DESDIFERENCIAÇÃO SIMBÓLICO-AFETIVA:

UM MODELO TEÓRICO PARA AS PSICOSES ESQUIZOFRÊNICAS

Souza, G.F.J.*

*Médico Psiquiatra

Preceptor da Residência de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da UFMG

RESUMO:

O autor estabelece o conceito de desdiferenciação simbólico-afetiva objetivando a proposição de um modelo teórico que possa elucidar a morfologia fenomenológica dos sintomas psicopatológicos das psicoses endógenas, notadamente do grupo das esquizofre nias. De posse desse conceito, além de outros como sensorialização e reificação, empreende uma análise detalhada dos sintomas de primeira ordem de KURT SCHNEIDER, procurando firmar um nexo teórico plausível capaz de esclarecer a gênese e a estruturação dessas vivências anômalas tão características da esquizofrenia.

UNITERMOS:

Esquizofrenia

Desdiferenciação simbólico-afetiva

Reificação

Sensorialização

Sintomas de primeira ordem de K. Schneider

Psicopatologia

INTRODUÇÃO:

O conceito que hoje apresento pertence originalmente a um ensaio teórico de psicopatologia que fiz em 1990, denominado "As Psicoses Endógenas: Uma Visão Fenomenológico-Dinâmica"(1). Desde então, na medida do possível, venho averiguando a existência de algum conceito similar na literatura especializada e, ao fim de oito anos de pesquisa, parece que não o há. Entretanto, mesmo com os recursos técnicos da atualidade, tais pesquisas nem sempre são totalmente satisfatórias, levando-se em conta o grande número de publicações novas e a possibilidade de algum conceito similar ter sido lançado nesse período. Mesmo assim, considerando-se a aceitação positiva com que o referido ensaio foi recebido em Heidelberg pelo Prof. Alfred Kraus em 1991 após a apresentação feita pelo Prof. Maurício Viotti Daker, atualmente Prof. Adjunto de Psiquiatria da UFMG e na época doutorando daquela Universidade, é razoável concluir-se que o trabalho possuía alguma originalidade, ainda mais que ele gentilmente ofereceu-se para prefaciá-lo caso fosse publicado. Desse modo, é intenção do presente artigo, além de definir e discorrer sobre o conceito proposto, tentar provar sua utilidade no raciocínio clínico da prática psiquiátrica do dia a dia, consistindo em mais uma ferramenta teórica que o médico poderá utilizar no exercício diagnóstico e no entendimento das vivências anômalas próprias das esquizofrenias.

ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO:

Para começar, considerando-se que o pensamento é constituído por uma ampla associação de idéias e representações de natureza simbólica, faz-se necessária uma abordagem teórica breve do assunto. Em um outro trabalho(2), já tivemos a oportunidade de analisar a questão da diferenciação simbólica do psiquismo humano, inclusive no que se refere às dimensões ontogenética e filogenética. Naquela ocasião, formulei a hipótese da ascensão do símbolo, partindo da esfera sensoperceptiva rumo à intelectualidade, primado da representação e, quanto a isso, poderemos dizer que os dois pólos básicos desse trajeto, isto é, o pólo perceptivo e o representativo são ocupados pelos dois tipos axiais de conteúdo psíquico, a saber, respectivamente, a imagem perceptiva e a imagem representativa. Já estabelecemos antes (2) a hipótese de que o símbolo, em sua ascensão rumo à intelectualidade, iria, gradualmente, perdendo aquela aura original de sensorialidade material e concreta, adquirindo progressivamente, em contrapartida, um atributo cada vez mais abstrato e representativo. Dito de outra forma e com o propósito de ilustrar da melhor maneira possível o que estamos afirmando, poderíamos estabelecer que a imagem perceptiva equivaleria a uma nitidez sensorial igual ao infinito e a uma ‘nitidez’ abstrata igual a zero, enquanto, por outro lado, a imagem representativa equivaleria a uma nitidez sensorial igual a zero e a uma ‘nitidez’ abstrata igual ao infinito. Normalmente, a imagem perceptiva é significada pelo sujeito como sendo oriunda do mundo externo. Qualquer pessoa crê, de modo naturalmente convicto, que as imagens acústicas ou ópticas que percebe estão relacionadas diretamente a objetos situados fora de si, estão ligadas a fatos e eventos que acontecem externamente a si mesma, são causadas por algo ou por outrem. A nitidez sensorial que acompanha a vivência de tais imagens não dá lugar a nenhuma dúvida a respeito de sua origem. Ao contrário, a imagem representativa é significada como sendo oriunda do interior do próprio psiquismo subjetivo. Um conceito, uma opinião pessoal e um desejo, quando chegam a ser representados subjetivamente, estão carregados de certeza íntima quanto à identidade unívoca dos produtores dessas idéias e impressões afetivas. A delimitação subjetiva bem delineada entre esses dois mundos, o exterior e o interior, constitui a base do sistema de juízos de realidade do indivíduo.

Anteriormente (2), discutimos a respeito da natureza do pensamento mágico e ressaltamos algumas analogias entre o pensamento mágico-arcaico e o infantil. Aparentemente, parece que essas analogias se fundam naquilo que poderíamos denominar imprecisão de delimitação entre a imagem perceptiva e a representativa, ou seja, entre a realidade e o imaginário. Ao nosso ver, o pensamento mágico-primitivo acompanhado de todas as suas características peculiares, por exemplo, da crença de poder agir à distância, de poder infligir malefícios ao inimigo odiado através da execução de danos às partes de uma efígie que o representa, em suma, o ato de imaginar, corresponder, sem reservas, ao de conseguir o desejado, constitui-se como um bom exemplo de imprecisão de delimitação entre a imagem perceptiva e a representativa. Nesse caso, a dimensão simbólica abstrata, representativa, ainda se encontra carregada de sensorialidade concreta, perceptiva, ocasionando, desse modo, a convicção subjetiva de eficácia das ações do pensamento, operadas pelo imaginário, sobre a realidade.

Desde que aceitemos a definição de simbólico como sendo aquilo que media o sensível investindo-o de um sentido(3,4), torna-se provável que uma imagem representativa altamente abstrata encerre espécies de fórmulas sensoriais comprimidas (5), isto é, inclua os conteúdos sensoriais originais que o fator simbólico conseguiu mediar completamente de maneira progressiva. Isso é bastante visível, em primeiro lugar, nos sonhos, onde as representações abstratas desdobram-se e, posteriormente, norteadas pelas diretrizes de polarização induzidas por relações de sentido análogas, condensam-se fragmentariamente sob a forma de conteúdos sensorializados e reificados, ocasionando o aspecto peculiar do material onírico. Em segundo lugar, e é isso que nos interessa neste trabalho, as manifestações psicopatológicas dos enfermos psicóticos sempre mostram esse caráter de sensorialização e reificação, apresentando-se ao observador e ao próprio doente, em certas fases da doença, como fenômenos estranhos, bizarros e incongruentes.

A propósito da forma do delírio primário esquizofrênico, já dissemos anteriormente(2) que poderia ser resultante da desdiferenciação da eficácia simbólica para mediar o material senso-perceptivo oriundo do mundo externo, apresentando, desse modo, um caráter arcaico e próprio das estruturas psíquicas filogeneticamente mais antigas. Por outro lado, o conteúdo extremamente variável do delírio poderia ser resultado do povoamento de um mundo interno - recém desprovido de mediação simbólica do sensível – pelos conteúdos psíquicos pré-conscientes e parcialmente simbolizados até antes da eclosão da doença, e que agora moldam e forjam uma nova saga pessoal encenada em um novo mundo subjetivo, fantasmático e totalmente reificado. Ora, quando o imaginário abstrato reifica-se completamente e passa a ocupar uma parte ou mesmo a totalidade da vida psíquica individual, o resultado é que as referências subjetivas quanto à delimitação precisa entre o mundo interior e o exterior se diluem e se perdem. Os desejos, aspirações e temores pessoais, anteriormente sendo constituídos por conglomerados de emoções e de representações subjetivas, passam a se realizar objetivamente através do processo de reificação, isto é, adquirem um caráter de realidade factual indiscutível e irrefutável. O desenrolar sensorializado e reificado da trama existencial íntima desejada ou temida ocorre paralelamente ao desmoronamento do patrimônio representativo abstrato do enfermo (complexo simbólico correspondente à inteireza da consciência individual), núcleo exclusivo de seu mundo interior. Conseqüentemente, há um sério comprometimento da convicção subjetiva, por parte do paciente, quanto ao reconhecimento de suas próprias ações diante do mundo externo como verdadeiramente suas. Desse modo, com a sensorialização do patrimônio pessoal representativo abstrato, pulveriza-se o núcleo de convicção de regência e de controle da consciência individual sobre suas próprias ações e pensamentos, transferindo-se os conteúdos psiquícos próprios do mundo interno para o espaço subjetivo reservado àqueles do mundo externo. Para o enfermo esquizofrênico, quase tudo vem ‘de fora’, uma série de eventos e ações situam-se exteriormente a ele: pensam por ele, impõem-lhe, roubam-lhe pensamentos, etc. Dessa maneira, os chamados fenômenos de intervenção alheia, sintomas psicopatológicos que, sob certas condições, podem ser patognomônicos da psicose esquizofrênica, resultam da sensorialização e da conseqüente reificação do patrimônio pessoal representativo abstrato e de sua subseqüente transferência para o espaço subjetivo que abriga os conteúdos psíquicos oriundos do mundo externo.

Em nossa opinião, a concepção jasperiana(6) de alteração do atributo de atividade da consciência do ‘eu’ pode ser muito bem compreendida de acordo com o que estamos postulando. Basta pensar no enfermo esquizofrênico completamente à mercê de seus conteúdos psíquicos inteiramente reificados, submetendo-se passivamente a ‘controles’ e ‘influências’ que vivencia como sendo impostos externamente a si mesmo e sem que nada possa fazer para atenuar tão tormentosas experiências. Nesses casos há, claramente, uma profunda alteração da consciência subjetiva de execução, com os enfermos vivenciando a impressão irrefutável de que, por exemplo, não são eles que pensam mas sim uma força estranha a eles, sentem-se como verdadeiros autômatos, acreditando que suas próprias ações estão sendo influenciadas ou comandadas por algo ‘de fora’ que freqüentemente, identificam como sendo um poder extraordinário. À medida que, na psicose esquizofrênica, se esvazia ou fragmenta o complexo simbólico correspondente à inteireza da consciência individual, pulverizam-se, conseqüentemente, os seus dois atributos que são a consciência de execução e a consciência do existir. Dissipa-se, no sujeito enfermo, a consciência de ser ele mesmo o produtor de suas próprias ações e pensamentos e, desse modo, a convicção pessoal de causalidade subjetiva é substituída pela convicção reificada de causalidade objetiva.

A dissolução do patrimônio representativo abstrato do paciente esquizofrênico, que eqüivale à profunda alteração do complexo simbólico correspondente à inteireza da consciência individual aliada à sua reificação e à perda da delimitação subjetiva precisa entre o mundo interior e o exterior, pode dar lugar a outras vivências estranhas e características desse tipo de doença. As representações ideativas que, no homem normal, correspondem às referências importantes relativas a dados de sua biografia, de seu percurso histórico-existencial, enfim, dos eventos axiais que estruturam a linha ininterrupta de sua consciência do existir como um ser singular e indivisível é que constituem aquele complexo simbólico responsável pelo sentimento de inteireza da consciência individual. É natural, então, que, quando esse patrimônio representativo abstrato se fragmente, haja, como conseqüência, a irrupção de certas vivências subjetivas estranhas e enigmáticas. Tal é o caso dos fenômenos de cisão da personalidade(6) que se constituem no exemplo mais marcante e típico da alteração da consciência da unidade do "eu". De forma semelhante, por vezes constatamos alterações da consciência da identidade do "eu", com os enfermos muitas vezes acreditando que se transformaram em novas pessoas, que ‘renasceram’ com a doença. Por outro lado, a transferência maciça de conteúdos psíquicos próprios do mundo interno para o espaço subjetivo reservado àqueles do mundo externo ocasiona as vivências originárias da alteração da consciência do "eu" em oposição ao mundo externo, ou seja, o doente se sente indissoluvelmente ligado aos objetos, fenômenos e ocorrências que têm lugar em um espaço fora de si mesmo.

Do ponto de vista clínico, pode-se observar como as transformações radicais da personalidade do doente esquizofrênico se sucedem, muitas vezes, de forma gradual e progressiva. Em muitos casos, os pacientes referem uma etapa de vivência, geralmente acompanhada por um estado subjetivo de expectativa vaga e intensa ou mesmo por uma espécie de perplexidade ansiosa e angustiante povoada por temores difusos e suspeitas obscuras, denominada humor delirante difuso(6,7). Essa etapa, habitualmente, antecede o período de transformações definitivas das vivências subjetivas sob a forma da eclosão de novas experiências pessoais anômalas que são chamadas de delírio primário(6,7) e onde tem lugar a implantação definitiva e irreversível da convicção reificada de causalidade objetiva. Podemos dizer que esse estado de transição eqüivale ao comprometimento gradual e progressivo da personalidade do enfermo esquizofrênico caracterizado pelas três alterações psíquicas fundamentais que já citamos e que enumeramos a seguir para facilitar a compreensão:

1- Alteração profunda, ou até dissolução, do patrimônio simbólico representativo pessoal (complexo simbólico correspondente à inteireza da consciência individual), o que ocasiona o comprometimento dos atributos da consciência de execução e da consciência do existir.

2- Perda da delimitação precisa entre os espaços subjetivos destinados a abrigar os conteúdos psíquicos oriundos do mundo interior e do exterior.

3- Reificação do exercício simbólico, ou seja, materialização concreta da dimensão simbólica abstrata da vida psíquica.

A confluência simultânea dessas três alterações básicas da vida psíquica podem levar à compreensão geral da natureza dos sintomas psicopatológicos costumeiramente exibidos pelos pacientes esquizofrênicos e que veremos, com detalhes, a seguir:

KURT SCHNEIDER(7) propôs uma classificação desses sintomas que dividiu em dois grupos básicos: sintomas de primeira ordem e de segunda ordem. Pertencem aos sintomas de primeira ordem as seguintes alterações:

Vivências de influência sobre a corporalidade

- produção ou subtração do pensamento

Fenômenos de intervenção alheia dos sentimentos

das ações voluntárias

Eco do pensamento
Sonorização do pensamento
Divulgação do pensamento
Roubo do pensamento
Percepções delirantes
Vozes dialogadas e vozes comentadoras.
Pertencem aos sintomas de segunda ordem os seguintes:

Inspirações delirantes
Ocorrências delirantes
Pseudopercepções restantes
Perplexidade, estranheza
Distimias depressiva e eufórica
Empobrecimento da vida afetiva
É quase desnecessário frisar a importância e a utilidade dessa classificação sintomatológica na prática clínica, embora reconheçamos que o achado de um ou mais sintomas de primeira ordem em um determinado paciente, num primeiro momento do exame, ou mesmo isoladamente, não implica obrigatoriamente o diagnóstico de psicose esquizofrênica. É sabido, por exemplo, que pacientes com doença afetiva podem, perfeitamente, apresentar sintomas similares e daí se torna necessária a observação cuidadosa da evolução clínica da doença e, mesmo, de testes terapêuticos experimentais com carbonato de lítio. A respeito disso FROTA PESSOA(9) considera que: "... segundo o DSM - III, pessoas com doença afetiva podem apresentar delírios (inclusive paranóicos, pag. 187), alucinações, afrouxa mento marcado da associação de idéias, pobreza de pensamento, falta de seqüência lógica no discurso e comportamento bizarro, seriamente desorganizado ou catatônico (pag. 340). E isso não constitui raridade, pois, segundo a magistral revisão de POPE e LIPINSKI (1978), de 20% a 50% dos casos de doenças afetivas são acompanhados de manifestações psicóticas como essas, isoladas ou em grupos ...".

Por outro lado, em sentido inverso, praticamente todos os pacientes acometidos de psicose esquizofrênica apresentam aqueles sintomas de primeira ordem nos períodos agudos da doença. O que, realmente, significa esse fato?

Para começar a responder essa pergunta, teremos que empreender, em primeiro lugar, um estudo de cada um daqueles sintomas psicopatológicos de primeira ordem de KURT SCHNEIDER(7,8), objetivando atingir uma compreensão da natureza íntima dessas vivências subjetivas patológicas. A nossa finalidade é fazer com que o leitor compreenda e entenda por quê, em determinadas circunstâncias nosológicas, os enfermos vivenciam fenômenos subjetivos tão desconcertantes e estranhos para o observador e, à primeira vista, tão afastados da realidade e da experiência cotidiana e do senso comum.

Para iniciar o desenvolvimento teórico que culminará na compreensão desejada, é necessário recapitular, rapidamente, as três alterações psíquicas fundamentais responsáveis pela gênese das vivências subjetivas dos enfermos esquizofrênicos e que estabelecemos há pouco (pág. 05). Pois bem, naquela ocasião postulamos a terceira alteração psíquica fundamental nos seguintes termos: reificação do exercício simbólico, ou seja, materialização concreta da dimensão simbólica abstrata da vida psíquica. O que, efetivamente, significa esta afirmação?

Para começar, tentaremos, compreender em que consiste a essência do pensamento normal e quais os processos dinâmicos e interativos que estão envolvidos em sua elaboração. Em uma pessoa normal, podemos dizer que o pensamento é constituído por idéias e representações carregadas de afetos e emoções em constante e contínua operação de integração de natureza indutiva e dedutiva. A enorme diversidade de idéias e representações está, por assim dizer, incrustada em dois eixos diretivos que correspondem, em conjunto, ao sistema total de juízos da realidade. O primeiro eixo eqüivale ao sistema de juízo da realidade subjetiva e o segundo ao sistema de juízos da realidade objetiva. Aquele afere a coerência inteligível da realidade sensível e/ou imaginada oriunda do espaço interno ou subjetivo do indivíduo, enquanto o último o efetua em relação aos mesmos conteúdos psíquicos interpretados, naturalmente, como vindos do mundo externo. De qualquer maneira, o indivíduo é dotado, através da ação diretiva desses dois grandes sistemas de juízos da realidade, da convicção de que uma determinada idéia é, em última instância, abstrata, simbólica e que um determinado dado sensorial, de forma semelhante, emana da realidade sensível. A convicção subjetiva, isto é, o sentimento de certeza permanente e irrefutável de que se pode, espontânea e naturalmente, discriminar uma idéia abstrata de um dado sensorial é um atributo fundamental do psiquismo humano, mais precisamente, do psiquismo do homem ocidental.

Delineia-se, dessa forma, a convicção pessoal de causalidade subjetiva e de causalidade objetiva. Todos nós sabemos que somos nós mesmos os produtores de determinadas idéias, sentimentos e atos e que ocorrem alguns eventos conosco devido a ações produzidas por outrem, ou seja, devido a fatos engendrados no mundo externo. Nós formulamos juízos a respeito de nós mesmos e dos outros, interpretamos acontecimentos que ocorrem no mundo externo, conceituamos atitudes e objetos, procuramos relações de sentido na diversidade das coisas e dos sentimentos, enfim, situamo-nos no mundo solidamente.

De maneira resumida e simplificada, podemos dizer que o pensamento do homem normal possui essas características. E em relação ao enfermo esquizofrênico quais seriam as grandes diferenças?

Diremos que o pensamento esquizofrênico é essencialmente reificado, ou seja saturado de uma simbologia concreta, de caráter mágico-anímico. Provavelmente, com a deflagração do processo de desdiferenciação simbólico-afetiva* , que consideramos a característica axial do distúrbio esquizofrênico e cuja causa ainda não conhecemos, emergem algumas modalidades de simbolização filogeneticamente arcaicas que impregnam os processos de integração psíquica superiores do indelével caráter de reificação. Quanto à concepção de modalidades de simbolização arcaicas, que anteriormente denominamos matrizes simbólicas de desenvolvimento evolutivo filogenético (2), WILSON postulou recentemente, em uma importante publicação (10), um conceito semelhante que designou regras epigenéticas (algoritmos inscritos no cérebro da espécie humana, que estruturam, limitam e condicionam a variação individual e cultural). De qualquer modo, pensamos que os conteúdos psíquicos parcialmente simbolizados e aqueles até então interditados de chegar à consciência tornam-se inteiramente reificados, chegando até ela revestidos de um caráter mágico-animista. Como conseqüência, o enfermo vivencia subjetivamente os seus desejos e temores mais íntimos e recônditos de maneira concreta e reificada, isto é, como verdadeiramente reais. Por outro lado, a perda da delimitação precisa entre os espaços subjetivos destinados a abrigar os conteúdos psíquicos oriundos do mundo interior e do exterior - que já postulamos como a segunda alteração psíquica fundamental na psicose esquizofrênica - propicia a vivência patológica de atribuir concretamente a outrem aqueles mesmos desejos e temores, fenômeno que a psicanálise denomina ‘projeção’ e que nós chamamos de convicção reificada de causalidade objetiva. Acrescenta-se a isso o fato de que o processo de desdiferenciação simbólico-afetiva induz a sensorialização progressiva daqueles complexos simbólico-emocionais, sendo vivenciados pelo doente como eventos sensíveis e reais, ou seja, oriundos ou situados no mundo externo. Aqui se torna necessária a diferenciação conceitual entre os termos reificação e sensorialização. Entendemos como reificação o caráter peculiar de natureza mágico-animista, ou seja, de simbolismo concreto presente nos juízos delirantes. Já o processo de sensorialização consiste na transformação das vivências reconhecidas como abstratas em experiências subjetivas marcadas por sensações anormalmente concretas. A sensorialização e a reificação são conseqüências do processo de desdiferenciação simbólico-afetiva e fazem com que as vivências sensorializadas sejam experimentadas pelo enfermo como verdadeiramente reais e rigidamente irrefutáveis. Pensamos que o processo de sensorialização dos conteúdos psíquicos abstratos do enfermo é progressivo e varia dentro de um espectro de menor à maior intensidade. Por exemplo, a vivência de difusão do pensamento, ou seja, a convicção subjetiva experimentada pelo enfermo de que todos conhecem o teor de seu pensamento, deve anteceder as vivências de sonorização e de ‘eco’ do pensamento, desde que estas últimas refletem um maior grau de sensorialização dos conteúdos abstratos. De modo semelhante, as alucinações verdadeiras precedem as pseudo-alucinações porque estas eqüivalem à sensorialização total das representações simbólicas abstratas. Neste ponto, devido a uma certa dubiedade, ao nosso ver, dos conceitos alucinação verdadeira e pseudo-alucinação, teremos que fazer alguns comentários e considerações teóricas em relação a esses dois termos. De acordo com JASPERS(11), as pseudo-alucinações se diferenciam das percepções e das alucinações autênticas pela falta de corporeidade. O referido autor afirma que deverá ser considerada corpórea toda e qualquer vivência perceptiva originária de estímulos situados no espaço objetivo exterior, mesmo aqueles mais tênues e imprecisos, enquanto as pseudo-alucinações, pelo fato de serem representativas e plásticas, isto é, de serem representadas pelo próprio sujeito, serão percebidas no espaço subjetivo representativo interno. Ora, sabemos que as pseudo-alucinações podem ocorrer em determinados estados subjetivos, inclusive naqueles considerados normais, por exemplo, as pseudo-alucinações percebidas com as pálpebras cerradas e que surgem de maneira altamente variada e opticamente vívida sob a forma de uma enorme diversidade de imagens e figuras situadas em um grande espectro de cores, tons e configurações. Ou mesmo naqueles casos em que há a ‘visualização interna’ de uma certa imagem, resultado de extrema clareza, nitidez e vivacidade do raciocínio e do pensamento representativo. Mas o que quer dizer das pseudo-alucinações dos enfermos esquizofrênicos? Por exemplo, um de meus pacientes, um caso de esquizofrenia hebefreno-paranóide de longo curso de evolução, já em fase de cronificação avançada, insistia que em sua garganta habitavam os ‘espíritos’ de seus avós que lhe faziam zombarias, brincadeiras e o insultavam através de diversas ‘vozes’. Esse paciente apontava repetidamente para o seu pescoço e, em meio a risos imotivados e atoleimados, dizia: "O Sr. está ouvindo? ...eles estão brincando comigo ... são as vozes dos espíritos...". Após dirigir-se a mim dessa forma, começava a mussitar incessantemente, completamente alheio e indiferente a tudo que o cercava. Eis aqui apenas um dos inúmeros exemplos que são extremamente comuns na clínica psiquiátrica e que se constituiriam em casos demasiadamente longos para que se pudesse descrevê-los com detalhes no momento. No entanto, isso implica que, ao nosso ver, as pseudo-alucinações dos enfermos esquizofrênicos devem diferenciar-se, no ponto de vista conceitual, profundamente daquelas encontradas em outros estados subjetivos, inclusive naquele caso exemplificado por JASPERS* (11)

Entendemos que, apesar da forma das vivências subjetivas relacionadas às pseudo-alucinações ser semelhante nos quadros psicóticos e não psicóticos, a sua natureza é essencialmente distinta em uma e na outra situação. As pseudo-representações detectadas em certas condições subjetivas não psicóticas são o resultado, em nossa opinião, de um pequeno grau de sensorialização de conteúdos psíquicos de caráter mnêmico, enquanto aquelas vivenciadas pelos enfermos esquizofrênicos sob a forma, principalmente, de ‘vozes’ interiores, consistem no produto final do processo de sensorialização total dos conteúdos psíquicos simbolicamente abstratos do enfermo. Ainda, no primeiro caso, as pseudo-alucinações não estão, de nenhum modo, vinculadas a juízos delirantes, enquanto na segunda situação as pseudo-alucinações estão quase que obrigatoriamente adjudicadas a tais juízos. Em virtude disso, pensamos que a adoção dos termos alucinações psico-sensoriais e alucinações psíquicas, criadas por BAILLARGER**(11), em substituição aos conceitos relativamente ambíguos alucinações verdadeiras e pseudo-alucinações, respectivamente, seria uma resolução satisfatória e útil para o problema, desde que aqueles se adequariam com maior precisão e rigor descritivos ao registro fenomenológico das vivência alucinatórias dos enfermos esquizofrênicos. Na verdade, a essência das alucinações psíquicas consistiria na sensorialização e reificação totais daquilo que é denominado por pseudo-alucinação em estados subjetivos não psicóticos. Os termos pseudo-alucinação ou pseudo-percepção ficariam reservados àqueles fenômenos psíquicos não vinculados, em nenhuma hipótese, a juízos delirantes. Dessa maneira, poderíamos compreender melhor por que as alucinações psíquicas correspondem à sensorialização total dos conteúdos mentais simbolizados, enquanto nas alucinações psico-sensoriais há, apenas, a sensorialização parcial daqueles. Parece que, no caso das alucinações psico-sensoriais, a delimitação entre o espaço subjetivo destinado a abrigar os conteúdos psíquicos identificados como oriundos do mundo externo e aquele destinado aos do espaço interno ainda não está tão comprometida e imprecisa como, certamente, está nos estágios do processo esquizofrênico onde florescem e se multiplicam as alucinações psíquicas. Com efeito, à medida que a evolução clínica da doença caminha inexoravelmente para uma grave cronificação e deterioração mental, aparentemente há uma progressiva intrasubjetivação do delírio primário, ou seja, a diminuição gradual e significativa da tensão entre o mundo interior e o exterior, agravando-se a integridade do contato vital com a realidade. E, justamente nessa etapa de cronificação da doença é que são mais comuns as constatações clínicas de alucinações psíquicas que os enfermos relatam, principalmente, como ‘vozes’ oriundas do interior da cabeça, nos ouvidos ou em outras regiões do corpo e que costumam tomar a forma de ‘vozes’ dialogantes comentadoras da atividade do enfermo ou que lhe dão ordens, impõem-lhe ações e pensamentos. É importante assinalar que, mesmo nas fases iniciais da doença, o paciente pode vir a apresentar alucinações psíquicas e, em nosso ponto de vista, sustentados pela experiência clínica, isso corresponderia a um mau prognóstico porque tais fenômenos alucinatórios eqüivalem à sensorilização total dos conteúdos psíquicos abstratos. De maneira geral, no início da psicose esquizofrênica, são mais freqüentes as constatações clínicas de sintomas psicopatológicos de KURT SCHNEIDER(7,8) relacionados a eventos do mundo externo, tais como consciência de significação vaga, vivência do posto ou do preparado, percepções delirantes, além de alucinações psico-sensoriais, como veremos a seguir. Tal fato está inequivocamente relacionado a uma acentuada tensão entre o mundo interno e externo, no início da doença, e que tende a diminuir progressivamente com a intrasubjetivação do delírio primário, em consonância com a perda do contato vital com a realidade.

Em resumo, esperamos que essa breve dissertação tenha esclarecido o nosso conceito de gradação da intensidade de sensorialização das vivências dos enfermos esquizofrênicos e que, certamente, ficará mais claro quando esquematizado graficamente como o que se segue:

Como podemos notar na figura 01, enumeramos aquelas três alterações psíquicas fundamentais, postuladas na página 05, responsáveis pela gênese das vivências tipicamente esquizofrênicas e encadeadas na produção das experiência subjetivas sensorializadas dessa enfermidade.

Podemos ver que após o fenômeno ‘eco do pensamento’ há uma espécie de bifurcação. Do lado direito do diagrama, representamos, graficamente, o processo de sensorialização, somente, levando em primeiro lugar às alucinações psico-sensoriais e, finalmente, às alucinações psíquicas (processo de sensorialização total das representações simbólicas abstratas). Por sua vez, no lado esquerdo do esquema procuramos mostrar como o processo de sensorialização avançada aliado à alteração profunda, ou mesmo à dissolução, do patrimônio simbólico representativo pessoal e, como conseqüência, dos atributos da consciência de execução e da consciência do existir, ocasionam a totalidade das vivências subjetivas de influência dos enfermos esquizofrênicos.

Temos oportunidade de observar, também, de maneira freqüente, na prática da clínica psiquiátrica, um outro tipo de fenômeno relacionado às vivências esquizofrênicas.

Em determinadas ocasiões, os pacientes relatam apenas experimentar uma certa vivência subjetiva sensorializada, como as que vimos há pouco, sem, necessariamente, adjudicar algum juízo anômalo a essa mesma vivência. É o que costuma ocorrer no caso daquelas vivências já assinaladas acima, quais sejam, as de difusão do pensamento, sonorização e ‘eco’ do pensamento. O paciente, em muitas ocasiões, apenas vivencia e assiste com enorme perplexidade, principalmente nas fases iniciais da psicose esquizofrênica, essas experiências subjetivas novas e extremamente atormentadoras sem compreender exatamente o que significam e de onde provêm. É compreensível que o psiquismo ao experimentar uma vivência essencialmente sensorial a considerará verdadeiramente real e procurará localizar, forçosamente, a sua fonte de produção no mundo externo. Entretanto, em um bom número de casos, quando indagamos ao paciente sobre esses tipos de vivência, o que ele considera sobre a sua natureza e origem, costuma responder que não sabe o que significam e de onde provêm, mostrando-se atordoado e atônito.

Ao contrário, em outras ocasiões, e isso geralmente ocorre na instalação e cristalização definitiva do delírio primário da psicose esquizofrênica - o paciente vincula, convictamente e sem a menor dúvida, determinados juízos às vivências sensorializadas que experimenta. Assim, por exemplo, se antes da eclosão da doença nutria hostilidade ou ressentimento em relação ao seu vizinho, agora adquire certeza íntima irrefutável de que aquele o insulta constantemente com palavras de baixo calão e que está ‘roubando’ o seu pensamento por intermédio de uma máquina diabólica e fantástica. Vê-se, com clareza, como o processo de sensorialização de conteúdos psíquicos simbólicos abstratos resulta em vivências eminentemente sensorializadas - no exemplo em questão em alucinações psico-sensoriais, sob forma de ‘vozes’ que o enfermo acredita estarem sendo emitidas pelo seu vizinho e que ocupam o espaço subjetivo destinado aos conteúdos psíquicos interpretados como provenientes do mundo externo - que são ‘projetadas’ em uma determinada pessoa situada no espaço exterior. É claro que o mecanismo psicológico da ‘projeção’ é um evento psicodinâmico fisiológico, ocorrendo em condições normais e, predominantemente, em situações de desordens emocionais neuróticas. Entretanto, no caso do enfermo esquizofrênico ele ‘projeta’ conteúdos psíquicos sensorializados no mundo exterior e os vincula a juízos delirantes, ou seja, há a transformação qualitativa da convicção pessoal de causalidade subjetiva em convicção reificada de causalidade objetiva, constituindo-se esta última em uma certeza permanente, irrefutável e cristalizada - ao contrário das ‘projeções’ plásticas e flexíveis dos neuróticos que, potencialmente, podem elaborar-se, dissipar-se e reverter-se completamente no plano da consciência. Acreditamos que, além das inúmeras ‘projeções’ seletivas que o doente inconscientemente engendra, muitas outras são efetivadas de maneira errática e indeterminada, vinculando-se as vivências sensorializadas a juízos delirantes direcionados praticamente ao acaso no que se refere a eventos e/ou pessoas do mundo externo. O exemplo mais clássico e chamativo daquelas ‘projeções’ seletivas e que encontramos freqüentemente na clínica psiquiátrica cotidiana refere-se às figuras parentais do enfermo. É extremamente comum que este desenvolva um ódio aparentemente inexplicável e acentuado por um de seus pais, ou mesmo por ambos, o que algumas vezes, resulta em conseqüências trágicas e que pode ser explicado pela sensorialização de conteúdos emocionais agressivos dirigidos àqueles e que se vinculam a juízos delirantes.

Após essas considerações em relação às vivências subjetivas sensorializadas, podemos classificá-las, basicamente, em duas categorias distintas:

Vivências subjetivas sensorializadas absolutas: são vivências subjetivas sensorializadas não acompanhadas de juízos delirantes, isto é, as vivências sensorializadas ocupam, por si, somente, o lugar da experiência imediata. Por exemplo, o paciente relata estar ‘ouvindo’ o seu pensamento (sonorização do pensamento), mas não atribui nenhuma causa ou motivo para isso, não consegue compreender a estranheza da experiência subjetiva, mostrando-se perplexo e atônito.
Vivências subjetivas sensorializadas relativas: são vivências subjetivas sensorializadas que são vinculadas, necessariamente, a um ou mais juízos delirantes, isto é, o lugar da experiência imediata é ocupado por uma vivência composta por dois membros, o componente sensorializado e os juízos delirantes intimamente relacionados a ele mesmo. Por exemplo, o doente crê, convictamente, que há um aparelho eletrônico instalado em lugar determinado e que está impondo ou ‘roubando’ o seu pensamento. Naturalmente, o enfermo, de maneira geral, quando adjudica à vivência sensorializada um juízo delirante costuma mostrar-se mais tranqüilo porque, nesse momento, constrói um nexo inteligível que se inscreve no interior de sua lógica fantástica, tornando-se inteiramente verossímil para ele mesmo.
Examinando atentamente os sintomas psicopatológicos de primeira e segunda ordem de KURT SCHNEIDER(7) , observamos que, em relação a eventos do mundo externo, todos esses sintomas podem ser agrupados em duas classes de fenômenos distintos:

1 - sintomas psicopatológicos estritamente relacionados a eventos do mundo

externo

2- sintomas psicopatológicos não relacionados a eventos do mundo externo

No primeiro caso, um estímulo externo, uma determinada circunstância situacional, enfim, uma vivência perceptiva ou um grupo encadeado de percepções deflagram um ou mais juízos delirantes intimamente relacionados e intrinsicamente vinculados àqueles, enquanto, no segundo caso, uma vivência sensorializada passa a ocupar o espaço subjetivo destinado a abrigar os conteúdos psíquicos oriundos do mundo exterior, ou seja, é ‘projetada’, misturando-se e revestindo os objetos situados no espaço externo, podendo ou não, como já vimos, vincular-se a juízos delirantes diretamente relacionados a esses mesmos objetos.

Pertencem à primeira classe de fenômenos os seguintes: vivência de significação vaga, vivência do posto ou do preparado e as percepções delirantes.

Incluem-se na segunda categoria de fenômenos a difusão do pensamento, a produção ou ‘roubo’ do pensamento, as vivências de influência sobre a corporalidade, sentimentos e ações, as alucinações psico-sensoriais e alucinações psíquicas.

Pode-se observar, com clareza, que existe uma gradual transição no que se refere ao grau de reificação - resultante do processo de desdiferenciação simbólico-afetiva - dos juízos delirantes em consonância com o aumento da convicção íntima, por parte do enfermo, quanto à verossimilhança da vivência nos sintomas do primeiro grupo, ou seja, aqueles relacionados a eventos do mundo externo.

Por outro lado, no que se refere aos sintomas psicopatológicos não relacionados aos eventos do mundo externo, a ordem hierárquica das vivências sensorializadas, como foi colocada acima, corresponde ao espectro da gradação progressiva da intensidade de sensorialização resultante do processo de desdiferenciação simbólico-afetiva.

Como já vimos e dissertamos suficientemente a respeito dos sintomas psicopatológicos não relacionados a eventos do mundo externo, isto é, as vivências subjetivas sensorializadas, nos ocuparemos, a seguir, daqueles sintomas psicopatológicos estritamente relacionados a eventos do mundo externo.

A vivência de significação vaga, que costuma surgir na etapa do humor delirante difuso, refere-se a uma impressão subjetiva embebida de extrema expectativa ansiosa, indefinida, nebulosa e angustiante que se instaura sobre um fundo auto-referencial significativo. Tudo parece convergir em direção ao enfermo, gestos, olhares, expressões faciais adquirem um tom especial, singular e vagamente ameaçador. Diálogos entre duas pessoas desconhecidas e vislumbrados à distância pelo paciente transformam-se em murmúrios e sussuros audíveis sob a forma de comentários vagamente desabonadores a seu respeito. Por vezes, parece ouvir, nitidamente, uma palavra insultuosa em tom de zombaria insolente que lhe é dirigida por uma fonte imprecisa e indeterminada. Simultaneamente, é tomado, de modo súbito, pela convicção de que todos estão percebendo o conteúdo de seu pensamento de uma forma inexplicável e angustiosamente intrigante e, vez por outra, vivencia a experiência insólita de que está ‘ouvindo’ o seu próprio pensamento. Um passo a mais, na vivência do posto ou do preparado, o enfermo, ao chegar em determinado lugar, por exemplo, é dominado, imediatamente, pela abrupta e irrefutável certeza de que determinadas pessoas e/ou objetos estão intencionalmente colocados e dispostos com uma finalidade malévola e inequivocamente declarada em relação a ele, enfim, tudo no mundo exterior, se move e se configura de uma forma intencional e preparada. O acaso e o inesperado do cotidiano comum e trivial convertem-se em fatos e ações carregados de singular intencionalidade e de propósito enigmaticamente voluntário relacionados a ele mesmo. A etapa seguinte de acentuação máxima de reificação dos juízos delirantes deflagrados por eventos do mundo externo corresponde à percepção delirante. Nesse caso, os juízos delirantes alcançam o grau máximo no que se refere à convicção íntima quanto à verossimilhança da vivência experimentada pelo enfermo. Por exemplo, uma chamada telefônica significa, para o paciente, que é um sinal e um aviso de que será assassinado. É bastante característico, nas percepções delirantes, o caráter de ‘revelação’, de transformação do mundo, como se fora uma mensagem sobrenatural, ameaçadora, comovedora ou transcendental, como tão bem descreveu KURT SCHNEIDER (8).

Podemos observar que, à semelhança dos sintomas psicopatológicos de KURT SCHNEIDER estritamente relacionados a eventos do mundo externo(7), quais sejam, consciência de significação vaga, vivência do posto ou do preparado e percepções delirantes, os juízos delirantes - de maneira análoga àquela gradação de intensidade das vivências sensorializadas pertencentes ao grupo de fenômenos não relacionados a eventos do mundo externo - percorrem um espectro de gradação ascendente no que se refere à intensidade da convicção íntima, por parte do enfermo, quanto à verossimilhança da vivência. Dito de outro modo, parece que quanto maior é a intensidade de reificação dos juízos delirantes, por exemplo, nas percepções delirantes, mais cristalizada se torna a convicção íntima do paciente quanto à verossimilhança da vivência experimentada.

Tudo o que dissemos até aqui poderá ficar mais claro se for esquematizado graficamente como o que se segue.

Como podemos notar na representação esquemática da figura 02, a classificação final que estamos propondo para os fenômenos de primeira ordem de KURT SCHNEIDER(7,8) implica seu inter-relacionamento dinâmico com as suas três características básicas, ou seja , vinculamento ou não a eventos do mundo externo, intensidade gradativa de sensorialização das vivências subjetivas sensorializadas e adjudicação ou não de juízos delirantes a essas mesmas vivências. No caso dos sintomas psicopatológicos não relacionados a eventos do mundo externo, observamos que esses sintomas correspondem àquelas vivências subjetivas sensorializadas já representadas esquematicamente com bastante detalhes na figura 01. Quanto aos sintomas psicopatológicos estritamente relacionados a eventos do mundo externo, constatamos que esses fenômenos correspondem, exclusivamente, aos juízos delirantes e, ainda, quanto maior é o grau de reificação presente nesses juízos, mais forte, poderosa e irrefutável se torna a convicção íntima, por parte do enfermo, da verossimilhança das vivências subjetivas anômalas experimentadas.

São essas as nossas idéias a respeito dos sintomas psicopatológicos da esquizofrenia e esperamos que as concepções teóricas aqui contidas sejam úteis para os psiquiatras em geral, no sentido de acrescentar novos enfoques para a abordagem desse transtorno mental que, apesar de todos os avanços das neurociências, ainda permanece como uma doença de etiologia desconhecida e cujo diagnóstico é eminentemente clínico. Devido a isso, esta breve contribuição poderá ampliar, na medida do possível, uma visão teórica capaz de aguçar e aprimorar a sensibilidade diagnóstica de cada um de nós. Caso consigamos isso, pelo menos em parte, terá valido a pena o esforço dispendido no cumprimento desta tarefa.

SUMMARY:

In this paper the author frames the concept of affective symbolic dis-differentiation in order to propose a theoretical model to elucidate the phenomenological morphology of the psychopathological symptoms of endogenous psychoses, included in the schizophrenia group. Once the concept has been formulated, along with other concepts such as sensorialization (sensorial transformation process) and reification , he makes a careful analysis of KURT SCHNEIDER first-range symptoms, trying to establish a plausible theoretical sense which would clarify the causes and structure of those anomalous experiences typical of schizophrenia.

KEY WORDS:

Schizophrenia

Affective symbolic dis-differentiation

Sensorialization (sensorial transformation process)

Reification

KURT SCHNEIDER first-range symptoms

Psychopathology

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