Menina Para Sempre

Daphne, e este é o nome fictício da paciente, procurou-me em dezembro de 1983 relatando angústia, ansiedade e muitas dificuldades no que se refere ao convívio social. Essas dificuldades caracterizavam-se por uma intensa inibição e um medo indeterminado, chegando a configurar-se como um verdadeiro estado de pânico fóbico em situações nas quais era obrigada a relacionar-se com outras pessoas, principalmente os seus colegas de trabalho. Apresentava uma auto-estima muito baixa, julgando-se uma pessoa desinteressante e repulsiva e procurava, a todo custo, evitar reuniões profissionais e fugia de encontros como churrascos, festas e outros eventos sociais de lazer coletivo. Nessas ocasiões sentia-se extremamente ansiosa, manifestava taquicardia, extremidades frias, boca seca, sudorese profusa e tinha ímpetos de fugir precipitadamente do lugar onde se encontrasse. Além disso, sentia medos e terrores noturnos inespecíficos e um constante sofrimento íntimo tão intenso que, por vezes, achava que não o conseguiria suportar por muito tempo. Relatou piora dos sintomas há alguns meses, acrescentando-se perda considerável do apetite e emagrecimento. Havia, ainda, outros sintomas tais como distúrbios gastrointestinais, cefaléia pulsátil acompanhada de náuseas, dores musculares generalizadas e distúrbios dos ciclos menstruais (polimenorréia). Quase não saía de casa e vivia em um estado de tensão emocional constante.
Contava com cerca de vinte e oito anos de idade, era engenheira, solteira e residia em companhia da mãe e da irmã mais nova. Revelava-se uma pessoa extremamente tímida, muito contida e meticulosa, com tendências obsessivas importantes e uma consciência moral bastante exacerbada. Tinha uma visão de mundo fundamentalmente pessimista, com tons de desconfiança e de amargura. Por outro lado, demonstrava um temperamento delicado, afetuoso, sensível e naturalmente afável, bondoso e altruísta. Apesar de tudo, preocupava-se com o bem estar das outras pessoas e alegrava-se sinceramente com o sucesso alheio. Era uma excelente profissional e evidenciava uma inteligência certamente acima da média. Procurava distrair-se através do exercício da pintura que praticava regularmente e a boa qualidade de seus quadros, que pude apreciar depois, indicava um aprimorado potencial artístico. No mais, não tinha nenhum amigo íntimo e sua vida social resumia-se a insossas e desinteressantes reuniões de família. O curso universitário havia se constituído em um verdadeiro tormento para ela, considerando-se o enorme sacrifício que representava conviver com seus colegas de turma e tolerar as brincadeiras buliçosas de toda aquela gente jovem e ruidosa, além das infindáveis desculpas que tinha que inventar para esquivar-se de toda sorte de festas, reuniões e comemorações. Quanto à sua vida sexual, nunca havia sequer namorado e jamais experimentara qualquer tipo de contato físico com homens.
Na primeira consulta falou, ainda, de um medo indefinido de ‘perder o controle’, da piora dos sintomas ao anoitecer e de um cansaço excessivo que nunca a abandonava. Há cerca de oito anos submetia-se a tratamento psicoterápico de orientação comportamental e, até aquele momento, não observara nenhuma melhora de seu estado. A pesquisa dos antecedentes pessoais não revelou nenhum antecedente médico digno de nota ou acontecimento traumático importante, exceto a morte do pai, vítima de um tumor cerebral, que ocorreu quando ela tinha sete anos de idade. Naquela ocasião, a paciente e sua irmã, um ano mais nova que ela, residiram durante algum tempo na casa do avô materno.

A primeira impressão que tive, na época, a respeito dessa paciente foi de que parecia tratar-se de um quadro depressivo crônico, de longa evolução, incidindo em uma personalidade anancástica, ou seja, dotada de importantes traços obsessivos em sua constituição caracterológica. As suas grandes dificuldades no relacionamento humano, a sua meticulosidade e rigidez, o seu comportamento evitativo social, a sua visão de mundo árida e desesperançada consistiam em características que, à primeira vista, sugeriam uma constituição de personalidade tal como a descrita antes. Entretanto, o potencial de afetuosidade genuína que transparecia claramente em seus gestos e nos seus relatos intrigou-me sobremaneira. Apesar de ser uma pessoa muito bem educada, não detectei aquela amabilidade insípida, formal, fria e vazia, quase ritualística, tão própria dos anancásticos. Ao contrário, o seu modo de ser transmitia, algumas vezes, a impressão de que era uma pessoa naturalmente vívida, porém acentuadamente atemorizada e reprimida. De qualquer maneira, sob o ponto de vista clínico, tratava-se, sem dúvida, de um quadro depressivo com crises de pânico fóbico, mais precisamente de fobia social, como patoplastia secundária. Pelo menos, tal foi a minha concepção diagnóstica, naquela época, a respeito do caso.
Receitei-lhe clomipramina na dosagem de 75 mg/dia e solicitei que retornasse vinte dias depois. Voltou ao consultório na data marcada e relatou melhora razoável, com aumento moderado da disposição. No entanto, referiu piora do apetite e permanência quase inalterada da angústia. Insisti durante algum tempo com a medicação, porém devido ao aumento da ansiedade e à persistência das crises de pânico fóbico, resolvi mudar a medicação antidepressiva após dois meses de tratamento. Prescrevi maprotilina na dosagem crescente de até 150 mg/dia e, com efeito, sentiu-se melhor, ficando mais tranqüila durante o dia e com elevação satisfatória do humor. Contudo, as dificuldades de relacionamento humano persistiam, vivia com sobressaltos indefinidos e continuava se julgando uma pessoa desprezível, fraca e sem nenhuma qualidade aparente. Recusava todos os convites para reuniões de lazer, temia que pudesse vir a se sentir mal, que talvez quisesse fugir do lugar onde estivesse e que não o conseguiria, enfim, era assolada por toda uma série de medos, insegurança e temores objetivamente infundados. Continuou em tratamento medicamentoso comigo até que, após a morte do avô materno, de quem gostava muito, em agosto de 1985, houve recrudescimento importante do quadro depressivo. Em novembro resolveu encerrar o tratamento psicoterápico que vinha fazendo depois de concluir que não a estava beneficiando e, em dezembro, começou a ser por mim atendida, duas vezes por semana, com vistas a um tratamento psicoterápico de orientação psicodinâmica.
Durante os primeiros meses de atendimento, quase todas as sessões eram preenchidas por infindáveis e monótonas auto-recriminações que traduziam uma acentuada intolerância e desprezo em relação a si mesma. Costumava dizer que era uma pessoa “burra”, pois não conseguia exercer o controle voluntário sobre as situações que a atemorizavam, enfim, que não conseguia mudar aquele estado de coisas apesar de assim desejá-lo e decidi-lo. Eram bastante evidentes as tentativas de solução racional para os seus problemas. Tinha sérias dificuldades para reconhecer, identificar e expressar os seus sentimentos e emoções, não conseguia sequer chorar e, aparentemente, procurava viver sob a égide da pura lógica. Geralmente convertia as suas dificuldades afetivas em rígidas categorias morais, sentindo-se, freqüentemente, uma pessoa egoísta, fraca e repleta de defeitos. Costumava projetar, maciçamente, o seu auto-rigor nas outras pessoas e ficava bastante ansiosa em relação à possibilidade de lhe exigirem mais do que podia fazer. Os seus relatos faziam pensar em uma pessoa ‘plana’, com uma existência mecânica e com um futuro inteiramente previsível, sem irregularidades ou alterações de contorno e curso. Por outro lado, em relação aos conteúdos de seus sonhos, estes freqüentemente mostravam uma situação interior bastante turbulenta, caótica e sombria. Freqüentemente sonhava com a família, ora com o avô e com a avó maternos, ora com mãe e com a irmã e, quase sempre, os conteúdos oníricos retratavam explosões, acidentes automobilísticos e cataclismos. Nessa época, além da interpretação onírica, eu procurava desfazer, ativamente, as suas tentativas defensivas de racionalização. Conscientemente, falava de sua família como sendo constituída por pessoas severas, impassíveis, respeitáveis, com grande desvelo pela integridade moral, mas, na região inconsciente, deparava-se com abismos de sombra e de morte. Pouco a pouco fui percebendo como sua família possuía alguns modos peculiares de relacionamento com o mundo externo e algumas disposições específicas de reação que se constituíam em um verdadeiro agrupamento de leis, normas e regras familiares. Por exemplo, valorizava-se sobremaneira a discrição, a contenção emocional e afetiva, o formalismo vazio e cerimonioso, desprezava-se tudo que fosse ruidoso, vívido, sincero, espontâneo e natural. Dissimulavam-se sentimentos, evitavam-se cuidadosamente expressões emocionais que correspondessem a algo agressivo, hostil ou erótico. Fazia-se uma espécie de culto solene da dor e do sofrimento. Em contrapartida, conspirava-se surdamente, engendravam-se intrigas desairosas ocultamente, insultava-se em segredo, traía-se no silêncio. Essa enorme ambigüidade familiar era retratada nitidamente por aquilo que fluía da paciente e que se me apresentava nas sessões, isto é, a procura consciente da impassibilidade da forma em contraste com a turbulência explosiva das emoções inconscientes. Passei, então, a comunicar-lhe as minhas impressões a respeito dos mecanismos do relacionamento intra-familiar com base em seus relatos o que, constantemente, causava-lhe surpresa e uma certa perplexidade. Estava, portanto, elucidado o intenso sentimento de desconfiança que a paciente nutria em relação a todas as pessoas que dela se aproximavam, inclusive em relação a mim. Isso ficou bem esclarecido à medida que fui efetuando a análise dos elementos transferenciais que afloravam com o decorrer do tratamento. Ora sentia que podia confiar em mim e ora se arrependia em fazê-lo. Em uma determinada sessão, após relatar um sonho no qual havia se sentido muito amedrontada, começou a ter lembranças vagas de uma cena nebulosa que descreveu como se fora “portas se fechando para ela com estrondo” e, em seguida, foi tomada por medo indefinido e agudo. Era o primeiro fragmento, ainda difuso, de lembranças de cenas infantis correspondentes a vivências subjetivas que havia experimentado quando criança, todas elas de caráter traumático e que agora começavam a emergir subitamente. Relacionavam-se, como pude constatar depois, ao período de doença e morte de seu pai, fase que passou na companhia dos avós maternos e dos tios. Nessa ocasião, tinha sido muito maltratada e humilhada, principalmente por uma de suas tias, devido ao fato de procurar defender sua mãe de acusações e comentários maliciosos por parte da família. Após a morte de seu pai, iniciou-se um movimento familiar maciço para que sua mãe, na época uma mulher ainda jovem e bonita, se comportasse como uma “senhora de moral inatacável”, ou seja, para que não namorasse e nem se divertisse. Minha paciente, então uma criança de oito a nove anos sensível e inteligente, procurou a todo custo protegê-la da sanha doentiamente moralista que se instalara no ambiente familiar e que tinha como único objetivo controlá-la e fazê-la abdicar inteiramente de perspectivas existenciais normais e legítimas. A família fê-la sentir-se, então, como uma pessoa diferente e errada que defendia certas atitudes ou desejos maternos considerados moralmente condenáveis. A partir desse momento, consolidou-se um pacto inconsciente que teria uma importância crucial para a futura existência dessa moça, ou seja, foi instituído um acordo com caráter de lei e de norma determinando o seguinte: ela se tornava, de maneira definitiva, a perpétua guardiã e protetora de sua mãe e irmã, renunciando à vida do mesmo modo que a mãe fora obrigada a fazê-lo. Realmente, tanto sua mãe como a irmã, apesar de trabalharem fora, terem formação universitária e rendimentos suficientes, pareciam pessoas muito dependentes, inseguras com vontade débil, bastante sugestionáveis e influenciáveis, sendo que, em relação à irmã, a paciente constantemente a via em seus sonhos sob forma de um bebê indefeso e desprotegido. Em casa, era a paciente que tomava todas as iniciativas da vida doméstica, administrava e organizava o funcionamento de todos os setores e, nas férias, planejava as viagens que, invariavelmente, faziam sempre juntas. Personificara, decididamente, a instância da lei e da ordem, atributos perdidos do longínquo e extinto pai. Sentia-se inteiramente responsável pela felicidade e pelo bem estar da mãe e da irmã, seus dois únicos e exclusivos objetos de preocupação e de dedicação. Entretanto, o tratamento prosseguia e, nitidamente, a atividade onírica se acentuava bastante.
Havia, basicamente, três categorias de sonhos que se apresentavam alternadamente nessa época: 1 – Sonhos em que estava presente a figura do avô materno, patriarca da família, com o qual havia efetuado uma forte ligação afetiva e que sempre aparecia como um homem triste, solitário e com determinações vagas e fantásticas de salvar a família.
2 - Sonhos com a mãe e com a irmã, nos quais ora procurava salvá-las de inúmeras ameaças e ora se via carregando pesadas cargas em situações de mudanças de domicílio num clima emocional de aflição e angústia.
3 – Sonhos com situações de pânico em que se via tentando fugir, desesperadamente, de recintos fechados e sombrios. Em uma ocasião, sonhou que estava tentando fugir de um castelo medieval com masmorras de pedra fria e escura, que associava a sentimentos de sofrimento e morte. Os significados desses sonhos eram bastante evidentes e eu procurava verbalizá-los de maneira ativa e dinâmica. Começaram a surgir evidências clínicas bastante promissoras. A paciente iniciou a tomar consciência da intensa raiva, até então reprimida, que tinha dentro de si e, gradualmente, foi-se permitindo experimentá-la. Amiúde, sofria crises de pânico durante as sessões e, não raramente, despersonalizações, náuseas, tonteiras e cefaléias de intensidade quase intolerável. Entrementes, a sua vida cotidiana melhorava flagrantemente, sentia-se mais tranqüila, as suas ações começavam a tornar-se mais espontâneas e naturais, passou a aproximar-se de seus colegas de serviço, a sair com eles, a participar de festas e reuniões sociais. Houve remissão completa das crises de pânico fóbico durante situações de exposição social fora da família. Tornou-se cada vez mais comunicativa, começou a ser bastante estimada pelos seus colegas de trabalho, fez amizades gratificantes e iniciou a experimentar sensações e sentimentos eróticos em maior grau. Pode parecer estranho, mas até então os sentimentos eróticos dessa moça estavam tão reprimidos quando os seus sentimentos de raiva. Afinal, havia abdicado inteiramente da existência comum, julgava-se infalível, sentia que era capaz de prever e controlar os seus sentimentos mais íntimos, enfim, sentia-se como se não fosse humana. Em dezembro de 1987 resolveu expor os seus quadros, fato que indicava o grau de melhora que havia obtido, isto é, finalmente estava se sentindo mais à vontade para se expor às outras pessoas, para correr os riscos naturais inerentes ao intercâmbio humano. Ao lado disso, passei a observar uma mudança notável em seus gestos, agora vívidos, em sua mímica, agora descontraída e expressiva e, fato extraordinário, uma transformação significativa em suas vestes habituais e na conformação de seu corpo, que começava a se delinear com linhas francamente femininas. No início do tratamento, era uma moça sem muitos cuidados, muito magra e franzina, com grandes olhos assustados e agora a impressão que eu tinha é que começava a se instalar em seu interior um esboço tímido de verdadeira e plena feminilidade. Entretanto, as auto-recriminações continuavam, sendo induzidas pelo sentimento de culpa motivado pela mudança de sentimentos e comportamentos não só relacionado à sua mãe e irmã, como também em relação a quase toda a família. Passou a ser difícil para ela suportar reuniões familiares, assim como também lhe era difícil dissimular certos sentimentos de raiva e desprezo dirigidos a certas pessoas da família. Não raro demonstrava impaciência e intolerância em relação a esses familiares. Culpava-se por isso. Os seus interesses voltavam-se, agora, a outras pessoas e a outras expectativas existenciais. O equilíbrio intra-familiar, mantido até então às custas de uma forte repressão e supressão de sentimentos, começou a ser rompido. Sentia que estava abandonando a mãe a irmã, julgava-se uma pessoa má, egoísta e injusta.
Entrementes, à medida que o tratamento analítico aprofundava-se, foram surgindo os primeiros elementos de um tímido, mas progressivo, amor transferencial. Simultaneamente ao surgimento de novas sensações e fantasias eróticas e amorosas, passou a reclamar e a queixar-se, a princípio vagamente e depois diretamente, de meu distanciamento afetivo e de minha isenção para direcionar certas decisões e ações de seu cotidiano. Chegou a sonhar, em certa ocasião, que estava deitada em uma mesa operatória em um bloco cirúrgico e que eu examinava seus genitais minuciosamente com uma lupa. Sentia-se ultrajada e humilhada e, não raro, verbalizava sua indignação pelo fato de, durante as sessões, eu estar facultado do poder de “devassá-la”, de “desrespeitá-la”, ou seja, de desvendar seus sentimentos mais íntimos e secretos e, após o término de seu horário, “mandá-la embora e entregá-la à própria sorte sem nenhuma preocupação com seu bem estar e em nada sensibilizado com seu enorme sofrimento”. Assim, no interior da relação transferencial, ela pôde, gradualmente, projetar seu manancial de impulsos sexuais e agressivos para que fossem adequadamente simbolizados e terapeuticamente elaborados. A sua intensa atividade onírica nessa época mostrava-me, juntamente com seu avô materno, como principais protagonistas de complexos, vertiginosos e tumultuados enredos que sugeriam, disfarçada e metaforicamente, a expressão de provável estase libidinosa de caráter edipiano. Isto me fazia refletir e constatar, na prática, como era verdadeira aquela premissa freudiana de que quanto mais acertadas e oportunas fossem as interpretações do material onírico efetuadas pelo psicanalista durante o processo terapêutico, maior e mais rápida seria a melhora clínica do paciente, desde que o conteúdo metafórico presente nos sonhos equivaleriam a verdadeiras cidadelas de defesa neuróticas correspondentes aos conflitos inconscientes e a sua correta interpretação, resultando em ‘insights’ importantes, seria como uma ‘tomada’ vitoriosa desses núcleos defensivos da neurose como um todo.
Ao mesmo tempo, surgiam algumas novidades alvissareiras em sua vida objetiva. Matriculou-se, em meados de 1990, em uma escola de dança e, logo, de maneira surpreendente, mostrou grande habilidade para praticar os mais variados passos, tornando-se uma das alunas mais expressivas e elogiadas. Não demorou muito e foi convidada para participar de uma apresentação de gala na escola e seu número artístico foi muito elogiado por toda a platéia de professores e demais convidados. Após um ano, foi convidada para dar aulas de dança na escola, mas recusou. Havia constituído, ao longo desse tempo, um grupo considerável de conhecidos e amigos fora do ambiente de trabalho com os quais passou a sair e divertir-se. Os primeiros flertes e namoricos aconteceram nessa época e, no final daquele ano, teve sua primeira experiência sexual consumada. No entanto, após o namorado abandoná-la pouco tempo depois, sofreu grave crise depressiva que exigiu atendimentos quase diários e dose alta de antidepressivos tricíclicos para sua recuperação.
Continuou depois, com entusiasmo, a freqüentar as aulas de dança e usufruir o ambiente festivo de bailes, eventos e apresentações artísticas que aconteciam amiúde. Até o ano de 1993 teve mais três namoros, cujos términos foram seguidos de intenso sofrimento íntimo entremeado por sentimentos de abandono e de rejeição que terminaram por desencadear recorrências depressivas de intensidade moderada. Sua vida sexual era insatisfatória, nunca tendo experimentado orgasmo vaginal. Entretanto, a masturbação era agora uma atividade rotineira, ao contrário de antes, quando praticamente inexistia.
Por outro lado, em seu trabalho, apesar de sentir-se bem mais desenvolta socialmente, ainda julgava-se uma funcionária “medíocre”, sentia esboços de pânico antes das reuniões de serviço e, definitivamente, considerava “impossível” apresentar relatórios de temas técnicos em público. Nas vezes anteriores que havia sido obrigada a fazê-lo, sentira-se tão ansiosa que “o coração quase saíra pela boca”, gaguejara durante a apresentação e estava convicta de que os colegas de trabalho haviam notado o seu embaraço e o tremor de suas mãos. Temia que pudesse passar mal durante as apresentações, que viesse a sofrer um “desmaio”, enfim, que fizesse um “papel ridículo” e que fosse vítima de comentários maldosos e de toda sorte de chacotas. A prescrição de medicamentos beta- bloqueadores simpaticolíticos juntamente com altas doses de clomipramina, associada a algumas técnicas comportamentais simples, também não se mostraram eficazes clinicamente para o alívio da intensa ansiedade antecipatória.
No final de 1993 conheceu um rapaz na escola de dança que continuava freqüentando. Tratava-se de um homem maduro, bem estabelecido profissionalmente e que, de imediato, interessou-se vivamente por ela. Logo começaram a namorar seriamente. Ele era uma dessas almas fleumáticas e plácidas e, ao mesmo tempo, singelamente afetuoso e bondoso, embora fosse pessoa de poucas palavras, tímido e introspectivo. Nutriu por ela, desde o início, uma dedicação incondicional, devota e silenciosa. Em junho de 1994 pediu-a em casamento e, com efeito, em janeiro de 1995 casaram-se no regime civil e comemoraram o evento com uma festa em grande estilo.
Estava, então, concluído, com o matrimônio, uma etapa vital de superação de obstáculos neuróticos que, até então, haviam bloqueado o desenrolar de seu crescimento e a obtenção de uma felicidade natural e legítima. Tinha sido desfeito, finalmente, o pacto neurótico familiar inconsciente que a condenara a ser uma menina para sempre, sem outras perspectivas de vida que não fossem aquelas relacionadas aos cuidados e zelo pela felicidade de sua mãe e irmã.
Entretanto, como persistissem alguns sintomas depressivos leves e sintomas fóbicos sociais, agora significativamente restritos ao seu desempenho no serviço, mais especificamente relacionados a apresentações técnicas que tinha que cumprir no trabalho e a dúvidas e inseguranças quanto ao seu verdadeiro valor como profissional, reiniciei paroxetina – droga que havia sido lançada no mercado em 1993 - em meados de 1998. Havia tentado introduzir esse medicamento em 1995, mas ela não o havia tolerado satisfatoriamente, tendo sido obrigado a suspendê-lo três meses depois devido à aparente interferência na obtenção de orgasmo vaginal. Isso foi assaz relevante, desde que após algum tempo de casamento, começara a fruir orgasmos vaginais com certa facilidade nas relações sexuais rotineiras.
Com efeito, desde então, a vida de Daphne tem se desenrolado de um modo bastante satisfatório. Viaja com frequência com o marido a passeio, relaciona-se afetivamente muito bem com ele e, exceto a frustração de não ter conseguido engravidar, parece estar feliz. No trabalho, mudanças notáveis ocorreram. Foi promovida a um cargo de chefia e as dúvidas e inseguranças em relação a seu valor como profissional dissiparam-se completamente. Atualmente é a responsável por um grande projeto na empresa e ministra rotineiramente cursos de treinamento técnico na capital e no interior, inclusive para platéias numerosas. Esporadicamente, sofre discretas recorrências depressivas, o que obriga aumentar a dose de paroxetina para 40 mg/dia, diminuindo-a para 30mg/dia logo em seguida.

Hoje, quase vinte anos depois do início do acompanhamento terapêutico de Daphne, analisando-se pormenorizadamente a progressão de sua vida, a evolução clínica de sua doença e a melhora visível de sua sintomatologia, podemos dizer que temos mais indagações do que propriamente respostas seguras para o que, na verdade, sucedeu no decorrer de seu tratamento.
Em primeiro lugar, no que se refere ao seu diagnóstico, hoje poderíamos estabelecer com segurança, apoiados no CID-10 e DSM-IV, um diagnóstico de Transtorno de Ansiedade Social ou Fobia Social coexistindo com uma Distimia de longa evolução e fases de Depressão Dupla, ou seja, a irrupção esporádica de fases de Depressão Maior sobrepondo-se à evolução crônica e ininterrupta da Distimia. Além disso, podemos suspeitar de uma personalidade pré-mórbida com traços importantes do grupo “C” do DSM-IV, isto é, com características temerosas e fóbico-evitativas em sua constituição caracterológica.
Por outro lado, analisando-se dinamicamente todos os eventos psicopatológicos ou não da vida de Daphne, para além de qualquer visão categorial ou criteriológico-nosográfica estática e compartimentada, ou seja, observando-se o transcurso natural de sua vida, de seu sofrimento, de seus medos, inibições, desejos e fantasias, chegamos a algumas conclusões.

No caso em pauta, observamos como a paciente vinha sofrendo com as suas crises de pânico fóbico que, na verdade, representavam o imenso pavor que sentia em ingressar na vertente da vida, ou seja, de usufruir uma plenitude existencial gratificante e satisfatória. O pacto familiar inconsciente ordenava que ela renunciasse totalmente à vida e à existência, assemelhando-se, em essência, a algo bem próximo da morte. Isso se tornava bem visível pela forma mecânica, monótona e repetitiva com que expressava os seus relatos e as suas auto-recriminações, além da vazia imutabilidade de seu existir. Havia, sem dúvida, alguma coisa inorgânica, ressequida e embalsamada em sua mímica, em seus gestos e em sua fala, contrastando, extraordinariamente, com os relâmpagos fugazes de vivacidade e de naturalidade que se lhe escapavam de modo involuntário. As crises de pânico fóbico eram ruidosas alegorias do temor profundo de deixar emergir a seiva de vida orgânica à superfície silenciosa e artificialmente inabalável e impassível de seu ser. Pois, que o pensamento, tendo atribuído uma existência real a uma idéia, tem a necessidade de ver essa idéia viva, e só o consegue personificando-a. Desse modo, podemos supor, com certa segurança teórica, que essa paciente não melhoraria de seus sintomas sem um tratamento psicodinâmico conduzido com alguma paciência e dedicação. Uma prova dessa hipótese, aparentemente, foi a resposta clínica insatisfatória que apresentou mesmo após a administração prolongada de um medicamento antidepressivo, a clomipramina, que seria provido de uma ação terapêutica especifica para o tipo de sintoma que apresentava. Esses sintomas agudos, assim como toda a malha invisível que enformava e sustentava a rigidez existencial da paciente só poderiam ser dissipados através da revelação íntima e integral de sua própria existência à ela mesma, com os subseqüentes e terapêuticos ‘insights’ ou auto-percepções. Creio que somente essas revelações, percebidas pela paciente com sentimentos de surpresa e perplexidade, poderiam induzir alguma mudança favorável no seu sobrecarregado equilíbrio psíquico e ocasionar, como conseqüência, transformações existenciais saudáveis e promissoras. E, com efeito, isso ocorreu de maneira lenta, mas, nem por isso, de forma menos espetacular e notável com o decorrer do tratamento psicoterápico. Com relação ao tipo de sintomas que apresentava, poder-se-ia dizer que eram, em sua natureza, inteiramente consoantes com as suas tendências constitucionais caracterológicas e retratavam, nitidamente, o drama conflituoso que era vivido na obscuridade de seu psiquismo. As suas características latentes de personalidade caracterizadas por altivez, orgulho, meticulosidade, severidade e escrupulosidade moral, além de tendência à evitação e esquiva, foram acentuadamente realçadas pelo conflito nuclear inconsciente, o qual poderíamos esquematicamente conceituar como sendo equivalente a complexos simbólicos constituídos por sentimentos e idéias sobrevalorizadas oriundas de vivências subjetivas correspondentes a determinadas circunstâncias situacionais muito importantes em sua vida.
É bastante provável que determinados traços peculiares de personalidade norteiem e elejam certas vivências circunstanciais específicas, cristalizando-as sob a forma de complexos simbólicos hiperdimensionados dotados de alta valência energética capazes de inibir e (ou) causar disfunções em circuitos neurais importantes, sistemas moduladores de neurotransmissores e conexões neuro-endócrinas. Também é bastante provável – e atualmente já contamos com evidências oriundas de neuro-imagem comprovando tal fato - que as psicoterapias, sejam elas de orientação psicodinâmica, cognitiva ou comportamental, induzam mudanças reparadoras nesses citados distúrbios ou disfunções.
De maneira geral, devemos sempre ter em mente que a emergência de sintomas psiquiátricos, em especial daqueles denominados neuróticos, obedecem a uma estreita relação compreendida entre vulnerabilidade específica de personalidade e estressores psicossociais, ou seja, entre a herança, eminentemente biológica, e os estímulos ambientais. Dito de outro modo, cada indivíduo lida à sua maneira com as vivências traumáticas que irrompem em cada uma de suas trajetórias biográfico-existenciais, ou melhor dizendo, o que é muito importante para uma pessoa não o será tanto para outra, e assim por diante.
Em nosso caso, Daphne talvez tenha desenvolvido e manifestado sintomas fóbico-sociais em decorrência da interação de sua própria caracterologia com certas circunstâncias biográfico-existenciais que se mostraram especialmente traumáticas para ela. Tais sintomas, por seu turno, eram perfeitamente consonantes com suas tendências constitucionais caracterológicas e retratavam, alegoricamente, o drama conflituoso que era vivido na obscuridade de seu psiquismo. Como já dissemos antes, o seu modo de ser naturalmente altivo, severo, meticuloso e exigente constituiu-se em terreno fértil para que vicejassem profundos e enraizados sentimentos de vergonha e de humilhação – que alcançaram uma intensidade clínica fóbico-ansiosa - desencadeados e sobrevalorizados pelas vivências traumáticas infantis, além de propiciar um rígido e inflexível cumprimento do dever neurótico em relação à mãe e irmã.
Por último, restam algumas indagações que dificilmente serão respondidas de maneira conclusiva.
Nos últimos quatro anos, a paciente fez uso contínuo de paroxetina, droga que, de acordo com vários estudos recentes controlados, tem se mostrado muito eficaz no alívio dos sintomas do Transtorno de Ansiedade Social ou Fobia Social. Sem dúvida, Daphne manifestou melhora significativa dos sintomas de ansiedade social nesse período, mas até que ponto o medicamento realmente agiu? O benefício clínico teria sido potencializado pela atenuação dos traços de personalidade e dos sintomas agudos promovidos pela psicoterapia psicodinâmica a longo prazo?
A droga, por sua vez, teria facilitado as elaborações simbólicas do processo psicoterápico através da atenuação, a longo prazo, dos traços anancásticos da paciente?
O que teria sido da vida de Daphne, caso não tivesse se submetido a tratamento psicoterápico psicodinâmico e desvendado sua neurose familiar? Será que o desenrolar natural de sua vida, à mercê de eventos previsíveis ou inesperados, teria desembocado em uma existência pelo menos em parte gratificante?

Evidentemente, somos incapazes de responder convincentemente a essas indagações. Entretanto, diante de nossa experiência em relação ao caso, podemos afirmar, com segurança, que somente através do estabelecimento de uma relação médico-paciente calcada na confiança, respeito e dedicação é que o médico poderá alcançar algum sucesso terapêutico em casos tão difíceis e complexos como este. Além disso, torna-se necessária uma visão teórica desapaixonada e desprovida de qualquer ideologia, uma abordagem que consiga conciliar aspectos fenomenológico-clínicos a uma dimensão psicodinâmica inteligível e próxima da vida real e do conhecimento comum. Somente dessa maneira poder-se-á efetuar a prática de uma medicina psicanalítica, ou psicanálise médica, que se expresse de maneira inteligível e que se mostre eficaz para o alívio do sofrimento íntimo desses pacientes.


GUSTAVO FERNANDO JULIÃO DE SOUZA

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