Transtorno Dismórfico Corporal: Relato de um Caso Clínico

Dr. Gustavo fernando Julião de Souza

Souza, G.F.J.*

*Médico Psiquiatra, Preceptor da Residência de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da U.F.M.G.


Unitermos: Relato de caso, Transtorno Dismórfico Corporal, Transtorno Bipolar, Fenomenologia, Espectro Obsessivo-Compulsivo, Suicídio.


Resumo:

O Transtorno Dismórfico Corporal (TDC), que consiste em preocupações patológicas com a aparência ou defeitos em diferentes regiões do corpo, tem sido sistematicamente estudado somente na última década. No presente artigo o autor apresenta um caso clínico de TDC, cursando simultaneamente com Transtorno Bipolar. TDC é, atualmente, considerado uma severa e incapacitante desordem psiquiátrica e que é mais comum do que se pensava anteriormente.


Summary:

Body Dysmorphic Disorder (BDD), wich consists of pathological preoccupations with appearance or defects in different body parts, has been systematically studied only in last decade. In this paper the author present a clinical case of BDD, simultaneously coursing with Bipolar Disorder. BDD is recognized, in present time as a severe and disabling disorder that is more common that had been assumed.


Key Words: Case-report, Body Dysmorphic Disorder, Bipolar Disorder, Phenomenology, Obsessive-Compulsive-Related Disorders, Suicide


Relato de Caso:

L.G., como o chamaremos aqui, é um rapazola de quinze anos e que vai à consulta acompanhado pelos pais no início de março de 2001. Havia sido encaminhado pela supervisora do colégio onde estudava, sendo que, na época, cursava o 1º ano do segundo grau. Tem uma irmã de onze anos de idade que estuda no mesmo colégio e sempre se relacionou muito bem com a família. Além disso, nunca teve problemas com os estudos, sempre conseguindo boas notas e era estimado pelos colegas e professores devido ao seu temperamento afável e afetuoso. A mãe relatava que ele nunca tinha sofrido doenças graves, apenas alguns problemas respiratórios ocasionados por desvio de septo e cistos das fossas nasais que foram corrigidos através de cirurgia otorrinolaringológica realizada em 30/07/99, quando contava com treze anos de idade.
Foi a partir desse instante, mais precisamente após retirar os tampões das narinas no pós-operatório, que L.G. começou a notar “uma mudança radical” em sua fisionomia, achando que seu rosto havia ficado “inchado”, “diferente”. Desde então, passou a sentir-se irremediavelmente “feio”, evitando sair de casa e esquivando-se de festas e reuniões sociais. Passou, também, a ocupar grande parte de seu tempo em demoradas e repetitivas observações de seu rosto ao espelho de seu quarto, ocasiões nas quais detectava, bastante contrariado e aflito, assimetrias e “deformações” em suas sobrancelhas, cabelos e nariz. A família, de início, não dera muita atenção ao fato, pensando tratar-se de exacerbação de fenômeno normal da idade, ainda mais considerando que ele sempre, desde tenra idade, preocupara-se muito com sua aparência, modo de vestir e na impressão que provocaria nas pessoas. Sempre demonstrara temperamento meticuloso e organizado, com tendência a valorizar o conceito de outras pessoas a respeito de si próprio, seus gestos, aparência e atitudes. Entretanto, com o passar do tempo, a situação agravava-se progressivamente. Ficava, a cada dia, mais e mais preocupado com os “defeitos” e “deformações” em seu rosto, intensificando as miradas ao espelho ou em qualquer superfície que refletisse sua imagem. Assim, seu comportamento terminou por constituir-se em verdadeiros rituais de conferência ao espelho, consistindo ora em rápidas olhadelas, ora em longas contemplações, ocasiões nas quais passava gel nos cabelos, “acertava” com os dedos as sobrancelhas e penteava-se interminavelmente. Passou a evitar ir à escola e seu rendimento acadêmico deteriorou-se rapidamente.
À consulta, L.G. mostrou-se um adolescente infeliz e desolado, apesar da vivacidade e vigor próprios de sua idade. Entabulou conversa facilmente comigo, demonstrando ser naturalmente comunicativo, educado e inteligente. Tratava-se de um rapaz de estatura média, dotado de boa compleição física, tez morena e cabelos pretos, cuidadosamente aparados e penteados com gel, que emolduravam um rosto oval e bem proporcionado em seus traços fisionômicos. O nariz era algo saliente e as sobrancelhas espessas, mas em nada destoavam do conjunto de suas feições como um todo, que poderia descrever-se, em síntese, como agradável e harmônico. Disse que se julgava “bonito” antes da cirurgia a que se submetera, mas que acontecera “alguma coisa” que “transformara seu rosto para pior”, tornando-o “feio”. “Agora não tenho coragem de expor a público essa coisa horrível que é o meu rosto”, afirmou. Obviamente, L.G. não levou a sério meus argumentos de que era um rapaz normal e bem apessoado, pois sorriu com descrença, balançando negativamente a cabeça ao ouvir minhas palavras e nem, tampouco, pareceu interessar-se quando tentei explicar-lhe que tudo o que sentia era característico do distúrbio do qual fora acometido. Voltou a reafirmar, como sempre, que sua única esperança era fazer uma cirurgia plástica “para mudar seu rosto”. E seus pais, pessoas simples, pareceram entender apenas parcialmente os meus esclarecimentos médicos, mas dispuseram-se a colaborar com o tratamento em tudo o que fosse possível, demonstrando boa vontade e bastante interesse. Aliás, aparentemente, formavam um casal com bom relacionamento, ele, o pai, um bancário bastante dedicado ao trabalho, homem discreto, de poucas palavras, mas solícito, e a mãe, do lar, pessoa afetuosa, sentimental e efusiva.
Receitei cloridrato de fluoxetina (20mg/dia) associado a pimozide (1,0mg/dia) e aconselhei retornos semanais visando psicoterapia cognitivo-comportamental. Infelizmente, como isso não foi possível, a família optou por voltar para controle clínico no prazo de um mês.
Com efeito, L.G. voltou à consulta antes da data marcada, ainda no final de março. Segundo seus pais, ele havia piorado bastante. Tinha perdido média em todas as matérias, estava acordando às quatro horas da manhã para olhar-se ao espelho e estava manifestando grande desespero e inconformismo com a sua aparência, tendo chegado a ameaçar suicidar-se pulando de um viaduto. Ainda, chorava continuamente e, frequentemente, revoltava-se com os pais, acusando-os de “tê-lo gerado daquela forma, um monstro”. Suspendi a medicação anterior e prescrevi clomipramina (75mg/dia) associada a risperidona (2,0mg/dia). Entretanto, como após duas semanas os sintomas depressivos não melhorassem, continuando a exibir choro fácil e idéias de suicídio, resolvi hospitalizá-lo para fazer infusões venosas de clomipramina em doses crescentes, chegando até 150mg/dia (E.V). Recebeu alta hospitalar a pedido da família após dez aplicações consecutivas de soroterapia, mantendo, em casa, a medicação anterior. Apresentava-se aparentemente melhor, dizendo-se, tranquilo e sorridente, mais “otimista” e, quando interrogado a respeito de suas preocupações, garantiu que “estava se esquecendo de tudo aquilo”.
No entanto, alguns dias depois, L.G. começou a manifestar uma mudança singular em seu comportamento. De deprimido e desalentado que estava anteriormente, passou a apresentar-se estranhamente excitado, disfórico e inadequado. Dizia que queria fazer cirurgia plástica para obter um rosto exatamente idêntico ao de um certo cantor de uma banda musical que fazia, então, grande sucesso popular. Carregava consigo um ‘poster’ do referido artista, o qual chegou a mostrar-me numa consulta com insólito entusiasmo e inédita loquacidade. Desenvolveu insônia severa e inquietação acentuada até que, certo dia, em súbito impulso, raspou completamente suas sobrancelhas com a lâmina de barbear.
Prescrevi carbonato de lítio (450mg/dia) e mantive os demais medicamentos. Entretanto, o paciente continuou disfórico, insone e agitado, resultando que, no final de abril, iniciou ECT (eletroconvulsoterapia) sob narcose e curarização em regime externo na frequência de duas vezes por semana. Após a segunda aplicação de ECT, paradoxalmente, L.G. apresentou sensível piora do quadro maníaco. Saía correndo pelas ruas, passou a comprar revistas pornográficas, pedia dinheiro emprestado para os vizinhos, desferia murros nas portas, quase não dormia e dizia que iria ser cantor e que compraria um carro BMW.
Suspendi o ECT e demais medicamentos, associando o carbonato de lítio (900mg/dia) ao haloperidol (10mg/dia). No entanto, como adviessem efeitos colaterais, tais como sialorréia, hipocinesia e distonia aguda, substituí o neuroléptico pelo ácido valpróico (de início 500mg/dia e, posteriormente, 1,0g/dia) associado ao carbonato de lítio (900mg/dia). Em meados de maio, o paciente estava aparentemente estabilizado, com litemia de 0,7mEq/litro. Mostrava-se calmo, voltou a frequentar as aulas e, até, começou a interessar-se por uma colega da escola. Parecia estar bem melhor, afirmando não mais estar tão preocupado com sua aparência.
Contudo, ainda no final do mês, houve nova piora súbita e importante dos sintomas dismorfofóbicos. Certo dia, após longa contemplação ao espelho, espatifou-o com fúria, chegando a ferir-se na mão. A partir daí, recomeçou a manifestar comportamento agressivo e desesperado, dizendo-se inconformado e “com muita raiva”. Chegou a quebrar alguns objetos em casa e investia contra os pais, agredindo-os verbalmente com muita veemência.
Resolvi, então, iniciar tratamento com clozapina e, para isso, solicitei hemograma completo. O resultado do exame mostrou-se normal e, a partir do dia 14/06/2001, começou a usar o referido medicamento, iniciando com 25mg/dia e chegando a 100mg/dia após dez dias. A escolha da clozapina deveu-se, além de suas potentes propriedades antipsicóticas, à sua reconhecida eficácia como estabilizadora do humor, já que suspeitava que sintomas maníacos residuais estivessem exacerbando a sintomatologia dismorfofóbica de L.G. Na verdade, era provável que as flutuações sintomatológicas dismorfofóbicas de seu quadro clínico estivessem estritamente correlacionadas às viragens afetivas, ou mesmo subafetivas, de seu padrão psicopatológico de humor.
Com efeito, o paciente começou a manifestar melhora visível e progressiva de suas preocupações a respeito de sua aparência. Duas semanas depois do início do tratamento, com a administração simultânea diária de 100mg/dia de clozapina e 900mg/dia de carbonato de lítio, L. G. já havia voltado à sua vida normal. Segundo seus pais, estava olhando-se com muito menos frequência no espelho, ia normalmente à escola, mostrava-se mais tranquilo e queixava-se bem menos de sua aparência. Além disso, matriculou-se numa academia de ginástica, onde fazia exercícios de musculação durante a semana. Aos sábados e domingos frequentava o clube com os pais, onde jogava futebol e praticava natação regularmente.
Os meses foram passando e o paciente, apesar de às consultas demonstrar inalteradas as queixas a respeito de sua aparência, continuava levando uma vida aparentemente normal e sem maiores flutuações de humor ou instabilidades de seu estado de ânimo e comportamento. Havia, devido aos medicamentos, engordado aproximadamente cerca de dez quilos e, devido a isso, dedicara-se de maneira espartana aos exercícios físicos da academia de ginástica, tendo, ao final de novembro, para sua satisfação, adquirido massa muscular suficiente para exibir um corpo atlético e bem proporcionado.
Em dezembro de 2001, à consulta, correspondendo à vigésima sexta semana de tratamento com clozapina, notei que L.G. estava surpreendentemente despreocupado em relação à sua aparência fisionômica. Mostrava-se tranquilo, satisfeito e com expectativas promissoras em relação às férias de final de ano que, felizmente, se concretizaram. Viajou com a família para a cidade de origem, no interior do Estado, e lá conheceu várias garotas, namorou, participou das festas de férias, inclusive das comemorações do Carnaval, enfim, divertiu-se à larga.
Entretanto, ao voltar às aulas, em fevereiro de 2002, sentiu que a sedação ocasionada pela clozapina o estava prejudicando em seu rendimento acadêmico, mais precisamente, em termos da dificuldade para levantar-se pelas manhãs e para concentrar-se nos estudos devido à sonolência diurna. Reduziu, por sua iniciativa, a dosagem do medicamento para 50mg/dia e, posteriormente, para 25mg/dia. Depois, por sua conta, finalmente suspendeu-o. Alegava que a medicação ocasionava apetite excessivo, sonolência e sedação. Imediatamente, entretanto, L.G. começou a manifestar piora dos sintomas anteriores. Voltou a ficar inquieto e a falar dos “defeitos” de sua aparência, além de olhar-se demasiadamente ao espelho. Certo dia, na escola, os colegas o surpreenderam chorando convulsivamente em um intervalo das aulas e procuraram consolá-lo. Em outro, brigou com o pai. Perdeu média em quatro disciplinas. Voltou a falar em cirurgia plástica e de seu desejo de mudar seu rosto para parecer-se com o tal cantor famoso. O quadro clínico deteriorava-se rapidamente.
Em dezesseis de maio de 2002 iniciamos ziprasidona na dosagem de 40mg/dia e, posteriormente, 80mg/dia. Em 11/06/2002 o paciente retornou à consulta sensivelmente melhor. Havia emagrecido cerca de 3 kg nesse período e os pais relataram melhora acentuada dos sintomas dismorfofóbicos, estando em uso de 40mg/dia de ziprasidona, desde que com 80mg/dia havia surgido um efeito adverso bastante incômodo, uma coriza. No início de julho já conseguira recuperar-se em todas as disciplinas, mostrava-se eutímico e bem disposto e praticava esportes regularmente.
No entanto, no final do mês, ainda nas férias, após duas semanas sem qualquer medicamento, os quais interrompera mais uma vez, voltou a apresentar nova crise aguda, desta vez de grandes proporções. Chegou a empurrar sua mãe, ameaçando agredi-la, quebrou alguns objetos e raspou os pelos do tórax e abdômen. Os pais relataram que, inicialmente, o notaram particularmente irritadiço, olhando-se muito ao espelho e chorando com facilidade e, posteriormente, desenvolveu agitação, raiva e cólera. Uma semana depois, nova melhora surpreendente com o retorno da medicação. Disse-me: “Desde que levantei minha sobrancelha, com os dedos, no final da semana passada, alguma coisa mudou para melhor na minha fisionomia...mudou completamente, V. está vendo?”. Mostrou-se entusiasmado para “malhar”, evidenciando bastante disposição.
Desde essa ocasião, até o momento atual, final de outubro de 2002, L.G. não apresentou mais crises agudas, estando em uso de 80mg/dia de ziprasidona associada a 900mg/dia de carbonato de lítio. Entretanto, sofreu algumas viragens subafetivas do humor, mostrando-se, por algumas vezes, triste e melancólico e, em outras, singularmente animado, praticando exercícios físicos exageradamente. A adição de 1,0g/dia de ácido valpróico, no início de setembro, não pareceu trazer maior estabilidade à desregulação do humor de base. Os sintomas dismorfofóbicos, por seu turno, ora acentuam-se e ora atenuam-se, aparentemente intensificando-se ou mitigando-se ao sabor daquelas variações endógenas e aleatórias do humor. Por outro lado, persiste o comportamento evitativo em relação a namoros e eventos sociais, coisa que somente havia melhorado no início do ano, época na qual encontrava-se em uso de clozapina.




Discussão:

Segundo o DSM-IV (1), a característica essencial do Transtorno Dismórfico Corporal consiste em uma preocupação com um defeito na aparência (Critério A). O defeito é imaginado ou, se uma ligeira anomalia física estiver presente, a preocupação do indivíduo é acentuadamente excessiva (Critério A). Essa preocupação deve causar sofrimento significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo (Critério B). Ainda, a preocupação não é melhor explicada por outro transtorno mental (Critério C). As queixas geralmente envolvem falhas imaginadas ou leves na face ou na cabeça, tais como perda de cabelos, acne, rugas, cicatrizes, marcas vasculares, palidez ou rubor, inchação, assimetria ou desproporção facial, ou pêlos faciais excessivos. Outras preocupações comuns incluem o tamanho, a forma ou algum outro aspecto do nariz, olhos, pálpebras, sobrancelhas, orelhas, boca, lábios, dentes, mandíbula, queixo, bochechas ou cabeça. Entretanto, qualquer outra parte do corpo pode ser o foco de preocupação e essa pode concentrar-se simultaneamente em qualquer uma delas. Embora a queixa frequentemente seja específica, ela por vezes pode ser vaga e alguns pacientes podem apenas referir-se à sua “feiúra”geral.
Ainda, segundo o DSM-V, a maior parte dos indivíduos acometidos por esse transtorno experimenta acentuado sofrimento acerca de sua suposta deformidade, geralmente descrevendo suas preocupações como intensamente dolorosas. Frequentes verificações frente ao espelho e exames do suposto “defeito” em outras superfícies refletoras disponíveis podem consumir várias horas do dia. Os pacientes frequentemente pensam que os outros podem estar observando com especial atenção sua suposta deficiência, talvez comentando a respeito dela ou ridicularizando-a. A esquiva de atividades costumeiras pode levar a um extremo isolamento social, podendo resultar no abandono do trabalho ou da escola, dificuldades em fazer amizades e iniciar ou manter relacionamentos amorosos. Ideação suicida ou suicídio consumado pode ocorrer, assim como repetidas hospitalizações. Além disso, esses pacientes frequentemente buscam e recebem tratamentos médicos gerais, dentários e cirúrgicos para a correção de imaginados defeitos que, aliás, costumam piorar o transtorno, levando a uma intensificação ou a novas preocupações que podem culminar em procedimentos mal sucedidos adicionais. O transtorno parece ser diagnosticado com frequência aproximadamente igual em homens e mulheres, iniciando-se em geral na adolescência de forma gradual ou súbita e seu curso é flutuante e crônico.
O manual de classificação do CID-10 (2) inclui o Transtorno Dismórfico Corporal na categoria correspondente a “Outros transtornos delirantes persistentes” sob o código F22.8, mais precisamente, com a denominação “Dismorfofobia Delirante”.
Na última década essa intrigante doença foi muito bem estudada em sua sintomatologia, variáveis demográficas, história familiar, neurobiologia, comorbidades, curso clínico, resposta à farmacoterapia e psicoterapias comportamentais, além de solidamente estabelecida como entidade nosológica autônoma por um bom número de autores, especialmente por HOLLANDER e cols. (3-12). Estes foram os primeiros a estudar a interseção dessa entidade clínica com o Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) e sua inclusão no chamado espectro obsessivo-compulsivo, que compreende uma única categoria de transtornos intimamente relacionados, resultando em importantes implicações diagnósticas, etiológicas e terapêuticas. Sustentam que os transtornos situados no espectro obsessivo podem ser visualizados ao longo de um continuum constituído pela ‘prevenção contra danos’, em um de seus pólos, e pela ‘procura por novidades’ no outro. Essa dimensão pode ser definida como uma estrutura patofisiológica que relaciona hiperfrontalidade e aumento da atividade serotoninérgica com desordens compulsivas e hiperfrontalidade e baixa atividade serotoninérgica pré-sináptica com desordens impulsivas. Isto explicaria a boa resposta clínica que esses transtornos costumam apresentar aos inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS) (3-9).
Ansiedade social é um proeminente componente do Transtorno Dismórfico Corporal (TDC) e a esquiva social resultante pode ocasionar sérios prejuízos no funcionamento social do paciente. Nos casos mais severos de esquiva social, o prejuízo ocupacional associado com o déficit acadêmico pode resultar em confinamentos prolongados em domicílio. A prevalência estimada do TDC nos Estados Unidos da América é de 1% a 2% e em cerca de 11% a 12% em pacientes com transtorno de ansiedade social. Comportamentos habituais do TDC incluem checagens ao espelho, consultas médicas, cuidados especiais com os cabelos, uso de cosméticos e esquiva social, além de repetidas cirurgias plásticas. Adicionalmente, depressão e suicídio são frequentes complicações do TDC (10).
Entre adolescentes, o TDC é um problema pouco diagnosticado e escassamente reconhecido, embora o seu início ocorra nessa faixa etária. Considerando-se as altas taxas de comorbidade com depressão e suicídio, torna-se extremamente importante o diagnóstico precoce e imediato início do tratamento (11).
Em um estudo conduzido por PHILLIPS e cols. (13) com uma amostra de 30 pacientes portadores de TDC (17 homens e 13 mulheres), detectou-se que a média de idade de início do transtorno era por volta dos quinze anos. Cerca de 73% dos pacientes praticavam checagem excessiva ao espelho, 63% usavam camuflagens para encobrir suas supostas deformidades e 97% evitavam o trabalho ou atividades sociais. Cerca de noventa e três por cento dos pacientes tiveram, ao longo da vida, diagnóstico de transtorno maior do humor.
Também parece bastante consolidada a certeza de que tratamentos dermatológicos, dentários ou cirúrgicos, que são realizados para “corrigir” os supostos defeitos ou deformidades alegadas, geralmente pioram o quadro clínico desses pacientes (13-15).
AKISKAL e cols. (16), em um estudo com cerca de 58 pacientes ambulatoriais portadores de TDC, encontraram algumas diferenças quanto ao sexo relacionadas aos tipos de preocupação dismorfofóbicas e diversas comorbidades apresentadas. As mulheres manifestaram mais preocupações dirigidas às pernas e mamas e expressaram maior intensidade de checagens ao espelho e uso de camuflagens, além de haver maior comorbidade com transtorno do pânico, ansiedade generalizada e bulimia. Os homens mostraram intensa preocupação principalmente a respeito dos genitais, peso corporal e excesso de pêlos corporais, assim como alta comorbidade com transtorno bipolar. Ainda, os autores concluem que, apesar do TDC quase nunca ser encontrado sem alguma comorbidade, essa entidade clínica pode ser considerada, com segurança, uma síndrome autônoma.
GRANT e cols.(17), em um estudo com 41 pacientes portadores de anorexia nervosa, encontraram 39% de casos que puderam ser diagnosticados como TDC de acordo com um questionário semi-estruturado específico que foi aplicado na pesquisa. Os resultados preliminares sugerem que o TDC pode ser relativamente comum entre pacientes com anorexia nervosa e que a presença de tal comorbidade pode indicar um tipo mais severo de transtorno, acarretando maior prejuízo geral em seu funcionamento social e aumento do teor delirante presente em suas preocupações anômalas.
Resumindo, podemos concluir que o Transtorno Dismórfico Corporal, também denominado Dismorfofobia Delirante, consiste em uma doença grave, de evolução clínica crônica, potencialmente incapacitante, com alto risco de suicídio e elevadas taxas de comorbidade, especialmente com depressão, transtorno bipolar e outras condições clínicas relacionadas ao espectro do transtorno obsessivo-compulsivo. Em vista de todos esses fatores, trata-se de uma doença que exige um rápido reconhecimento e diagnóstico precoce, objetivando-se iniciar o quanto antes o tratamento para tentar minimizar, até onde seja possível, suas graves complicações e consequências indesejáveis.
Creio que o caso clínico apresentado neste artigo conseguiu ilustrar as enormes dificuldades com as quais o psiquiatra pode se defrontar em relação ao manejo adequado do arsenal terapêutico de que se dispõe, até o momento atual, para o tratamento de tão grave transtorno psiquiátrico.
Mas, na verdade, nisso consiste o gratificante desafio do exercício da Psiquiatria, ou melhor dizendo, apenas tentando superar todas as dificuldades e limitações inerentes ao tratamento é que se consegue atenuar um pouco a dor e a angústia desses pacientes e, também, transmitir aos psiquiatras mais jovens alguma experiência clínica que lhes possa ser útil para o tratamento de casos semelhantes no futuro.


Referências Bibliográficas:

1. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais- DSM-IV-4a Edição- Editora Artes Médicas, Porto Alegre, 2000
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