionalidade, desde que os interpretava como alusões
cifradas a supostas traições amorosas do parceiro.
Minha primeira impressão diagnóstica foi de que se tratava
de um Episódio Depressivo(1) com manifestações deliróides
auto-referenciais em uma personalidade pré-mórbida dotada
de traços importantes obsessivo-compulsivos, além de acentuada
imaturidade em seu desenvolvimento, configurando, dessa maneira, uma espécie
de "paixão obsessiva".
Com efeito, era uma jovem pertencente a uma família rural extremamente
conservadora e tradicionalista que até então a protegera
em demasia, privando-a de experiências de vida naturais e corriqueiras
para qualquer moça de sua idade. Dessa maneira, não deixava
de ser curioso o fato de que, ao lado de sua excessiva desconfiança
em relação ao namorado, era uma jovem assaz ingênua
em relação às questões mais banais do relacionamento
amoroso, incluindo-se aí informações errôneas
e deformadas no que se referia à sexualidade de modo geral, sendo
ela mesma desprovida de qualquer experiência nessa área.
Quanto ao passado médico da paciente, nada de importante se podia
constatar e, em relação aos antecedentes familiares, dever-se-ia
considerar o caso de seu irmão seis anos mais velho que ela, também
meu cliente e que padecia de Transtorno Delirante*(1). Ele já havia
manifestado, de forma flutuante e esporádica, episódios
bem caracterizados de delírio de ciúmes em relação
à esposa e a uma antiga namorada, não mais tendo, contudo,
apresentado sintomas agudos da doença desde que instituímos
tratamento farmacoterápico com risperidona na dosagem de 3,0 mg/dia.
De qualquer maneira, como eram evidentes os sintomas depressivos em L.C.,
prescrevi cloridrato de paroxetina na dose de 20mg/dia. Entretanto, como
ela apresentasse inúmeros efeitos colaterais, tais como taquicardia,
sudorese, tremores e certa rigidez da mandíbula, fui obrigado a
suspender a droga um mês depois. Por outro lado, esse intervalo
de tempo foi marcado por acontecimentos deveras preocupantes.
No dia 15/10/2000, durante uma violente crise de cólera, L.C. teve
uma séria discussão com o namorado motivada por ciúmes
do passado amoroso do rapaz. Nessa crise, manifestou sentimentos extremamente
inadequados e exagerados de ciúme, acusando-o de ser insincero
e dissimulado com ela. Disse-lhe que tinha certeza que ele a traía
mas, conhecendo bem suas "artimanhas", não demoraria
a "desmascará-lo".
Em 20/10/2000, durante a consulta comigo, L.C. insistiu, com veemência,
na necessidade que sentia em "desmascarar" o namorado. Estava
abatida, havia emagrecido e mostrava-se bastante loquaz, exaltada e com
choro fácil. Havia, em seus olhos, um inequívoco brilho
paranóide.
Concluí, então, que se tratava de um quadro clínico
sugestivo de Transtorno Delirante de Ciúmes, forma sub-aguda, onde
se podia constatar um esboço bem delineado de Delírio Celotípico(2).
Aparentemente, tratava-se de uma forma clínica atenuada, desde
que não se podiam caracterizar falseamentos ilusórios da
percepção e da memória, alterações
psicopatológicas tipicamente detectadas nesse Transtorno(2,3),
apesar das verdadeiras percepções delirantes(4) que povoavam
suas experiências cotidianas e que eram exemplificadas pelas maciças
interpretações auto-referenciais que vinculava aos estímulos
corriqueiros do meio ambiente. Assim, se no caso de L.C., faltavam as
"provas" e as "evidências" incontestáveis
da traição de seu namorado - elementos psicopatológicos
oriundos de fragmentos de falseamentos ilusórios da percepção
comumente encontrados nesses casos - evidenciava-se nitidamente a sua
convicção delirante de que era traída pelo parceiro,
ou seja, vivenciava tal crença íntima de forma inabalável
e inquestionável(5), apesar das abundantes evidências objetivas
que provavam exatamente o contrário.
Quanto a isso, vale a pena lembrar que o delírio origina-se de
uma alteração da capacidade de julgamento ou ajuizamento,
dando lugar a convicções ou idéias errôneas,
falsas e distorcidas. Desse modo, o delírio é, essencialmente,
uma convicção ou juízo anômalo, uma espécie
de premissa falsa da qual vão se sucedendo conclusões também
falsas, desdobramentos inverídicos cujas principais características
são a incorrigibilidade, crença íntima inabalável
e inverossimilhança do conteúdo(3,5).
Prescrevi, então, risperidona, iniciando-se o tratamento com uma
dose de 1,0 mg/dia e aumentando-se progressivamente até chegar
a 3,0 mg/dia.
Os resultados terapêuticos foram surpreendentemente positivos. L.C.
retornou à consulta em 17/11/2000 relatando melhora significativa
dos ciúmes. Mostrava-se mais tranqüila e, embora ainda vivenciasse
suspeitas e dúvidas, já não mais brigava com o namorado.
"Agora fico maquinando sozinha", disse. O sono havia melhorado
e persistiam alguns sintomas depressivos, como crises de choro súbitas
e esporádicas. Referiu galactorréia discreta, efeito colateral
que inicialmente a preocupara, mas que conseguiu superar posteriormente
a contento, considerando-se o alívio dos sintomas agudos e o benefício
geral com o tratamento.
Em 12/01/2001 retornou ao consultório para controle, relatando
ter se sentido razoavelmente bem aquele período. Informou que havia
passado as festas de fim de ano em companhia do namorado sem nenhum incidente,
embora tivesse, em muitas ocasiões, manifestado ciúmes "normais"
de outras moças conhecidas dele. Mostrava-se com muito bom aspecto
geral, transmitindo maior tranqüilidade e segurança. Disse,
ainda, que o namorado havia pedido que me comunicasse que a estava achando
"bem melhor".
Usou o medicamento até meados do mês de fevereiro quando,
por interferência de sua família, o interrompeu sem meu consentimento.
É necessário ressaltar que, desde o início do tratamento,
os pais sempre procuraram conduzir a terapêutica à sua maneira,
questionando, em todos os momentos, as minhas orientações
médicas. Tal fato culminou em um conflito incontornável
de decisões, desembocando no abandono do tratamento, fato absolutamente
compreensível levando-se em conta a extrema dependência da
paciente à sua família.
Mesmo levando-se em conta o curto tempo de tratamento de L.C., podemos
considerar que a resposta clínica de sua sintomatologia à
risperidona foi plenamente satisfatória, constatando-se uma remissão
significativa das vivências delirantes celotípicas e um aumento,
pelo menos transitório, de sua qualidade de vida nesse breve período
de sua vida, com ênfase na normalização de seu relacionamento
amoroso e aquisição de maior auto-segurança e tranquilidade,
impulsionando, dessa maneira, a sempre desejada plenitude existencial.
Também é digno de nota o fato do irmão da paciente
ter obtido resposta clínica favorável com o uso da risperidona,
desde que sofria de um Transtorno Celotípico análogo ao
dela, mesmo que mais típico e florido, ou seja, aparentemente mais
grave.
Referências Bibliográficas:
1-AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION- DSM-IV-
Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais.
Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 4ª edição,1995.
2-JASPERS, K.- Escritos Psicopatológicos.
Editorial Gredos, Madrid, 1977.
3-SOUZA, G.F.J.- A Fenomenologia das Vivências
Delirantes: Dois Casos Clínicos. Psiquiatria Biológica,
6(4):98-201-210,1998.
4-SCHNEIDER, K.-Patopsicologia Clínica.
Editorial Paz Montalvo, Madrid, 1970.
5-BUMKE, O.-Tratado de las enfermedades
mentales. Francisco Seix-Editor, Barcelona, 1917.
GUSTAVO FERNANDO JULIÃO DE SOUZA
DADOS DE APRESENTAÇÃO DO AUTOR:
· MÉDICO PSIQUIATRA.
· PRECEPTOR DA RESIDÊNCIA
MÉDICA EM PSIQUIATRIA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS DA UFMG.
· PROFESSOR DE PSIQUIATRIA DO CURSO DE GRADUAÇÃO
DA FACULDADE DE MEDICINA DA UFMG DE JANEIRO DE 1994 A JANEIRO DE 1999.
· AUTOR E EDITOR DE ARTIGOS DA SEÇÃO
DE PSICOPATOLOGIA DA "REVISTA DE PSIQUIATRIA BIOLÓGICA"
DESDE MARÇO DE 1998.
· AUTOR DO ENSAIO "THE ENDOGENOUS
PSYCHOSES: A PHENOMENOLOGICAL-DYNAMIC APPROACH"(INÉDITO NO
BRASIL E CATALOGADO NA BIBLIOTECA DA UNIVERSIDADE DE HEIDELBERG/ALEMANHA).
· AUTOR DOS SEGUINTES ARTIGOS CONTENDO
CONCEITOS TEÓRICOS INÉDITOS E PUBLICADOS NA REVISTA ALEMÃ
"NEUROLOGY, PSYCHIATRY & BRAIN RESEARCH" DA UNIVERSIDADE
DE BONN:
1- "AFFECTIVE SYMBOLIC DIS-DIFFERENTIATION:
A THEORETICAL MODEL FOR SCHIZOPHRENIC PSYCHOSES"(VOLUME 7, Nº2,
ANO DE 1999).
2- "THE PHENOMENOLOGY OF ATYPICAL
PSYCHOTIC DISORDERS : THE PSYCHOID STATES (VOLUME 7, Nº 4, ANO DE
2000).
3- "THE PHENOMENOLOGY OF DELUSIONAL
EXPERIENCES: TWO CLINICAL CASES"(VOLUME 8, Nº2, ANO DE 2000).
4- "A DIMENSIONAL INTERPRETATION OF
PSYCHOTIC DISORDERS: FROM TYPICALITY TO ATYPICALITY"(VOLUME 8, Nº3,
ANO DE 2000).
· EX- PROFESSOR DE PSIQUIATRIA DA
FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS DE MINAS GERAIS.
· INÚMERAS CONTRIBUIÇÕES
NA ÁREA DE PSIQUIATRIA EM DIVERSOS PERIÓDICOS, REVISTAS
CIENTÍFICAS, SEPARATAS E JORNAIS.
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