CASO CLÍNICO: "UMA DONA DE CASA SONHADORA"

G.N. é uma mulher branca de quarenta e nove anos, casada, comerciante e que me procurou no consultório acompanhada do marido em meados de 1999. Possui boa compleição física, parece ser mais jovem em relação à sua idade, denota minucioso cuidado com sua aparência e veste-se de maneira algo insinuante. Apresenta boa fluência verbal, o raciocínio é ágil, os gestos são revestidos de uma tonalidade histriônica e a fala é ondulante e um pouco teatral. Parece dotada de um temperamento vivaz, dinâmico e, até certo ponto, autoritário. Sempre teve tendência à liderança e à iniciativa, tanto no colégio como em seu grupo de amigas e na família. Cuidava de todos e procurava controlar tudo. Também era pessoa muito sugestionável, impressionável e sujeita a caprichos momentâneos e atitudes impulsivas. Relatou que sempre havia gozado de muito boa saúde, nunca tendo sofrido alguma doença grave ou intervenção cirúrgica. Possuía dois filhos adolescentes, os partos haviam sido normais e os catamênios ainda estavam presentes e eram regulares. Não havia queixas próprias do climatério, salvo alguns sintomas de tensão pré-menstrual que, desde jovem, traziam-lhe desconforto.
Naquela ocasião mostrava-se especialmente ansiosa e tristonha devido à interrupção brusca de tratamento psicanalítico em curso há cerca de um ano, iniciada após a morte de seu pai. A iniciativa do término do tratamento havia partido dela após meses de relacionamento turbulento e conflituoso com o ex-terapeuta, marcado por sentimentos e fantasias ambíguos e contraditórios. Havia nutrido por ele sentimentos amorosos e de admiração entremeados por outros de decepção, culpa e ressentimento até o dia em que, segundo ela, foi colocada em um "impasse", isto é, ou se entregava fisicamente ou "podia ir embora", exigência que, supostamente, teria sido estabelecida para que houvesse continuidade do tratamento. Ela relatava tudo isso aos prantos, soluçando com muita dramaticidade e dizendo, ainda, que o terapeuta a havia encorajado em suas expectativas e fantasias, que ele tinha sido o seu "algoz", apesar de ser "muito competente, respeitado e famoso". "Ele tinha muito poder sobre mim", dizia desconsoladamente e com uma ponta de languidez na voz trêmula.
Enfim, a coisa toda assemelhava-se mais às agruras e sofrimentos de um conturbado romance juvenil do que propriamente a um tratamento psicanalítico. Suspeitei que podia tratar-se de conduta iatrogênica e procurei tranqüilizá-la na medida do possível, nada prescrevendo e orientando-a para que voltasse a procurar-me caso não houvesse melhora da ansiedade e da insônia.
Voltou três meses depois, em outubro, relatando que há cerca de vinte dias começara a sentir tonteiras, náuseas e vontade de chorar, tudo isso devido, em sua opinião, a um "susto" muito grande que tivera com a doença de seu filho adolescente, uma urticária. Além disso, sentia-se muito impressionada com a previsão que seu ex-terapeuta havia feito meses antes, que iria passar bem durante dois meses e depois pioraria. Assim, há uma semana vinha passando mal, não conseguindo levantar-se da cama e nem fazer nada em casa. O sono mostrava-se superficial, fragmentado e entremeado por pesadelos. Ainda, vinha sofrendo crises sugestivas de episódios dissociativos, que chamava de "confusão mental". Num desses episódios, estando ela acamada, levantou-se inopinadamente e declamou, de um só fôlego, com o olhar fixo diante de seus espantados familiares, uma poesia denominada "O Pássaro Cativo", de Olavo Bilac, que costumava recitar na infância. Queixava-se freqüentemente de estar sentindo frio intenso e vivia na cama, trêmula, muito abatida e enrolada em grossos cobertores. O marido e os dois filhos adolescentes mostravam-se bastante preocupados com ela, desde que nunca a tinham visto daquela maneira.
Receitei-lhe mirtazapina na dose inicial de 15mg/dia, mas seis dias depois fui obrigado a suspender a medicação porque ela insistia em atribuir a causa de suas múltiplas manifestações conversivas e histeriformes, tais como "dificuldade para respirar" e "dormência no peito", ao "remédio que lhe fazia mal". Dois dias depois prescrevi reboxetina (2,0mg/dia) associada ao alprazolam(0,5mg/dia). Dessa vez tolerou razoavelmente os medicamentos e, duas semanas depois, apesar de algumas reclamações e queixas a esse respeito, foi obrigada a admitir que havia melhorado bastante. Estava com muito bom aspecto, disposta, os medos e apreensões vagos haviam desaparecido e tinha voltado a trabalhar normalmente em sua loja.
Exatamente um mês depois, em dezembro, foi levada às pressas ao consultório porque estava "passando muito mal". Tudo havia começado uma semana antes, coincidindo com certa tensão pré-menstrual e a notícia da falência da construtora de uma sala que haviam comprado. Desde então, acamada, vinha dormindo durante quase todo o tempo devido a uma incoercível hipersonolência diurna e sofrendo episódios dissociativos seguidamente. Além disso, nos intervalos de lucidez, manifestava caprichos tolos e pueris ao lado de uma teimosia infantil e obstinada, mostrando-se exigente e tirânica em relação aos filhos e marido. Exigia a atenção contínua de todos de forma irascível e mal humorada, de um modo até então surpreendente e inusitado para os familiares. Durante o trajeto até o consultório havia falado e murmurado frases desconexas, parecendo estar "fora de si". À consulta, disse estar se sentindo "confusa", olhava-me com perplexidade, extremamente pálida e abatida, com a aparência descuidada, os cabelos pastosos e em desalinho. Dizia com muito vagar, a voz trêmula, semblante de sofrimento e colocando as mãos na cabeça desconsoladamente: "falo um monte de bobagens...sei que estou falando bobagens, mas não consigo parar...sinto muito medo, não sei de quê...". Ela relatava estar sentindo medo, apreensão e insegurança angustiantes e, ao mesmo tempo, indefiníveis. Além disso, sofria com uma hiperatividade autonômica que se havia instalado em seu organismo desde o início da crise e que não a abandonava, fazendo-a sentir continuamente frio intenso, tonteiras, náuseas, anorexia e sudorese. Por alguns momentos, durante a entrevista, tive a impressão de que seu nível de consciência objetal flutuava levemente, fenômeno que se expressava sob a forma de desatenção fugaz e momentânea acompanhada de alguma perplexidade em seu semblante.
Como estivesse suspeitando de quadro afetivo atípico, receitei-lhe carbonato de lítio (600mg/dia) associado a amitriptilina (25mg/dia) e solicitei TC do crânio, além de química sanguínea (hemograma, ionograma, glicemia, tireoidograma, uréia e creatinina) para afastar outra condição médica possível. Entretanto, devido à sua aguçada impressionabilidade, após ler a bula dos medicamentos receitados e ter ingerido a sua primeira dose, passou a manifestar praticamente todos os efeitos colaterais lá registrados, o que me foi comunicado através de um telefonema do marido. Dessa maneira, como se recusasse terminantemente a usar os medicamentos "com medo que lhe fizessem mal" e, além disso, começasse a ficar agitada e insone, prescrevi ácido valpróico (de início na dosagem de 500mg/dia e, posteriormente, 1,0g/dia) associado com maprotilina (iniciando com 25mg/dia e aumentando até chegar a 75mg/dia). O primeiro é um excelente estabilizador do humor e o segundo consiste num antidepressivo eficaz, com propriedades ansiolíticas e muito bem tolerado na grande maioria dos casos. Nem cheguei a cogitar em utilizar um ISRS devido aos seus potenciais efeitos colaterais, como anorexia e náuseas, que poderiam sobrepor-se e agravar os sintomas agudos neurovegetativos presentes no quadro clínico. A paciente estava muito abatida, havia emagrecido rapidamente e só tolerava alimentação branda e líquida, tal como sopas e mingaus.
Retornou ao consultório em 27/12/99, oito dias após ter iniciado os últimos medicamentos e já apresentando melhora clínica significativa. Tanto os episódios dissociativos como a hiperatividade autonômica haviam desaparecido, mostrava-se com o aspecto geral bem mais cuidado, a consciência objetal estava clara, estava dormindo e alimentando-se normalmente e, há cerca de dois dias, voltara a trabalhar na loja em regime de meio expediente. Ainda sentia alguma indisposição e fraqueza corporal e relatava leves flutuações do humor, estando algo deprimida. Dizia não lembrar-se com nitidez do que havia se passado com ela, restando em sua memória apenas alguns fragmentos esparsos daquilo que ela chamava de "grande pesadelo". Lembrava-se de que, ao agravar-se a crise, tinha vivenciado sensações anômalas "assustadoras", as quais descrevia "como estar sendo completamente sugada para o interior de um 'túnel' ou 'vácuo', ficar assistindo passivamente aos fatos em 'outra dimensão', sem poder agir, sem poder fazer nada", tudo isso com uma sensação de grande mal estar corporal e extrema adinamia e astenia, que a impediam de levantar-se do leito.
Voltou em 07/01/2000, estando em uso de maprotilina na dosagem de 75mg/dia e ácido valpróico na dose de 1,0g/dia. Disse estar se sentindo bem, apesar de considerar que "ainda não havia voltado completamente ao normal", não obstante ter passado as festas de fim de ano na praia com a família e participado "um pouco" das comemorações. Relatou que estava apresentando pesadelos frequentes e hipersonolência diurna, sentindo-se apática, insegura, como se "ainda houvesse alguma coisa". Disse, ainda, que "não conseguia sentir alegria e nem tristeza"com os acontecimentos do dia a dia, situação inédita para ela, pois contrastava com o seu temperamento vibrante e arrebatado.
Além disso, todos os exames complementares anteriormente solicitados mostraram-se normais. Resolvi, então, manter a prescrição anterior, pedindo, ainda, dosagem sanguínea de ácido valpróico. A hipótese diagnóstica que levantei, foi a de que o quadro clínico apresentava certas características de Transtorno Bipolar Misto, considerando-se uma suposta periodicidade das recorrências fásicas, o que, por sinal, somente o tempo e a observação da evolução clínica poderiam confirmar. Os sintomas depressivos eram por demais evidentes, ao passo que os hipertímicos eram caracterizados por extrema irritabilidade, alternâncias e mudanças rápidas de estado de ânimo, além de vivências que ela chamava de "turbilhão de pensamentos" e outras, inusitadas, nas quais experimentava uma vertiginosa sucessão de imagens e cenas caóticas e rápidas. Houve um episódio de ecmnésia, quando recitou uma poesia da infância, até então aparentemente esquecida, fenômeno que, ao nosso ver, estava relacionado ao fluxo rápido de idéias e representações psíquicas Os outros sintomas podiam ser considerados atípicos, tais como os sucessivos episódios dissociativos e alterações do nível da consciência.
Retornou à consulta em 15/02/2000 com aspecto excelente e completamente assintomática. Disse que agora "tinha voltado ao normal" e, exceto pelo ganho de peso discreto, não manifestava nenhuma queixa adicional. Mostrava-se bem humorada e otimista e a taxa plasmática de ácido valpróico foi de 87,5mg/ml, ou seja, perfeitamente no interior da janela terapêutica da droga.
Em abril, fui obrigado a diminuir a dosagem de maprotilina para 25mg/dia, pois ela havia engordado cerca de 5,0 kg (estava com 68,0 kg, enquanto seu peso normal era de 63,0 kg) e, em julho, apesar das minhas advertências, G.N. resolveu, por sua própria iniciativa, reduzir a dose do ácido valpróico para 500mg/dia e suspender a maprotilina.
Ela não deu mais notícias até que, em 11/09 do mesmo ano, ligou-me em caráter de urgência. Disse, aflita, que havia interrompido o uso de ácido valpróico há um mês e que desde o último fim de semana vinha sentindo "ameaça de nova crise", ficando um pouco "confusa" e "chorando à toa". Diante desse fato, recomendei que recomeçasse a usar os medicamentos nas dosagens anteriores (1,0g/dia de ácido valpróico e 50mg/dia de maprotilina). Três dias depois foi ao consultório, quando, já se sentindo melhor, relatou que dessa vez as crises foram precedidas por tendência ao isolamento e, posteriormente, surgiram medos infantis, calafrios e desagradável "sensação de mergulho" entremeada com
aumento considerável do fluxo de pensamentos, além da visualização rápida e caótica de cenas e imagens fragmentárias e desconexas, à semelhança da última crise.
Entretanto, cerca de um mês depois, como voltasse a ganhar peso considerável e surgisse edema significativo de membros inferiores (+++), resolvi, a contragosto, suspender os medicamentos, mesmo estando ela muito bem disposta e absolutamente eutímica. Decidi, então, tentar um outro estabilizador do humor, a gabapentina, desde que estava convencido de que G. N. era portadora de Transtorno Bipolar Atípico de início tardio, caracterizado pela irrupção periódica de fases de viragem rápida e ultrarrápida e que exibiam um caráter psicóide em sua psicopatologia.
De fato, o conteúdo de suas vivências não podia ser catalogado como 'psicótico', mas, por outro lado, também não podia ser considerado como 'neurótico'. As estranhas sensações que relatava, os medos infantis e os pavores inexplicáveis que vivenciava, o extremo abatimento, a perplexidade, as flutuações do nível da consciência, a crítica algo debilitada que demonstrava através de seu comportamento grosseiramente caprichoso e histriônico, tudo isso despertava no observador, como registro fenomenológico, um certo sentimento de estranheza e de incompreensão devido à constatação de uma ruptura aguda em seu encadeamento existencial, que até então se mostrara uniforme e sincrônico.
De qualquer maneira, a paciente, em uso regular de 1.200mg/dia de gabapentina, evoluiu muito bem até 12/04/2001, ocasião em que começou a manifestar novamente sintomas prodrômicos das crises, tal como mal estar generalizado, tonteiras, polidipsia e anorexia. Dois dias depois, já se mostrava bastante irritadiça, angustiada, com choro fácil e um pouco "confusa". Não melhorou nem um pouco mesmo após aumento da dosagem de gabapentina para 2,0g/dia e reintrodução do antidepressivo maprotilina. Continuou acamada e, se de um lado evidenciava extrema prostração e abatimento, de outro mostrava-se exigente, caprichosa e irascível em relação a tudo, principalmente à família.
G. N. só veio melhorar cerca de um mês após o início dos sintomas e uma tentativa fracassada de tratamento com outro estabilizador do humor, o topiramato, 25mg/dia. Ao fim de vinte e cinco dias, não tive outra alternativa senão prescrever novamente o ácido valpróico, inicialmente na dosagem de 500mg/dia e, depois, aumentando-a para 1,0g/dia.
A resposta terapêutica foi, mais uma vez, bastante favorável ao medicamento como já o havia sido nas ocasiões anteriores, demonstrando, assim, uma notável seletividade da sintomatologia do quadro clínico à referida droga.
Dessa maneira, a paciente voltou a apresentar remissão completa dos sintomas, exceto em um único ponto: a satisfação que poderia expressar pela plenitude de sua própria existência. Tentando explicar melhor o que ocorria, passarei a revelar alguns aspectos de nosso relacionamento médico-paciente. A princípio, no início do tratamento, G. N. manifestara, além de resistência e oposição a mim e às minhas condutas, uma clara hostilidade à minha pessoa e às minhas prescrições. Sempre reclamara disso ao marido e aos filhos, dizendo que não confiava em mim e que não simpatizava comigo. Achava-me, segundo suas palavras, "muito seco" e demasiadamente "objetivo". A sua natureza histérica reclamava uma atenção ininterrupta e incondicional de minha parte às suas queixas e aos seus sofrimentos, uma dedicação integral e exclusiva a seu caso. Quanto ao marido, esse amava-a com devoção e satisfazia todas as suas vontades e caprichos.
Aparentemente, o seu ex-terapeuta, de maneira voluntária ou não, caíra na armadilha e passara, ao invés de tratá-la adequadamente, a fazer-lhe uma corte galanteadora e ardente. Ele tentara satisfazer, desse modo, a natureza histérica de G.N. caracterizada por sua necessidade contínua de ser o centro das atenções, seus ideais inatingíveis de vida sublime, sua visão idílica do mundo e seus sonhos românticos de heroísmo e de amor, necessidades essas que, é bom ressaltar, mostravam-se mais estéticas do que propriamente eróticas. Assim, G.N. mostrava-se particularmente sensível e grata àquelas conhecidas tragédias amorosas da literatura universal, tais como as de Romeu e Julieta ou Abelardo e Heloísa. Uma ocasião, à consulta, relatou ter sonhado que estava vestida com uma túnica esvoaçante num lugar que parecia um templo antigo, assemelhando-se a "uma sacerdotisa" e, ao mesmo tempo, a "uma rainha". Continuando o relato, disse que ao levantar a cabeça viu a imagem de seu ex-terapeuta, também trajando uma túnica sacerdotal, em pé diante do altar do templo numa atitude de êxtase, em fervorosa oração. Não demorou a concluir que se parecia extraordinariamente, no sonho, com "Cleópatra", identificando-se imediatamente e com indisfarçável satisfação com a poderosa e trágica soberana egípcia.
De qualquer maneira, mesmo embirrando comigo no início, com o passar do tempo ela foi demonstrando mais aceitação pelas minhas condutas e orientações terapêuticas, conseguindo posicionar-se de forma mais positiva e cooperativa ao longo do tratamento. No entanto, infelizmente, a coisa não parou por aí. Com o decorrer do tempo, como era de se esperar, G.N. começou a demonstrar por mim algo mais do que simples sentimentos de admiração ou de gratidão que uma paciente costuma nutrir por seu médico. Iniciou, então, à semelhança do que havia ocorrido com seu ex-terapeuta, a encetar vôos e fantasias românticas comigo, primeiro secretamente e depois de modo vago e indireto. Entretanto, como eu não me desse a perceber essas alusões genéricas, ela foi mais direta e, pudicamente, revelou seus reais sentimentos. Tentei fazê-la perceber que eram simples devaneios compatíveis com seu temperamento excessivamente sonhador, mas ela parece ter ficado bastante decepcionada comigo. Desse modo, sentindo-se rejeitada, resolveu procurar outro médico e encerrou o tratamento em 12/07/2001.
Com efeito, o termo bovarismo proposto por alguns autores para designar o temperamento e o modo de ser histérico parece bastante adequado a esse caso porque realmente lembra Emma Bovary, a imortal personagem de Gustave Flaubert em sua obra "Madame Bovary", arrebatada por seus sonhos românticos e inverossímeis.
Para complementar a discussão do caso, parece correto concluir que a morfologia clínica final das crises agudas de G.N. tenha sido o resultado, como já dissemos, de um transtorno de humor básico - mais precisamente, a instalação de um quadro misto com vivências entrelaçadas de sintomas depressivos e hipertímicos - intermediado por sua estrutura caracterológica. Dito de outro modo, a desordem afetiva mista, o verdadeiro "morbus" primário, ao incidir sobre o "filtro" ou "prisma" caracterológico dotado de proeminentes traços histriônicos, acionaria uma sequência de alterações fisiopatológicas secundárias, o "morbus" secundário, produzindo, desse modo, a morfologia clínico-psicopatológica final, isto é, sintomas afetivos mesclados com vivências e atitudes histriônicas bizarras e inadequadas, à semelhança de uma verdadeira "psicose histérica". Dessa maneira, o componente histriônico da personalidade modificar-se-ia em algo muito além do que simplesmente características exageradas ou amplificadas pela desordem primária, transformar-se-ia, sim, em um modo de ser psicóide, ou seja, em um quadro clínico semelhante, em muitos pontos, às psicoses endógenas, mas denotando sintomas e vivências psicopatológicos fenomenologicamente frustros e abortados, no caso em pauta exemplificados pelas flutuações do nível da consciência, perplexidade, crítica debilitada e representações imagéticas incoerentes, vívidas e em tropel.
Creio que a análise pormenorizada de um caso clínico pode ser bastante útil para o psiquiatra à medida que ilumina aspectos até então obscuros da psicopatologia estudada e induz desdobramentos teóricos que se revelarão de grande valia para sua prática médica, exercitando seu raciocínio clínico e aguçando a sensibilidade de registro fenomenológico como um todo. Não podemos esquecer que somos herdeiros diretos de um ramo do conhecimento inserido no âmbito maior da Filosofia da Natureza, fato que impulsiona continuamente as nossas ações para o objetivo central almejado, isto é, a procura ininterrupta do desvendamento de todas as formas do adoecer psíquico e a estruturação incessante e cada vez mais aprimorada de nossa Ciência Psiquiátrica.