* Psiquiatra, ex-residente da Residência
de Psiquiatria e Neurologia do HC - UFMG Descreve-se caso de paciente do sexo masculino, 27 anos, que vinha cursando com tricotilomania e tricofagia, graves a ponto de ficar sem os supercílios. Inicialmente suspeitou-se de comorbidade com esquizofrenia e o quadro apresentou melhora inicial visível com o emprego de neuroléptico. Sua evolução e novas investigações, como exames neuropsicológicos e o uso do International Personality Disorder Examination (IPDE), indicaram comorbidade com transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno de personalidade evitativa, transtorno de personalidade dependente e provável retardo mental leve, excluindo-se o diagnóstico de esquizofrenia. A resposta ao uso de neurolépticos se manteve apenas parcialmente a longo prazo. Antidepressivos serotoninérgicos também foram empregados. Discute-se sobre as comorbidades na tricotilomania, o diagnóstico diferencial com esquizofrenia e o papel dos neurolépticos no seu tratamento. Palavras- chave: Tricotilomania; neurolépticos; esquizofrenia; transtorno obsessivo-compulsivo; transtorno de personalidade evitativa; transtorno de personalidade dependente; oligofrenia. Caso Clínico Paciente atendido no Serviço de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da UFMG a partir de 07-12-98. Identificação J.N.C. é um jovem de 27 anos, melanoderma, solteiro, católico, natural e residente em BH, desempregado, formação escolar até a quinta série do primeiro grau. Queixa Principal Nervoso História da Moléstia Atual Primeiros sintomas aos 23 anos. Iniciou o hábito de arrancar e ingerir freqüentemente os pêlos do rosto, incluindo supercílios, e dos antebraços. Tornou-se repetitivo em seu discurso, eventualmente ria e falava sozinho. Foi demitido do emprego, o que o irritou muito. Nesta ocasião, relata que veio uma fala em minha cabeça: você não é ninguém, rasga seus documentos, ao que o paciente rasgou e queimou seus documentos. Nunca mais trabalhou ou teve relacionamentos amorosos, passou a ficar recluso em casa, reticente e a comunicação com as pessoas tornou-se restrita. Iniciou desleixo nos cuidados com a higiene, raramente tomava banho ou cortava o cabelo. Apresentava períodos de insônia. Lavava repetidamente o chão do seu quarto, onde deixava uma garrafa dágua para lavá-lo sempre que quisesse. Dizia que o chão estava com vírus, que vinha uma fala em sua mente: tem que estar limpo (na ocasião do primeiro atendimento, já há um ano não apresentava essas compulsões de limpeza). Costumava ficar trancado no quarto, sem falar com ninguém. Às vezes quebrava coisas. Apresentava-se com aparência entristecida e alimentava-se pouco. Nega tratamentos prévios. Nunca
havia se consultado antes por resistência em ir ao médico,
segundo a família. Compareceu à primeira consulta sem saber
que iria a uma entrevista psiquiátrica. Julgava ser acompanhante
da irmã, e que esta é quem iria consultar-se. Nega doenças prévias, tabagismo, etilismo, uso de drogas. História pessoal O paciente é o mais novo de seis irmãos: quatro mulheres, o paciente e o primogênito, já falecido. A família nega doenças graves na infância e atrasos no desenvolvimento neuropsicomotor. Seu pai, de quem muito gostava, faleceu quando tinha 8 anos. Nessa época esteve muito abatido, segundo a mãe ficou 3 dias sem falar. Desde a morte do pai, seu irmão mais velho passou a comandar a casa. Ele comprou o lote onde moravam e os outros irmãos o obedeciam e respeitavam. O paciente tinha um temperamento tranqüilo, era mais calado, possuía poucos amigos. Porém, convivia bem com as pessoas, praticava esportes, freqüentava a igreja. Não tinha dificuldades escolares. Aos 13 anos, começou a trabalhar paralelamente aos estudos, cortava arames em uma fábrica de gaiolas. Posteriormente passou a trabalhar em uma lavanderia, como entregador. Com 15 anos, decidiu parar de estudar para dedicar-se só ao trabalho e ajudar nas despesas de casa, apesar de sua família não estar em dificuldades financeiras. Possuía relação muito próxima com o irmão. Dormiam juntos na mesma cama, iam juntos à discoteca nos fins-de-semana. Nunca teve namoradas fixas, apenas relacionamentos eventuais. Estando o paciente com 16 anos, seu irmão contraiu hepatite e veio a falecer, aos 23 anos de idade. Desde então, J.N.C. parou de sair à noite, tornou-se mais recluso. História familiar Paciente e familiares negam doenças psiquiátricas na família. Exame do estado mental Paciente com cuidados higiênicos preservados. Cooperativo. Praticamente não tem os supercílios, o que lhe confere um aspecto bizarro. Arranca pequenos fios da barba e dos supercílios e os ingere durante a entrevista. Orientado, consciência clara, normovigil, normotenaz. Sem alterações da memória, da consciência do eu, da senso-percepção ou idéias delirantes aparentes. Relata pensamentos invasivos que ocorriam anteriormente, aos quais se refere como falas que vinham em sua mente. Discurso pobre e evasivo. Apresenta períodos de mussitação pouco inteligíveis. Ansioso e inquieto, retorce as mãos durante toda a consulta. Boa interpretação de provérbios, inteligência limítrofe. Crítica prejudicada, nega arrancar os pêlos do rosto. Súmula psicopatológica Aspecto bizarro. Orientado. Consciência clara. Normovigil e normotenaz. Memória preservada. Discurso pobre e evasivo. Ansioso. Crítica prejudicada. Presença de mussitação, tricotilomania e tricofagia. Inteligência limítrofe. Hipóteses diagnósticas - Tricotilomania, F63.3 da CID-10. Evolução do caso Foi instituído tratamento com haloperidol, 3 mg/dia, e biperideno, 2 mg/dia. J.N.C. retornou em 25/01/99 com relato de estar falando menos sozinho, de ter apresentado melhora do humor e dos cuidados de higiene, de estar conversando mais com as pessoas. Passava os dias em casa, sem atividades, assistindo TV. Ao exame, mantinha mussitação, tricotilomania e tricofagia. Aumentamos o haloperidol gradativamente até atingirmos 10 mg/dia, em 11/02/99. Em 11/03/99 apresentava-se com melhora importante da aparência, devido a um crescimento já significativo dos supercílios. Não vinha apresentando mais tricotilomania ou mussitação. Dizia que falava sozinho porque pensava alto, ficava lembrando das coisas- negava alucinações auditivas. Reduzimos o haldol para 7,5 mg/d, devido a sedação, e o biperideno foi suspenso. Em 08/04 paciente compareceu à consulta já com aparência normal. Vinha exercendo algumas atividades produtivas, ajudando o cunhado a construir o muro de casa. Pouca crítica, dizia: não estou doente, não preciso de psiquiatra. Como ainda se queixasse de sedação, reduzimos o haldol para 5 mg/dia. Em 13/08, encaminhamos o paciente para
o serviço de terapia ocupacional do NAPS de Ribeirão das
Neves (grande Belo Horizonte), a fim de estimulá-lo a exercer atividades
produtivas e melhorar seu relacionamento com outras pessoas. Em 03/2000, o paciente relatou apresentar-se mais ansioso, em virtude de a família pressioná-lo para trabalhar e sua irmã estar procurando emprego para ele. Dizia-se preocupado em não dar conta do novo emprego. Apresentava novamente tricotilomania e tricofagia, inclusive observados ao exame, porém em menor intensidade do que anteriormente. Assim sendo, optamos por elevar novamente a dose de haloperidol para 7,5 mg/dia. Em 13/04/00 mantinha tricotilomania. Associou-se fluoxetina 20 mg/dia, com resposta apenas parcial, conforme observado em maio e junho de 2000. Em 27/07/00 aumentamos o haloperidol para 10 mg/d, sem resposta. Em 31/08/00 aumentamos fluoxetina para 40 mg/d, com pequena melhora da tricotilomania. Em 09/00 solicitamos risperidona junto à Secretaria de Saúde. Em 14/12/00, em função de importante acatisia e tremores de membros superiores, reduzimos haloperidol para 5 mg/d e fluoxetina para 20 mg/d. Obteve-se liberação da risperidona em janeiro/01. Nessa ocasião, o paciente se apresentava bastante ansioso, angustiado e com acatisia. Queixava-se de pensamentos intrusivos que lhe ordenavam cortar os pulsos ou jogar-se na frente de carros. Apesar de citá-los como vozes, não os percebia como vindos de fora ou como produzidos por outra pessoa. Ocorrem preferencialmente em situações ansiogênicas como estar sozinho, ser xingado pela irmã ou ver facas e outros objetos pontiagudos. Dizia que com o tratamento ele ao menos conseguia controlar o impulso de obedecer tais pensamentos. Mantinha tricotilomania e tricofagia, embora em níveis inferiores ao pré-tratamento. Em 15/01/01 iniciamos risperidona, 4 mg/d, com suspensão do haloperidol. Em função da ausência de melhora, substituímos a fluoxetina por clormipramina, 75 mg/dia (em 29/01/01), aumentamos a risperidona para 6 mg/dia (em 12/02/01) e a clomipramina para 150 mg/dia (em 26/03/01). No último retorno (02/04/01), relata melhora da acatisia, mas mantendo pensamentos intrusivos e algum grau de tricotilomania e tricofagia. Apresenta boa interação afetiva à consulta, adequadamente trajado, supercílios com algumas falhas. Durante a entrevista arranca e ingere pêlos dos supercílios algumas vezes. Encontra-se lúcido, orientado, normovigil, normotenaz, memória preservada. Seu discurso é organizado, não havendo alterações formais do pensamento. Relata pensamentos intrusivos esporádicos. Diz sentir-se uma pessoa carente pela falta de amigos, de uma companheira e de um emprego. O psiquiatra é a única pessoa com quem posso falar de meus sentimentos. Face à melhora apenas parcial, optamos por aumentar a risperidona para 8 mg/d. Resultados de exames - Exames laboratoriais: hemograma, íons, funções tireoideana, renal e hepática, glicemia e Tomografia Computadorizada de Crânio sem alterações. - Exame neuropsicológico, realizado
em 30/03/2000 por Diniz: Mini- Exame do Estado Mental, Teste das Matrizes
Progressivas de J. C. Raven, Teste de Sondagem Intelectual, Teste de Aprendizagem
Auditivo Verbal de Rey, Teste da figura complexa de Rey, Fluência
Verbal, Alcance de Dígitos, Teste dos trigramas de consoantes,
Teste de Stroop (Versão Vitória), Teste Gestáltico
Visuo-motor de Bender, Token Test, Série Both de Testes Manuais.
Conclusão: a avaliação das funções
cognitivas indicam comprometimento cognitivo global com prejuízo
mais acentuado nas seguintes áreas: Hipóteses diagnósticas atuais Diagnóstico pela CID-10: Diagnóstico multiaxial pelo DSM-IV: Inicialmente, consideramos para o paciente as hipóteses diagnósticas de tricotilomania, esquizofrenia e oligofrenia. Quanto à tricotilomania, não há dúvidas. Houve fatores que nos sugeriram a hipótese
de esquizofrenia indiferenciada. Porém, com a evolução
do caso e à luz de novas investigações, esses fatores
adquiriram outro peso diagnóstico: A hipótese de oligofrenia foi mantida e reforçada pela avaliação neuropsicológica, que sugere um déficit intelectivo leve ou, na melhor das hipóteses, um grau de inteligência no limite inferior da normalidade. Além disso, há o encerramento precoce dos estudos do paciente, que sugeriria um início das dificuldades cognitivas antes dos 18 anos, e as dificuldades adaptativas por ele apresentadas. J.N.C. preenche ainda critérios diagnósticos para transtorno obsessivo-compulsivo, com predomínio de idéias ou ruminações obsessivas (os pensamentos intrusivos de cortar-se ou jogar-se na frente de carros). Antes ainda do primeiro atendimento, apresentava compulsões de limpeza, não observadas atualmente. O paciente apresentou 10 pontos para transtorno de personalidade evitativa no IPDE, correspondentes aos seguintes critérios da CID-10 para esse transtorno: (a) sentimentos invasivos e persistentes de tensão, apreensão e desconforto em situações sociais; (b) alguns sentimentos de inferioridade; (c) preocupação em ser rejeitado em situações sociais; (d) relutância em se envolver com pessoas desconhecidas, cuja aceitação seja incerta; (e) restrições no estilo de vida devido à insegurança frente a situações desconhecidas; (f) evitação de atividades sociais e ocupacionais que envolvam contato interpessoal significativo. Este transtorno de personalidade pode explicar seu alto grau de limitação em atividades sociais, inclusive no contato normal com mulheres, bem como explicaria sua dificuldade inicial de procurar o tratamento. Para transtorno de personalidade dependente teve 7 pontos no IPDE. Dentre os critérios da CID-10, apresenta: (a) permissão para que outros (no caso, sua mãe) tomem decisões importantes de sua vida; (d) sentimentos invasivos de desconforto e desamparo quando sozinho, por sentir-se incapaz de cuidar de si mesmo; (e) preocupações quanto a perder alguma pessoa com a qual tenha relacionamento íntimo e de ser deixado para cuidar de si próprio (sua grande preocupação é com a morte da mãe, note-se que sofrera muito com a morte do pai); (f) capacidade limitada de tomar sozinho decisões cotidianas. Este transtorno explica seu alto grau de dependência pela mãe e, de certa forma, também pelo seu médico (o psiquiatra é a única pessoa com quem posso falar de meus sentimentos). Conforme o IPDE, teve 4 pontos para transtorno de personalidade esquizóide. Preenche completamente dois dos critérios da CID-10, que poderiam, por outro lado, ser justificados por seus traços evitativos: (f) preferência quase invariável por atividades solitárias; (g) preocupação excessiva com fantasia e introspecção. Quanto ao critério (h), apresenta a falta de amigos íntimos ou de relacionamentos confidentes (ou ter apenas um), mas não a ausência de desejo por tais relacionamentos. Em fase inicial do seu acompanhamento chegou a manifestar indiferença a relacionamentos sexuais - critério (e) -, o que não mais se verificou. Os demais critérios, como frieza emocional, indiferença a elogios ou críticas, insensibilidade para convenções sociais, não se aplicam ao paciente. Dessa forma, este diagnóstico se torna menos provável. A tricotilomania tem altas taxas de comorbidade com outras patologias psiquiátricas, com destaque para transtorno obsessivo-compulsivo, mas incluindo também transtorno depressivo, transtorno de ansiedade generalizada, dependência química, fobia social e vários transtornos de personalidade(11). Não é comum a comorbidade de tricotilomania com esquizofrenia. Em revisão na PUBMED, foram encontrados apenas dois artigos relatando essa associação (12,13). Summary Key words: Trichotillomania; neuroleptic; schizophrenia; obsessive-compulsive disorder; anxious personality disorder; dependent personality disorder; mental retardation. Bibliografia: 1. World Health Organization, Division
of Mental Health. The international personality disorder examination (IPDE).
Version 1.0. Geneva: World Health Organization, 1992. * Agradecimento especial ao prof. Eduardo Queiroz |