Um Estudante Sonolento

Tratava-se de R., estudante de Medicina, 23 anos, solteiro e que queixava da diminuição do rendimento acadêmico devido à distrabilidade e desatenção. Era um rapaz magro, espigado e gentil, de gestos vagarosos, fala cansada e baixa. Lembrava-me muito bem dele durante o curso, de seu semblante alheio e inexpressivo e de sua presença  silenciosa, quase imperceptível, durante as aulas. Lembrava-me, também, de suas provas, das questões que respondia incompletamente com letra trêmula e truncada, a ponto de quase ter sido reprovado. Aliás, já acumulava duas repetências em disciplinas anteriores por baixo rendimento nas avaliações apesar de estudar, e muito. Entretanto, por ocasião do curso, forçado que foi a apresentar um trabalho, saiu-se muito bem, mostrando boa capacidade de síntese, fluência e vivacidade inusitadas, surpreendendo-me positivamente.

Contudo, passada a apresentação. caiu novamente no estado habitual de inércia modorrenta e distante, participando escassamente das discussões de aula. Assim procurava-me agora bastante preocupado com sua situação, pedindo-me opinião e ajuda a respeito dos sintomas que o afligiam. Relatava enormes dificuldades para iniciar os estudos e para memorizar dados nas ocasiões em que se preparava para as provas. Nessas ocasiões sentia-se nervoso, inseguro e hesitante, não sabendo por onde começar a estudar, às vezes levantava-se e ia dar uma volta para tranqüilizar-se. De modo geral, R. sentia-se deprimido, desanimado e costumava a dormir durante as aulas que considerava maçantes. Queixava-se, além disso, do esforço dispendido todas as manhãs para levantar-se, apesar de sentir-se um pouco mais animado com o decorrer do dia. Haviam-no encaminhado, há oito meses, a um analista

que o atendia uma vez por semana desde então. Segundo ele, em nada adiantara tal recurso visto que o analista ou permanecia no mais absoluto silêncio ou o despedia após proferir palavras incompreensíveis e frases herméticas durante as consultas, despachando-o sem maiores explicações. A primeira impressão diagnóstica levantada foi a de distimia, considerando-se as características clínicas predominantes e presentes nas queixas do paciente. Com efeito, sintomas tais como anedonia, hipobulia, adinarmia e hipersonia são freqüentes nos quadros depressivos de modo geral. Além disso, o quadro clínico aparentemente se instalara de maneira insidiosa há alguns anos, manifestando-se de início sob a forma de indisposição, sentimentos algo melancólicos, timidez excessiva e ansiedade social que chegava a prejudicar seus contatos e relacionamentos com outras pessoas. Por outro lado, eram visíveis nítidas flutuações de tal sintomatologia quando se observava a evolução clínica ao longo do tempo. Para complementar, é necessário dizer que a estrutura caracterológica de R. possuía alguns traços evitativos e obsessivo-compulsivos (caráter temeroso ou esquivo) que se mostravam hiperdimensionados e amplificados nas situações de "stress" e naquelas fases de piora do estado de ânimo. Assim, mostrava-se, nessas ocasiões, especialmente tímido e inibido e, quando se dispunha a estudar, vivenciava tamanha ansiedade antecipatória que seu comportamento assumia padrões obsessivo-compulsivo como, por exemplo, exigências rígidas de simetria e ordem, dúvidas peralatentas, além de sudorese profunda e taquicardia. Entretanto, à primeira vista, o diagnóstico do caso já estava estabelecido e era de se esperar que o nosso estudante melhorasse com o tratamento anti-depressivo. Ou melhor, deveria ficar efetivamente curado, não fosse um pequeno problema inesperado que veremos a seguir:

 

Discussão:

 

Iniciamos o tratamento com moclobernida na dosagem de 150 mg/ dia com a recomendação de aumentar para 300 mg/ dia após cinco dias de acordo com a tolerabilidade à droga. Optamos por um anti-depressivo do grupo IMAO devido à sua ação timerética, ou seja, de estimulção da psicomobilidade, considerando-se as características clínicas do quadro, notadamente a adnamia e hipersonia. Retornou um mês depois, relatando melhora discreta da disposição e da concentração sem, no entanto, referir alívio significativo dos sintomas. Ao contrário, queixou-se do aumento da ansiedade antecipatória às sessões de estudo, ocasiões nas quais apresentava taquicardia e sudorese. Prescrevi clonazepan 0,5mg à noite e aumentei a dose de moclobemida, gradualmente, para 600 mg/ dia. Voltou vinte dias depois, dessa vez relatando melhora digna de nota. Achava-se mais desinibido, disposto e animado, com aumento das interações sociais e remissão das manifestações psicopatológicas de ansiedade. Entretanto, notou exacerbação da sonolência diurna, caracterizando acessos incontroláveis de sono de tal intensidade, que chequei a cogitar da hipótese de narcolepsia. Contudo, preferi atribuir esse fenômeno ao efeito colateral sedativo do cionazepan, que suspendi imediatamente. Vinte dias depois, mesmo em uso 900mg de moclobamida, continuava relatando timidez excesseiva, desinteresse, sentimento de "falta de sentimento", hipoglulia, desconpenetração e baixo rendimento acadêmico, o que me levou a substituir aquele fármaco pela tranilcipromina, também do grupo químico dos IMAO. Tal medida tampouco mostrou-se eficaz pois, mesmo com 40mg/ dia, ao fim de trinta dias, o nosso estudante continuava bastante lentificado e tristonho, reiterando, melancolicamente, sua dificuldade para acordar pelas manhãs e o esforço sobrehumano que desoendia para evitar os acessos de sonolência diurna. Era a primeira vez que se referia tão diretamente a esses sintomas, e tão claramente o fez, que deduzi: ou o estavam incomodando mais naquele momento ou, talvez, minha miopia clínica passara a anuviar-me bem menos que antes. Seja por uma ou por outra possibilidade, o certo é que solicitei, esperançosamente, a realização de uma polisonografia para o estudo da arquitetura do sono de nosso paciente. É sabido que a narcolepsia é o segundo transtorno mais comun da sonolência diurna excessiva em pacientes atentidos nos centros de transtorno de sono (o primeiro é a síndrome de apnéia do sono obstrutiva). É igualmente prevalente em homens e mulheres e estabelece-se por volta dos 30 anos, aparecendo geralmente na adolecência. Significa "crises de sono", ocorrendo muitos ataques de sono num dia. Em três quartos dos casos associase a cataplexia, onde há perdas do tônus muscular temporariamente e, por vezes, com associação a estímulos emocionais específicos.A narcoleis-cataplexia é um transtorno vitalício que pode levar à incapacidade social, profissional e psiquiátrica.Como o distúrbio origina-se da invasão ou intrusãoda pressão de sono REM no estágio de vigília, ocasionando assim, acessos incoercíveis de adormecimento diurno, o teste múltiplo de latência do sono (TMLS) demonstra o achado característico e patognomônico da narcolepsia, ou seja, o traçado de registro gráfico da descida rápida da vigília para sono REM (registro de uma série de 4 ou 5 cochilos diurnosespaçados a intervalos de 2 horas, começando às 16 ou 18 horas). Atualmente, o tratamento da narcolepsia fundamenta-se a administração de fármacos com propriedades psicoestimulantes (antidepressivos) do grupo IMAO e metilfenidato ou, então, o ISRS fluoxetina. Pois bem, havia dito que depositara esperança na polissonografia (TMLS) solicitada mas, infelizmente, tais expectativas não foram concretizadas simplesmente porque o nosso estudante, afogado em dificuldades financeiras, resolveu fazer o tal exame "com desconto" em um lugar tão duvidoso quanto o laudo técnico que se seguiu à sua realização e que me foi enviado deias depois. Como nem a conversa telefônica com o médico que fez o exame serviu para elucidar algum aspecto técnico do caso, exceto a sua súbita decisão de devolver o pecúnio que lhe fora sofridamente pago pelo estudante, resolvi desistir, pelo menos por hora, de outras tentativas de confirmação diagnóstica laboratorial.

Assim, iniciei sem demora metilfenidato na dosagem de um comprimido (10mg) por dia, desde que os IMAO haviam se mostrado ineficazes, Os resultados clínicos foram surpreendentemente positivos, havendo remissão completa da sonolência diurna e,  um mês depois, R. já comemorava alguns resultados acadêmicos bastante promissores. No entanto, passados três meses, como ainda persistissem leves sintomas distímicos residuais, permanecendo, contudo, sem acessos de adormecimentos diurnos, associei o ADT imipramina na dosagem de 50 mg/dia. Finalmentem R. Apresentou melhora clínica substancial que vem se mantendo e que tem correspondido a um aumento significativo e progressivo de sua qualidade de vida. Creio que pesquisas futuras e aquelas já em andamento que versam sobre as interseções neurobiológicas entre a narcolepsia e a diurna poderão, sem dúvida, trazer importantes esclarecimentos e contribuições quanto ao tratamento e à etiologia dessas condições clínicas, tão interessantes quanto desafiadoramente instigantes.

 

Gustavo Fernando Julião de Souza - psiquiatra