Este ensaio é dedicado à memória e Ernst Kretschmer
Minha gratidão ao Prof. Paulo Saraiva que incentivou a realização deste trabalho

Gustavo Fernando Julião de Souza

“CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE AS NEUROSES:
UMA VISÃO FENOMENOLÓGICO-DINÂMICA”

ÍNDICE

I - INTRODUÇÃO - 1
II - UM ENFOQUE TEÓRICO PRELIMINAR - 4
III - UM ENFOQUE INTEGRADOR - 9
IV - OS FENÔMENOS OBSESSIVOS - 45
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS - 62

I – INTRODUÇÃO:

Após último trabalho que fizemos*, julgamos ser de muita valia a discussão sobre os quadros neuróticos em geral, objetivando conseguir uma visão dinâmica e satisfatória dessas entidades clínicas com base naqueles conceitos fundamentais que já tivemos oportunidade de estabelecer antes.

A maior dificuldade desse empreendimento, entretanto, consiste no fato de que os quadros neuróticos são tradicionalmente delimitados e classificados de acordo com as suas características clínicas preponderantes, como entidades nosológicas compartimentadas e distintas. Assim, menciona-se, por exemplo, a neurose de ansiedade ou então a neurose de angústia, como se, no primeiro caso, deparássemo-nos somente com o visível componente ansioso e, no segundo caso, apenas com os sintomas depressivos. Isso leva, principalmente os médicos não psiquiatras e os estudantes deste campo de estudo, ao pensamento de que os quadros neuróticos são essencialmente distintos entre si e apartados rigidamente quanto aos sintomas apresentados pelos pacientes. Acrescenta-se a isso o fato de que, normalmente, há diferenças substanciais quanto às concepções teóricas estabelecidas e aceitas pelos especialistas, dependendo do tipo de enfoque utilizado para a compreensão e entendimento desses quadros clínicos. Discute-se muito sobre a ‘visão fenomenológica’e a ‘visão psicológica’, subentendendo-se neste caso uma diretriz teórica da meta-psicologia analítica freudiana ou junguiana e, mais recentemente, da lacaniana.

Ainda, haveria a convicção, defendida pelos grupos específicos, de que o enfoque psicológico seria o mais rico e produtivo, pertencendo ao domínio da Psicologia, enquanto que o fenomenológico caberia à Psiquiatria, etc. No que diz respeito a isso, hoje assistimos, em nosso meio, a tentativas de se elaborar um bom número de esquemas compreensivos psicodinâmicos sob a denominação de ‘psicopatologia psicanalítica’, tentativas que, ao nosso ver, correm o risco de se constituírem em peças de resistência isoladas ao estudo completo e integral dos dois campos de estudo originais que se propõem a unir, ou seja, a Psiquiatria Fenomenológica e a Psicologia Analítica, tornando-se, assim, esquemas teóricos incompletos e com uma aplicação prático-clínica de eficácia duvidosa.

Para complicar ainda mais a tentativa de compreensão das neuroses, temos que considerar o surgimento de novas linhas ideológicas de estudo representadas por escolas, dogmas e princípios alicerçados em motivos místico-religiosos, anti-psiquiátricos, político-linguísticos, sócio-econômicos, além de muitos outros que têm um ponto em comum: aparentemente são inconciliáveis e irreconciliáveis entre si mesmos. Esse fervilhar de idéias, conceitos, opiniões, modismos, clichês e debates, ao invés de favorecer o entendimento e a compreensão dos quadros neuróticos como um todo, fez com que o assunto se transformasse em uma enorme confusão que, na verdade, se produz sobre um pano de fundo representado pelo velho embate entre Materialismo e Idealismo e Corpo e Espírito, dualismos eternos do pensamento humano. Quanto a isso, não somente a tentativa de compreensão das neuroses transformou-se em um insensato combate entre as duas facções dogmáticas opostas, mas também o entendimento das doenças mentais foi bastante prejudicado sob o ponto de vista científico-natural. Pensamos que o ruidoso movimento da antipsiquiatria, de caráter essencialmente político e que, na verdade, foi criado dentro da vertente ideológica contra-cultural que invadiu o mundo inteiro há cerca de duas décadas,

* “Simbolização: uma Síntese Sócio-Antropológica e Psicológica” (18)

não trouxe nenhuma proposta terapêutica que se mostrasse realmente eficaz ou que obtivesse resultados benéficos e satisfatórios na prática clínica, servindo apenas para dificultar, principalmente em nosso meio, o desenrolar de debates e discussões exclusivamente voltados para a aquisição de informações e novidades científicas atualizadas que pudessem representar o avanço efetivo da Psiquiatria como ciência. Entretanto, vale a pena dizer que em Centros de Estudo bem mais desenvolvidos, principalmente do exterior, temos conhecimento de que vêm sendo levadas a cabo várias tentativas exaustivas de reclassificação nosológica, principalmente no que se refere aos quadros depressivos. Estudos empírico-estatísticos e evidências laboratoriais bioquímicas recentes vêm despertando a atenção e o interesse dos pesquisadores e estudiosos, incitando a revisão constante de conceitos e certezas metodológicas até há pouco tempo considerados definitivos. O conceito de endogenicidade, por exemplo, já não carrega o sentido exclusivo de organicidade que sempre lhe foi tradicionalmente atribuído, foram criados novos tipos clínicos de depressão tais como quadros depressivos maiores e menores, desordens distímicas e depressão caracterológica. O campo de estudo e de pesquisa da Psiquiatria encontra-se, desse modo, sob um fluxo de contínua revisão e renovação, o futuro avança celeremente rumo a descobertas ainda insuspeitadas, sendo que as maiores esperanças científicas parecem residir nos estudos de biologia molecular.

De qualquer maneira, propusemo-nos a discutir tal assunto esperando que essas reflexões sirvam para trazer alguma elucidação em um campo tão obscuro quanto ocupado pelas várias idéias, vertentes teóricas e interesses, sublinhando que não é nosso objetivo esgotar o tema, mas sim tecer algumas considerações teóricas que podem tornar-se úteis na prática clínica. A nossa linha de análise se fará apoiada naqueles conceitos que estabeleceremos no decorrer do texto e em exemplos onde o material clínico ilustrativo reforçará a validade teórica dos primeiros. Pelo menos é isso que esperamos que aconteça.

Belo Horizonte, julho de 1988

Gustavo Fernando Julião de Souza

II - UM ENFOQUE TEÓRICO PRELIMINAR

Para começar, sabemos que o paciente neurótico sempre mantém íntegros os seus juízos de realidade no decorrer de sua evolução clínica. Não há um comprometimento do complexo simbólico correspondente à idéia e sentimento de ‘si mesmo’quanto ao caráter de identidade, mas tão somente, e mesmo assim em alguns casos mais graves e em grau muito pequeno, do caráter de atividade. Procuraremos explicar o que afirmamos com o máximo de clareza através das considerações que vêm a seguir.

O caráter de atividade e identidade de ‘si mesmo’correspondem, ambos, a complexos simbólicos constituídos por idéias e sentimentos subjetivos de certeza da ação efetuada e da mensagem emitida no âmbito da consciência individual, ou seja, estão integrados harmonicamente no todo reflexivo momentâneo, pessoal, singular e individualizado. Uma análise mais detalhada da questão mostra, entretanto, que esses dois tipos de complexo simbólico, na verdade, podem ser reduzidos para somente um tipo no que se refere à sua realidade fenomênica simbólica unitária. Para que compreendamos perfeitamente o que estamos afirmando, teremos que fazer uma rápida recapitulação de conceitos importantes estabelecidos antes.

Como já vimos, o fenômeno significação ( ) é acompanhado sempre pela certeza da compreensão, pela convicção subjetiva de exatidão do entendimento e do conhecimento. Ainda, que significação é o conhecimento subjetivo pleno, absoluto e convicto de uma coisa objetivada ou de um evento externo ou interno ao indivíduo em um determinado momento. Além disso, dissemos que a noção de’si mesmo’, intermediada e forjada pelo simbólico através da consciência de significação do mundo, gradualmente evoluirá para a estruturação completa da consciência de ‘si mesmo’ ou consciência individual dotada de um caráter singular de autonomia, atividade e de identidade. Ora, quando normalmente realizamos algo, quando efetuamos qualquer ação, isso vem carregado de plena convicção subjetiva quanto à autonomia intrínseca à nossa própria realização, isto é, sabemos que somos nós mesmos que o estamos fazendo. A certeza da autonomia de qualquer realização está, desse modo, intimamente interligada também à certeza de nossa própria identidade enquanto produtores e causadores únicos dessas realizações. Isso, ao nosso ver, mostra claramente como o caráter de identidade e de atividade seriam como duas faces do mesmo fenômeno, neste caso representado por um complexo simbólico constituído por idéias e sentimentos capazes de corresponder à certeza íntima mais natural e espontânea da condição de estruturação harmônica e íntegra da consciência de ‘si mesmo’. O caráter de atividade e de identidade da consciência individual seriam modos específicos de denotação e caracterização de estados subjetivos particulares dela mesma quando imbuída de um esforço reflexivo voluntário experimentador. Pois a significação do cotidiano, do dia a dia, que vem acompanhada daquela naturalidade e espontaneidade, revela a integridade da consciência individual que só pode chegar a entender-se racionalmente através de um esforço reflexivo voluntário e intencional.

Pois bem, de que maneira esse complexo simbólico correspondente à certeza íntima da integridade da consciência individual seria afetado nas várias situações psicopatológicas que habitualmente observamos?

Para iniciar, partindo de nossa própria experiência clínica cotidiana, poderemos conseguir alguma compreensão sobre o assunto estudando um estado emocional relativamente simples e que é a ansiedade.

Em pessoas normais, eventualmente, ou naqueles indivíduos que chamamos ansiosos crônicos, seja tratando-se de ansiedade primária não derivada ou daquela que se origina de um fundo depressivo, podemos notar com bastante freqüência as seguintes características: o paciente geralmente se queixa de uma inquietação indefinível, de um mal estar generalizado, não se sentindo bem em nenhum lugar ou em nenhuma situação. Está sempre em estado de alerta, vivenciando quase todas as situações de modo irritável, com uma expectativa difusa e tensa dentro de uma espécie de excitabilidade indeterminada. Via de regra se sente inseguro, o domínio voluntário referente às realizações pessoais encontra-se prejudicado, há muita hesitação e indecisão quanto à execução de ações individuais, até mesmo as mais corriqueiras. Instala-se uma dúvida fluida e oscilante, a atenção torna-se dispersa e volátil. Não é incomum que o paciente por vezes se atenha a certos detalhes insignificantes do ambiente e se prenda à sua observação minuciosa . Isso, ao nosso ver, seria uma tentativa desordenada de ordenar e dar direção às suas emoções, até certo ponto caóticas, difusas e livres, fixando-as em algum detalhe ou cena corriqueira, diminuindo assim, a sua valência energética absoluta. Em casos graves, onde o estado de excitabilidade difusa é muito intenso, o paciente costuma despertar no observador um sentimento de estranheza e incompreensibilidade. Daí ser necessário o diagnóstico diferencial com um outro estado clínico, o humor delirante difuso, que costuma anteceder quadros de psicose esquizofrênica. Neste caso, além da ansiedade, constata-se quase sempre pressentimentos vagos e suspeitas obscuras sobre um fundo auto-referencial, porém muitas vezes o diagnóstico é difícil, porque em casos de ansiedade acentuada pode-se encontrar amiúde, sentimentos de desconfiança e apreensão. Ora, pensamos que isso nos mostra claramente que nos dois extremos do espectro nosológico psiquiátrico, isto é, nas neuroses, de um lado, e nas psicoses, do outro, podemos encontrar sintomas psicopatológicos bastante semelhantes e aparentados quanto a sua forma de expressão clínica, embora emanados de duas entidades nosológicas teoricamente bastante distintas e delimitadas. No primeiro caso, nos quadros de ansiedade acentuada, podemos dizer que se trata de estados neuróticos bastante agravados, enquanto que no segundo caso, no humor delirante difuso, podemos afirmar que se trata do prenúncio da irrupção de algo mais grave, do aviso e do sinal de que alguma coisa bastante séria está começando a se processar no psiquismo do paciente. Como explicar, então, que dois acontecimentos inerentes a alterações patológicas das estruturas psíquicas se expressem com aspecto semelhante? Como, de um lado, um distúrbio teoricamente ‘benigno’como a neurose pode manifestar-se de forma parecida com outro bastante grave, ‘maligno’, como a psicose esquizofrênica? Para conseguir alguma resposta, teremos que admitir que ambos distúrbios certamente ocasionam alterações do complexo simbólico correspondente à certeza íntima e pessoal da integridade da consciência individual como um todo indivisível e estruturado. No neurótico grave, a hesitação, a dúvida, a apreensão e a insegurança já denotam, em nosso ponto de vista, um ligeiro grau de comprometimento desse complexo simbólico que, no entanto, não chega a incidir sobre o seu caráter de identidade, porém provoca uma leve alteração no caráter de atividade.É nosso pensamento, e temos certeza que isso irá despertar muitos questionamentos, que o caminho percorrido entre a alteração do caráter de atividade e o de identidade é apenas uma questão de grau. Isso, no entanto, não pode afastar a nossa convicção de que uma alteração de grau do caráter desse complexo simbólico resultará em mudanças psicopatológicas qualitativas no que se refere às expressões clínicas manifestadas de acordo com o quadro apresentado.

Seja qual for a origem exata do processo esquizofrênico, ele induz uma alteração profunda no referido complexo simbólico de tal maneira a provocar, quase imediatamente após o estágio inicial do humor delirante difuso, uma modificação marcante no caráter de atividade da consciência individual a ponto do enfermo vivenciar a experiência de que há outras ‘pessoas’ou ‘forças’ extraordinárias influindo diretamente em seu pensamento e(ou) em seus atos. Esses verdadeiros fenômenos subjetivos de intervenção alheia convivem com outros sentimentos subjetivos nos quais o doente sabe que ele é ele mesmo, porém a mercê de poderosas ‘forças’ que o controlam e lhe impõem pensamentos e(ou) ações que crê, firmemente, estarem vindo do mundo externo.Devido a isso, há a perda progressiva da convicção subjetiva referente à autonomia intrínseca das ações e pensamentos próprios, com o doente, ora possuindo a certeza íntima de que é o produtor de seus próprios, e ora atribuindo-os a outrem, estabelecendo-se desse modo, uma situação psíquica bipartida e incongruente. Em um estágio mais avançado da doença e que certamente coincide com o comprometimento mais sério daquele complexo simbólico, há a alteração do mesmo no sentido de atingir a integridade do caráter de identidade da consciência individual. O doente acredita, de forma irrefutável, ser verdadeiramente uma outra pessoa ou até várias outras, de maneira alternada ou simultânea, e tudo isso dentro do mesmo estado psíquico bipartido, inconcruente e fragmentário.

É evidente que, nos quadros neuróticos em geral, há a preservação integral do caráter de identidade do complexo simbólico correspondente a certeza íntima das ações e pensamentos próprios, porém consideramos que o seu caráter de atividade encontra-se ligeiramente alterado em casos graves, no sentido das ações e pensamentos se expressarem destituídos de um pleno vigor de naturalidade e de espontaneidade. Em todos os quadros neuróticos há uma perda da desenvoltura e plenitude existenciais, resultado de interdição forçada daqueles equivalentes instintuais proibidos realizada pela consciência, porém nesses casos não seria legítimo, em nossa opinião, falar-se de alteração do caráter de atividade da simbólico correspondente, reservando-se esse conceito para aqueles casos mais graves como, por exemplo, em quadros de ansiedade muito intensa desenvolvendo-se sobre um fundo depressivo, nas chamadas depressões neuróticas agravadas e naqueles em que se pode observar com considerável nitidez tal alteração: os quadros verdadeiros de doença obsessivo-complusiva. Haveria, nesses casos, uma alteração do caráter de atividade daquele complexo simbólico no que diz respeito à consciência do existir, preservada que está, inteiramente, a consciência de execução.

Também podemos visualizar essa alteração nos quadros denominados depressivos endógenos nos quais, não raramente, detectamos uma verdadeira ‘paralisia do eu’, com o doente abstendo-se de todas as suas atividades e perdendo a iniciativa para a realização de qualquer ação. Há um estado de inibição dramática de todas as realizações pessoais, desde as mais simples até as mais elevadas, ficando o enfermo à mercê de seus inumeráveis sentimentos de auto-acusação, auto-reprovação e idéias de ruína e de culpa.

Após essas breves considerações a respeito da importância do complexo simbólico correspondente ao sentimento de integridade da consciência individual, que voltaremos a abordar juntamente com outros dados no decorrer dos tópicos subseqüentes, voltaremos agora a nossa atenção para o perfil geral das neuroses e sobre alguns aspectos específicos que podem facilitar a compreensão teórica em relação a esse grupo nosológica.

III - UM ENFOQUE TEÓRICO INTEGRADOR

Inicialmente teremos que investigar cuidadosamente um importante problema: de que maneira se instala um quadro neurótico determinado e quais são os fatores decisivos para o seu desenvolvimento e cristalização? Pois bem, tendo em vista o fato de que todas as vivências subjetivas são o resultado da força e da qualidade das circunstâncias ambientais em si mesmas aliadas a certas predisposições caracterológicas pessoais de reação, poderemos admitir que os quadros neuróticos em geral se originam dessa interação e se caracterizam por alguns sintomas emocionais específicos adquiridos durante o percurso histórico-biográfico do indivíduo. Certamente teremos que considerar para cada caso a importância relativa de cada uma daquelas duas dimensões distintas, mas que se interligam dinamicamente de maneira completa, forjando determinados estados vivenciais: a dimensão

Constitucional ou caracterológica e a dimensão factual ou circunstancial. Entretanto, parece muito trabalhoso, no atual estágio de desenvolvimento da Psiquiatria, poder-se obter uma quantificação exata dos ‘pesos’com que cada parte contribui na gênese dos inúmeros quadros neuróticos ou mesmo, em alguns casos, determinar-se com absoluta precisão qual das duas dimensões exerce a influência decisiva para o desencadeamento dos sintomas. Desse modo, não restam outras alternativas senão dedicar-se ao estudo exaustivo de certas variantes caracterológicas gerais que já forma agrupadas e classificadas por alguns autores 11, 12, 19, 20 e também proceder-se à investigação detalhada e minuciosa de todos os dados pessoais disponíveis em cada caso. Tudo deverá ser cuidadosamente avaliado e analisado a partir dos antecedentes mórbidos e das predisposições constitucionais heredo-familiares do paciente, passando pela demorada pesquisa de sua biografia, de seus gostos, de suas preferências, de seus hábitos e de seu temperamento. Entretanto, observamos que, atualmente, o conceito de ‘neurose’ainda é, amiúde, empregado de maneira indiscriminada e sem nenhuma preocupação ou compromisso metodológico, sendo utilizado muitas vezes para designar determinadas maneiras de ser, modos específicos de reagir, certas preferências de gosto e alguns hábitos pessoais, particularidades de temperamento, etc. Assim, freqüentemente, ouvimos pessoas leigas e até mesmo alguns colegas referirem-se, por exemplo, a alguém que apresenta traços importantes, persistentes e imutáveis de insensibilidade, fanatismo, perversidade ou de insegurança, ou seja, características fundamentalmente caracterológicas embebendo irremediavelmente o seu comportamento, como a um indivíduo essencialmente neurótico. Da mesma forma acreditam, em outro exemplo, que um comportamento teatralizado, caprichoso, instável e enganosamente caloroso, mas na verdade afetivamente distante e persistentemente egocêntrico, se origina de uma neurose, quando, na verdade, emana de uma constituição caracterológica nuclearmente histérica. Tratam-se ao nosso ver, de equívocos assíduos e que resultam da crença difundida (que de certo modo ainda assola os profissionais de saúde mental em nosso meio) de que os comportamentos neuróticos e as modalidades existenciais anormais caracterológicas são produtos derivados unicamente da sucessão múltipla de vivências pessoais. É um fenômeno do conhecimento coletivo que poderíamos afirmar, com segurança, tratar-se de um resíduo indelével da fé psicanalítica ortodoxa e que passa a se constituir em um estorvo para a compreensão e o entendimento do paciente verdadeiramente neurótico sob uma forma sensata, inteligível e desapaixonada. Posto que a verdadeira neurose, e cada vez mais temos a oportunidade de verificar isso na prática clínica, é o resultado final da interação dinâmica do patrimônio constitucional caracterológico com as vivências situacionais oriundas das circunstâncias ambientais.

Entretanto, esta concepção origina um problema bastante amplo e que resulta em uma indagação: até onde é possível detectar as nuances caracterológicas ‘puras’e onde começam as manifestações essencialmente neuróticas em um indivíduo cujo comportamento e peculiariedades subjetivas fazem com que haja um prejuízo, em graus variáveis, de suas relações interpessoais? Esta pergunta interessa bastante aquilo que diz respeito ao diagnóstico, ao prognóstico e ao tipo de tratamento a ser efetuado em cada caso. Pois, desde que consigamos detectar a natureza do distúrbio e estabelecer, mesmo aproximadamente, a sua gravidade, estaremos em condições de avaliar, com maior margem de segurança , a problemática individual como um todo. Consideramos dispensável, neste trabalho, a exposição e discussão dos diversos tipos de personalidade já estudadas e classificadas por outros autores, visto que o leitor poderá recorrer às fontes originais de consulta 11, 12, 19, 20 . Pois bem, como responder à indagação anterior? Qual é a relação entre o tipo caracterológico individual e a forma de expressão das manifestações neuróticas observadas em cada caso?

A prática clínica cotidiana tem favorecido algumas reflexões e conclusões a respeito desse problema. Podemos admitir, a princípio, que algumas personalidades No sentido de Kurt Schneider (19, 20)

sob a denominação constituição caracterológica típica aquelas personalidades dotadas de certas predisposições existenciais bem visíveis, constantes, estruturadas e bem delineadas.Em resumo, poderíamos agrupa-las em cinco tipos básicos e que são os seguintes: constituições hipertímicas, depressivas, inseguras de si mesmas, com certos traços caracterológicos importantes, costumam apresentar maior predisposição para reagir neuroticamente diante dos obstáculos existenciais que se lhes interpõem. Por exemplo, temos observado que aquelas personalidades mais frágeis, inseguras de si mesmas, com temperamento tímido e delicado e com tendências predominantemente depressivas são aquelas que costumam sucumbir diante de certas dificuldades objetivas, perante frustrações, fracassos ou perdas. Via de regra, faltam-lhes tenacidade, persistência, combatividade e otimismo vital para ultrapassar obstáculos existenciais comuns e até corriqueiros, costumando reagir com desespero e pânico, angústia e pessimismo. Nesses casos são comuns manifestações depressivo agudas ou crônicas em graus variáveis com tonalidades astênicas, assim como reações obsessivas e fóbicas, principalmente se existe tendência à escrupulosidade como traço importante de caráter.

Por outro lado, personalidades agressivas, competitivas e estruturalmente com tendências importantes ao detalhismo, meticulosidade, perseveração e escrupulosidade costumam reagir neuroticamente às dificuldades objetivas sob a forma de idéias obsessivas e, não raramente, de crises de pânico fóbico. Em outro exemplo, uma personalidade histérica, tal como descrevemos há pouco, expressará, na maior parte dos casos, os seus conflitos emocionais sob uma forma também histérica, isto é, apresentará sintomas tais como crises conversivas, anestesias, afasias, etc.

Entretanto, não raro constatamos expressões multiformes no que diz respeito aos tipos de manifestação neurótica apresentados independentemente da natureza caracterológica de base, ou seja, uma determinada personalidade pode demonstrar, de maneira simultânea ou alternada, várias modalidades de sofrimento neurótico.Assim, por exemplo, uma personalidade com traços histéricos poderá expressar os seus conflitos emocionais sob uma forma obsessiva. Contudo, em nossa opinião, essa plasticidade de expressão sintomatológica somente poderá ocorrer se estiver apoiada em uma relativa atipicidade, isto é, quanto menos típica for uma constituição caracterológica tão menor será a marca que imprimirá na forma da exteriorização neurótica como um todo. Entendemos

* No sentido de Kurt Schneider (19, 20)

sob a denominação constituição caracterológica típica aquelas personalidades dotadas de certas predisposições existenciais bem visíveis, constantes, estruturadas e bem delineadas.Em resumo, poderíamos agrupa-las em cinco tipos básicos e que são os seguintes: constituições hipertímicas, depressivas, inseguras de si mesmas (anancásticas), histéricas e insensíveis. A propósito desta classificação* que estamos propondo, vemos algumas vantagens na substituição do termo personalidade psicopática pelo de constituição caracterológica típica devido ao fato de que o primeiro geralmente se presta a algumas confusões motivadas, principalmente pelo sentido dúbio que lhe é inerente, enquanto que o segundo termo parece-nos mais claro e menos suscetível a associações interpretativas errôneas. De qualquer maneira, temos muitas razões para supor que as personalidades normais correspondem, na verdade, a constituições caracterológicas relativamente atípicas, mas que possuem alguns traços constitucionais predominantes pertencentes a uma daquelas constituições caracterológicas típicas básicas. Com efeito, notamos que apesar do polimorfismo da exteriorização neurótica as manifestações emocionais conflituosas sempre estão norteadas e embebidas pelos traços constituições caracterológicas típicas predominantes da personalidade, imbuindo-lhes determinados tons de temperamento e certas especificidades quanto à intensidade de expressão. Para que compreendamos com nitidez o que estamos dizendo, teremos que imaginar dois pólos extremos sendo que um deles é constituído pelas constituições caracterológicas mais típicas e o outro pelas menos típicas. O caminho percorrido entre o primeiro e o segundo pólo equivaleria à diminuição progressiva da tipicidade caracterológica, de tal maneira que no segundo pólo defrontaríamo-nos com constituições caracterológicas completamente atípicas e no espectro intermediário com constituições mais ou menos típicas. Ainda nesse percurso, à medida que constatássemos uma diminuição da tipicidade caracterológica, observaríamos simultaneamente um aumento da plasticidade no que se refere a possibilidade de polimorfismo das expressões neuróticas. Poderíamos dizer que no primeiro pólo residiriam aquelas constituições caracterológicas típicas encerradas dentro de uma espécie de ‘rigidez constitucional’(e portanto existencial) e nas quais as manifestações neuróticas se assemelhariam aos traços caracterológicos importantes da personalidade pré-mórbida, consistindo em exacerbações sintomatológicas derivadas das tendências constitucionais pré-estabelecidas. À medida que fosse diminuindo o grau de tipicidade até o ponto de nos depararmos com um acentuado grau de atipia caracterológica, a força de influência da base constitucional se tornaria mais branda e menos incisiva. Ora, tal raciocínio põe a mostra, imediatamente a importância da interação dinâmica do patrimônio constitucional caracterológico com as vivências situacionais oriundas das circunstâncias ambientais como ocasionadora dos quadros neuróticos em geral. Essa inter-relação, ao nosso ver, poderia ser configurada da seguinte maneira: quanto maior fosse o grau de ‘rigidez’ou tipicidade caracterológica do indivíduo, maior predisposição haveria para que algumas vivências subjetivas chave ocorridas em certos períodos importantes de seu desenvolvimento pessoal fossem complexificadas simbolicamente de acordo com determinadas tendências pré-estabelecidas de reação. Dessa maneira, as tendências constitucionais elegeriam e favoreceriam alguns tipos específicos de

complexificação simbólica, exerceriam o papel de eixo norteador e indutor de intensa polarização de determinadas viv6encias subjetivas, fossem elas oriundas de circunstâncias ambientais ou do imaginário cunhado na plena convicção de uma realidade desejada. Por

* Estamos utilizando a nomenclatura empregada por Kurt Schneider (19,20)

outro lado, quanto maior fosse a atipia caracterológica menor força possuiriam as tendências constitucionais para complexificar simbolicamente algumas vivências subjetivas específicas, crescendo em importância o grau de intensidade das circunstâncias ambientais como fator decisivo na gênese dos sintomas neuróticos.O conceito de atipia caracterológica pressupõe uma distribuição aproximadamente eqüitativa dos diversos traços e tendências constitucionais importantes na personalidade, diríamos até uma certa harmonização de tendências contrárias e de opostos naturalmente inconciliáveis. A atipia caracterológica máxima e ideal, então, seria aquela constituída pelo equilíbrio completo e integral das diversas tendências e predisposições humanas, resultando disso uma economia psíquica muito mais favorável em termos de adaptação do indivíduo ao meio ambiente. Ao, contrário, a tipicidade caracterológica máxima equivaleria a sobreposição isolada, abrangente e absoluta de certas tendências ou peculiaridades constitucionais que se apoderariam de toda a personalidade, consistindo no verdadeiro sobre o qual se edificaria toda a história do desenvolvimento pessoal de acordo com as predisposições específicas de reação inerentes a esse fundamento básico. Nos graus intermediários de tipicidade caracterológica mais próximos do primeiro pólo, encontraríamos algumas tendências constitucionais ainda bastante predominantes, porém já dividindo em parte, a direção das predisposições pessoais de reação com outras tendências constitucionais acessórias e secundárias.No decorrer do percurso em direção ao segundo pólo, encontraríamos as tendências constitucionais primárias coexistindo com outras tendências secundárias, terciárias, etc., até atingirmos a faixa de atipia caracterológica máxima. Esse modelo teórico parece-nos bastante útil para que consigamos visualizar, da maneira mais completa possível, a intensa diversificação e combinação dos variados e heterogêneos tipos caracterológicos que se nos apresentam na prática clínica. Ademais, teria a vantagem de retirar o tema referente as constitucionais caracterológicas (ou personalidades psicopáticas, segundo a nomenclatura de outros autores19, 20 ) do seu tradicional isolamento teórico perante as outras dimensões fenomenológicas do adoecer psíquico, além de despoja-lo da sua habitual visão estática e compartimentada, substituindo-a por um enfoque vivo, dinâmico e integrador.

Por exemplo, uma constituição caracterológica hipertímica em um grau máximo de tipicidade corresponderia a um indivíduo naturalmente muito ativo, isto é, com uma elevação do humor impregnando toda a sua atividade psíquica e ações cotidianas. Essa constituição caracterológica costuma corresponder a pessoas prestimosas, otimistas, superficiais e inteiramente voltadas para o imediato e o real. Após um ligeiro afastamento do primeiro pólo, constataríamos constituições caracterológicas hipertímicas (tendências primárias) bastante típicas, porém já mescladas com outras tendências constitucionais secundárias de reação. Caso houvesse como tendência secundária simultânea uma predisposição depressiva, o indivíduo se apresentaria sem humor básico propriamente alegre, mostrando-se uma pessoa irritadiça, agitada, mal humorada, reivindicativa e belicosa. Ainda nesse mesmo exemplo, se coexistissem ao lado daquelas tendências primária e secundária certas predisposições obsessivas como tendência terciária, o indivíduo poderia ser dominado por pensamentos que exagerariam o valor de sua própria pessoa ou de suas idéias, apresentando um comportamento que sugeriria fanatismo. Em suma, estariam assim sedimentadas hierarquicamente na personalidade as tendências constitucionais mais importantes e que, conjuntamente, norteariam as predisposições existenciais predominantes, neste caso representadas pela tendência primária hipertímica, pela secundária depressiva e pela terciária obsessiva (caráter anancástico). Uma constituição caracterológica hipertímica ou depressiva poderia estar enxertada por tendências secundárias de indiferença afetiva, resultando, no primeiro caso, em um indivíduo bastante ativo e desapegado que poderia ser um mercenário de guerra ou até um próspero banqueiro ou empresário, dependendo de sua aptidão intelectual e de seus interesses pessoais, enquanto que no segundo caso provavelmente se trataria de um indivíduo amargo, desconfiado, frio e maçante que bem poderia desempenhar o papel de um burocrata ou magistrado rígido, insensível e inflexível. Do mesmo modo, se a uma constituição caracterológica hipertímica se associassem tendências secundárias histéricas (predisposição para encenação e teatralização) e de frieza afetiva, possivelmente dependendo das oportunidades materiais disponíveis oferecidas e do grau de aptidão intelectiva, o produto final tanto poderia resultar em embusteiros e farsantes como em demagogos oportunistas ou refinados charlatões. Em outro exemplo, a uma constituição caracterológica depressiva (tendência primária) poderia estar associada uma tendência secundária histérica, além de coexistirem traços hipertímicos e obsessivos (tendências terciárias).Neste caso, vislumbraríamos de imediato, aqueles já conhecidos e desgastantes pacientes hipocondríacos que costumam peregrinar incansavelmente pelos consultórios médicos questionando, de forma beligerante e interminável, as terapêuticas indicadas e, por vezes, exigindo obstinadamente supostos benefícios previdenciários. Ainda, sobre uma tendência primária depressiva poderia situar-se uma tendência secundária histérica ao lado de alguns traços (predisposição terciária) de insegurança de si mesmo. A associação de tais características constitucionais corresponderia a indivíduos com humor básico depressivo, com temperamento instável e oscilante, e além disso, ast6enicos, pessimistas e inseguros. De forma semelhante, sobre uma tend6encia primária histérica poderia assentar-se uma tendência secundária depressiva ao lado de traços (predisposição terciária) de insegurança de si mesmo.Disso resultariam indivíduos basicamente egoístas, caprichosos, irritáveis e, ao mesmo tempo, facilmente sugestionáveis e indecisos.Poderíamos efetuar toda uma série de combinações e associações das diversas tendências e predisposições constitucionais humanas, com exceção de uma, a constituição caracterológica insensível, que costuma apresentar alguns graus de transição, quais sejam, constituições mais atípicas representadas por indivíduos pouco compassivos e indiferentes. Consideramos em relação a isso que determinadas tend6encias constitucionais tais como insensibilidade e indiferença consistiriam, com maior freqüência, em predisposições secundárias ou terciárias que seriam sobrepostas às outras constituições cacacterológicas fundamentais. Além disso, é bom ressaltar que em um bom número de casos essas tendências constitucionais vêm acompanhadas de outros tipos de predisposição como, por exemplo, perversidade e crueldade.Poderíamos continuar discorrendo sobre inumeráveis combinações possíveis entre as várias tendências constitucionais já observadas e catalogadas pelos diversos autores 11,12,19,20 que se dedicaram a esse estudo, porém pensamos que essa tarefa seria demasiadamente árida e enfadonha para o leitor e, além disso, esse não é o objetivo principal deste trabalho. Como já dissemos antes, é nossa finalidade propor apenas um modelo teórico que facilite a compreensão das constituições cacacterológicas como um todo e o seu papel variável na gênese das manifestações neuróticas em geral.

Neste ponto é necessário fazer uma advertência bastante importante: apenas poderemos dizer que as pessoas simplesmente são assim, ou seja, que aquelas modalidades existenciais que exemplificamos antes emanam diretamente de suas constituições caracterológicas, somente se as considerarmos como constituições muito próximas do grau de tipicidade. Porque estamos discorrendo sobre tendências específicas de reação e, como conseqüência, quanto menos típica for uma constituição caracterológica maior será a importância das vivências subjetivas oriundas, principalmente, das circunstâncias ambientais para forjar a modalidade existencial predominante, seja ela neurótica ou não. Ao contrário, quanto maior for a tipicidade caracterológica maior será a rigidez existencial, instalada de forma relativamente independente dos fatores ambientais. Uma constituição caracterológica insensível típica com tendências secundárias para a perversidade será, fatalmente, sempre assim, independentemente de seu nível sócio-econômico e de um bom quinhão afetivo oferecido pela sua família. Uma constituição caracterológica histérica típica também sempre será assim à revelia de uma maior ou menor proximidade real com os pais ou de outras circunstâncias da dinâmica familiar. Realmente, certas características dessas modalidades existenciais podem ser agravadas ou atenuadas no que se refere à adaptação social de acordo com o nível intelectivo do indivíduo e a sua interação com o seu grupo familiar em vários aspectos distintos. Por exemplo, a importância da educação, de toda a orientação pedagógica que deverá ser oferecida pelos pais à criança, o que, por seu turno, depende necessariamente de um mínimo grau de saúde psíquica por parte daqueles. É interessante assinalar, também, que os dispositivos sócio-culturais estimulam certas modalidades existenciais próprias das constituições caracterológicas mais típicas e o grupo familiar, como transmissor da cultura aos mais jovens, costuma repetir esse papel incentivador e encorajador para a assimilação de certos modelos comportamentais idealizados e desejados coletivamente. Por exemplo, a imagem do guerreiro destemido e a do herói aventureiro e habilidoso são modelos coletivos habitualmente encontrados nas tribos primitivas. Em nossa sociedade ocidental, os modelos comportamentais têm variado incessantemente de acordo com as características e peculiaridades de cada época* e, no mundo de hoje, o modelo existencial mais cobiçado e desejado é aquele intitulado de ‘homem bem sucedido’.Esse modelo, na verdade, equivale ao comportamento genérico daquelas constituições caracterológicas hipertímicas típicas com ted6encia secundária para a frieza afetiva, isto é, indivíduos muito ativos e totalmente inescrupulosos e para os quais não existe nenhum obstáculo de ordem ética ou moral para a consecução de seus ambiciosos projetos pessoais. Poderíamos até dizer, sem medo de incorrer em erro, que a sociedade ocidental da atualidade é hipertímica e fria, valorizando realizações imediatistas e egoístas s desencorajando atitudes reflexivas, afetuosas, solidárias e coletivistas. As correlações entre cultura e constituição caracterológica poderiam ser elucidadas e bem estabelecidas através de um estudo transcultural minucioso, campo que ainda parece praticamente inexplorado.

Após essas considerações sobre as constituições caracterológicas esperamos ter respondido pelo menos em parte à indagação anteriormente formulada e que motivou este breve estudo, ou seja, o esclarecimento das relações entre os tipos caracterológicos individuais e as formas de expressão das manifestações neuróticas observadas em cada caso. Ainda temos outras idéias para serem desenvolvidas e complementarem inteiramente as conclusões, porém deixaremos para fazê-lo mais adiante quando apresentaremos e discutiremos dois casos clínicos. Por enquanto, tentaremos resumir o que foi dito até aqui

É curioso que os modelos existenciais coletivos de outras épocas sempre tenham correspondido a constituições caracterológicas muito típicas, tais como constituições hipertímicas fanáticas ativas revolucionários, reformadores, profetas, fundadores de seitas) ou passivas (mártires, apóstolos da paz) e outras, como constituições hipertímicas com tendências histéricas e de insensibilidade (grandes espadachins e cavaleiros, fanfarrões, aventureiros) e melancólicos histéricos hipersensíveis (místicos, sonhadores, poetas e dramaturgos românticos).

A – Pólo de Tipicidade Caracterológica máxima

B – Pólo de Atipicidade Caracterológica Máxima

a - Constituição Caracterológica Hipertímica

ß - Constituição Caracterológica Depressiva

? - Constituição Caracterológica Histérica

? - Constituição Caracterológica Anancástica (Inseguro de si mesmo)

T – Constituição Caracterológica Insensível

1,2,3 = Número Equivalentes ao Grau de Prevalência das Tendências Constitucionais Específicas (Primária, Secundária ou Terciária)

através do quadro esquemático a seguir.

Podemos visualizar, através desse quadro esquemático ao modo de uma verdadeira ‘Tabela Periódica’ das constituições, os conceitos importantes que estabelecemos até agora. Procuramos representar, mediante símbolos alfabéticos graduados por uma quantificação que abrange a tendência primária até a terciária, várias combinações plausíveis entre as cinco constituições caracterológicas fundamentais que estamos considerando. Todos os exemplos que citamos anteriormente estão representados dessa maneira e o leitor poderá ou não, conforme o seu interesse, se dar ao trabalho de procurá-los e situá-los no quadro.

Resta-nos, ainda, a tarefa de tratar de uma questão muito discutida e que servirá para esclarecer mais o assunto que estamos abordando. Pensamos que toda constituição caracterológica está imersa em uma espécie de estado de ânimo básico, isto é, está revestida por uma determinada predisposição emocional, amorfa e relativamente primitiva, pra relacionar-se com o meio ambiente e que irá colorir todas as vivências subjetivas que signifiquem intercâmbio pessoal. Equivaleria a uma predisposição emocional algo indiferenciada, porém bastante arraigada às tendências constitucionais de reação do indivíduo e que se manifestaria como um tipo definido de disposição fundamental para com o mundo externo.Certas pessoas têm suas atitudes saturadas por uma disposição naturalmente tranqüila, dócil e afetuosa, outras por uma propensão agressiva, nervosa e instável. São essas variáveis disposições naturais do estado de ânimo básico que denominamos temperamento. Longe de querer simplificar demasiadamente o assunto, poderíamos dizer que os tipos básicos de temperamento oscilam entre o pólo das disposições dóceis, afetuosas, bondosas, tranqüilas e altruístas e o daquelas disposições coléricas, agressivas, insubmissas, irascíveis e egoístas. Ainda, que essas disposições estariam apoiadas em estratos subjacentes ainda mais indiferenciados e primitivos de predisposição emocional para com o mundo externo, tais como, tendência à passividade ou à atividade, ao movimento ou à inércia, à introversão ou à extroversão, à estabilidade ou à instabilidade. Todas essas modalidades de predisposição emocional para com o mundo externo penetram e impregnam todas as vivências subjetivas e ações cotidianas, dando-lhes a marca do ser assim, singular e individual. Assim, temperamento e constituição caracterológica interagem e se complementam reciprocamente, vivificando a existência e propiciando as condições para a inscrição de uma história pessoal. Em vista disso, poder-se-ia concluir que certas variantes caracterológicas como, por exemplo, os psicopatas explosivos, astênicos, abúlicos e instáveis de ânimo*, na verdade, não deveriam ser consideradas como constituições genuínas, mas sim como produtos autênticos da interação de determinadas gradações de temperamento com alguns tipos definidos daquelas constituições caracterológicas básicas. O mesmo raciocínio poderia aplicar-se em relação àqueles indivíduos naturalmente muito desconfiados, hostis, instáveis, inseguros e com tendência para apresentar idéias deliróides auto-referenciais. Também é importante voltar a ressaltar a importância das circunstâncias ambientais, de natureza sócio-cultural e dotadas de variados matizes afetivos, para o incentivo ou não de certas disposições de temperamento. Dessa maneira, um ambiente agressivo e pouco acolhedor certamente encorajará o desenvolvimento de tendências agressivas, assim como um ambiente tranqüilo, receptivo e afetuoso favorecerá o vicejamento de predisposições opostas.

Por último, em relação à tendência à introversão e à extroversão, cabe dizer que a

predominância e a acentuação significativa dessas disposições básicas, num certo sentido

arcaicas, em alguns indivíduos poderia caracterizar determinados tipos de predisposição

específica de reação, constituindo duas variantes caracterológicas que são denominadas, por alguns autores pelos termos ‘personalidade esquizóide’e ‘personalidade ciclóide’. Segundo KRETSCHMER11,12 , tais variações caracterológicas consistiriam em tipos degenerativos

especiais, aos quais deu os nomes de ‘psicopatias ciclóides’e ‘psicopatias esquizóides’, oriundos de alterações de dois temperamentos especiais : o temperamento esquizotímico e o ciclotímico que, por sua vez, se subdividem em algumas classes de características emocionais e afetivas específicas para cada sub-grupo estudado**. Apesar do fato de que, freqüentemente, nos deparamos com constituições caracterológicas típicas que se assemelham, em essência, com os critérios formais de classificação daquele autor, pensamos que tais modalidades constitucionais não poderiam ser incluídas dentro da tabela de constituições caraterológicas que elaboramos anteriormente por uma questão metodológica importante, isto é, devido ao fato de que suas características fundamentais (tendência natural à introversão e à extroversão) emanam de disposições que residem em estratos subjacentes mais antigos e arcaicos do que aqueles que estamos considerando para a nossa classificação. Os temperamentos básicos Kretschemerianos ‘esquizotímico’ e ‘ciclotímico’ na realidade consistiriam, ao nosso ver, na expressão profunda e acentuada de disposições oriundas de um verdadeiro proto-temperamento, muito indiferenciado e amorfo, ao contrário das predisposições constitucionais afetivas e emocionais de reação mais aprimoradas e diferenciadas presentes naquelas constituições caracterológicas básicas de nossa classificação. Entretanto, temos consciência de que a exclusão voluntária daqueles tipos kretschemerianos de nossa tabela caracteriológica representa uma lacuna importante mas que, infelizmente e pelo menos por enquanto, ainda não tem condições de ser superada devido ao obstáculo metodológico já citado.

As concepções anteriores, a respeito de constituição catacterológica e temperamento, parecem facilitar bastante a compreensão do acontecimento neurótico individual à medida que lhe conferem a autenticidade e a singularidade necessárias capazes de diferenciá-lo inteiramente e livrá-lo de uma visão radicalmente generalizadora e simplista inerente e um enfoque teórico dogmático. Isso é muito útil e importante no que se refere ao paciente neurótico que se submete ao tratamento psicanalítico. No decorrer do tratamento, temos a oportunidade de observar vivências subjetivas que se podem explicar, inequivocamente, com base nos conflitos inconscientes, porém outras vivências são inacessíveis ao entendimento psicanalítico, parecem ser inderiváveis, pertencendo ao cerne do patrimônio constitucional. O referido tratamento, então, se destinaria a induzir elaborações e resoluções dos conflitos emocionais adquiridos e cristalizados em períodos chave do desenvolvimento pessoal, cabendo-lhe a tarefa de separar, de ‘decantar’ aquilo que foi provocado por determinadas vivências subjetivas interagindo com certas circunstâncias do ambiente daquelas diversas modalidades do existir e que brotam genuinamente das tendências constitucionais. Esta certeza, que julgamos razoável, evitará que o clínico incorra em erros ou tenha falsas expectativas e decepções em relação aos seus pacientes ocasionados por uma visão ingênua ou demasiadamente otimista a respeito do tratamento psicanalítico. Fará com que perceba as verdadeiras indicações, alcance e limitações do referido tratamento, além de ajudar a desmoronar o mito eugênico e idealista

de uma suposta normalidade e equilíbrio psíquicos apregoado durante várias décadas. Isso

porque, em nossa opinião, o conceito de normalidade psíquica deve corresponder a estados vivenciais relativamente constantes e dotadas da maior harmonia afetiva possível com o

meio ambiente sem, no entanto, excluir turbulências emocionais provocadas pela interação das variantes caracterológicas com as diversas circunstâncias ambientais. Esses estados existenciais variados devem , forçosamente, ser marcados pela própria singularidade inerente ao fator humano com suas contradições, diferenças e sobretudo, pela sua imprevisibilidade. Isso leva à noção de complexidade que nunca poderá ser esquecida quando nos propusermos a estudar e tratar um paciente que nos procura. A finalidade do tratamento psicanalítico consistirá em permitir e facilitar com que ele se confronte com a natureza de sua verdadeira humanidade, seja ela qual for e à mercê do acaso e da indeterminação circundantes.

A apresentação, a seguir, de dois casos clínicos referentes a duas pacientes que tivemos a oportunidade de tratar servirá para exemplificar, com bastante clareza, os conceitos teóricos estabelecidos, além de servir para mostrar os objetivos reais do tratamento psicanalítico e as suas limitações.

O primeiro caso clínico: M.S.,26 anos, estudante universitária do curso de Psicologia, solteira, duas irmãs mais novas, natural de Belo Horizonte; residia com os pais na ocasião. Essa paciente foi encaminhada para tratamento após tentativa de suicídio com arma de fogo, motivo pelo qual permaneceu hospitalizada em situação de risco de vida durante várias semanas após uma cirurgia de emergência. Durante o primeiro contato terapêutico que mantivemos, que ocorreu em meu consultório em março de 1979, pude observar nela, além de intensa angústia e ansiedade, traços de agressividade bastante acentuados, aparentando tratar-se de uma pessoa de temperamento lábil, impulsivo, exigente e autoritário. Segundo ela, a tentativa de auto-extermínio tinha sido ocasionada pelo rompimento de um namoro recente, fato que desencadeou uma enorme insatisfação e angústia porque sentia que não conseguia ligar-se afetivamente a alguém de uma forma mais consistente, duradoura e profunda. Realmente, apresentava muitas dificuldades quanto ao relacionamento social e , em sua casa, mostrava-se agressiva,exigente e irascível com os familiares. As condições financeiras e materiais do pai, de quem dependia, não eram das melhores (o pai exercia a profissão de contador e a mãe não tinha rendimentos), porém isso não impedia que ela desfrutasse de um certo conforto. Nascida de parto normal após uma gestação materna aparentemente tranqüila. Desenvolvimento psico-motor e escolaridade normais. Doenças comuns da infância sem complicações. Não relatou episódios compatíveis com crises convulsivas, febris ou não. Menarca aos treze anos. Catamênios regulares. Nível intelectivo aparentemente normal. A pesquisa minuciosa e detalhada de sua biografia não revelou nenhum fato particularmente traumático que tivesse ocorrido em sua vida ou que, pelo menos, se lembrasse com precisão. Não havia relato de mudanças de domicílio ou de oscilações bruscas do padrão financeiro e material da família e os pais, com quem tive a oportunidade de conversar, pareciam pessoas inseguras, apesar de se mostrarem sempre preocupados em oferecer boas condições afetivas e educacionais para as filhas. Demonstravam muita preocupação em relação à paciente que, ao contrário das suas duas outras filhas, desde muito nova, manifestara um temperamento caprichoso e instável, um ‘gênio difícil’,conforme suas palavras. Segundo eles, a filha sempre fora muito nervosa, exigente e inconformada, necessitando ser tratada com muita paciência e tolerância.

A conduta terapêutica consistiu na prescrição de um medicamento anti-depressivo com ação sedativa, além de sessões semanais de atendimento psicanalítico. Com o decorrer do tratamento, a paciente começou a apresentar atitudes caprichosas e instáveis em relação a mim. Ora questionava, de forma irritável e mal humorada, quase todas as interpretações que eu fazia, ora se mostrava surpreendentemente dócil e sugestionável. Exigia ser tratada como uma cliente especial e quando isso lhe era negado reagia com indignação e raiva. Por vezes mostrava-se especialmente indiferente, deixando a impressão de que aquilo que eu dizia não conseguia sensibilizá-la de nenhum modo. Somente algumas características pessoais eram constantes: o seu histrionismo, a sua coqueteria e o seu egoísmo. Apresentava um baixíssimo limiar de frustração e não conseguia expressar nenhuma atitude altruísta, mostrando-se permanentemente ressentida em relação a todas as pessoas com quem convivia. De qualquer maneira, retomou o seu curso universitário com bom aproveitamento e um ano depois formou-se e, como ainda não havia arranjado emprego, começou a fazer algumas camisetas para vender, tentando, dessa forma, ficar com mais algum dinheiro disponível para as suas despesas. Começou a sentir vontade de conhecer novas pessoas, ficando mais animada e algo mais alegre. Entretanto, continuava, amiúde, queixando-se de não conseguir conquistar os homens que desejava. Aliás, a sua vida sexual era bastante intensa com troca freqüente de parceiros, apesar de relatar anorgasmia em todas as relações que mantinha, fato que tornava todos os seus contatos físicos em algo bastante frustrante. A sua vida continuou assim, sem maiores alterações, até que, aproximadamente um ano depois, começou a relatar intensa ansiedade, principalmente à noite. O surgimento desse sintoma coincidia com o início de um novo namoro e se manifestava sob a forma de uma expectativa altamente excitante e indeterminada, uma espécie de ansiedade angustiosa, principalmente quando esperava o namorado para um encontro, ou então quando havia iminência de carícias e contato corporal com ele. Em uma determinada sessão, lembrou-se, inopinadamente, de uma cena infantil: quando era criança costumava esperar seu pai, que chegava em casa ao anoitecer e ficava, então, em um estado de expectativa e de ansiedade semelhante ao que estava sentindo nessa ocasião. A partir desse momento, começou a demonstrar ciúmes de minhas outras pacientes, à semelhança do que sempre havia ocorrido em sua casa em relação às suas irmãs. A sua convivência com a mãe e irmãs estava se tornando muito difícil e tumultuada, brigava com elas e as agredia por qualquer motivo, principalmente por ciúmes se seu pai, de quem exigia muita atenção e privilégios especiais. Simultaneamente, acentuou o jogo de sedução e de coqueteria para comigo e sempre ficava muito irada quando eu, obviamente, não só me negava a corresponder às suas investidas, mas também procurava interpretá-las corretamente no contexto transferencial.Em uma determinada ocasião, contou-me ter-se masturbado fantasiando uma relação sexual com seu pai, depois que ficou muito excitada porque pensou ter sentido o cheiro do perfume que ele usava recendendo em um sofá de sua casa. Na mesma época teve um sonho com conteúdos incestuosos bastante evidentes e passou a interessar-se vivamente por homens mais velhos que ela e também casados. Em uma determinada sessão reviveu uma cena de sua infância, onde observava o pai beijando a sua mãe e se sentia extremamente enciumada e sozinha. Entrementes, continuava bastante interessada em arranjar um emprego que propiciasse a sua independência financeira e tentava consegui-lo de forma ativa e prática. Algum tempo depois, agravamento da crise familiar devido ao fato de estar mais agressiva em relação à mãe e às irmãs. Nessa época, eu procurava mostrar à paciente a natureza e toda a extensão de seus problemas emocionais, além de sugerir algumas alternativas existenciais de caráter prático, pedagógico e imediato. No entanto, cada vez mais ela se mostrava indiferente e alheia ao que eu dizia, limitando-se a repetir, monotonamente, que era inteiramente incapaz de conquistar qualquer homem. É claro que eu sabia que esse sentimento de incapacidade de conquistar qualquer homem referia-se, em primeiro lugar, ao pai e, em segundo lugar, a mim mesmo. No entanto, passou a faltar às sessões e, quando comparecia, mostrava-se cada vez mais desinteressada pelo tratamento, apresentando-se, freqüentemente, sonolenta, indiferente e impassível. Em outubro de 1981 apresentou crise de agitação psico-motora em casa, quando jogou uma faca de cozinha em sua mãe após discussão com ela, motivada por motivos banais. Indiquei internação hospitalar, objetivando tratar mais efetivamente o quadro depressivo e, além disso, para contê-la e para proteger os seus familiares. Recebeu alta hospitalar dezoito dias depois, tendo obtido alguma melhora. Todavia, a sua atitude em relação a mim e ao tratamento continuou inalterada, passando a ficar em completo silêncio nas sessões apesar das minhas tentativas para encorajá-la a falar de seus sentimentos e de seus problemas. A partir do mês de abril de 1982, a paciente apresentou sério agravamento de suas atuações, utilizando os medicamentos prescritos de forma abusiva i ingerindo bebidas alcoólicas simultaneamente. Por duas ocasiões chegou à sessão muito sedada e, em outra, completamente bêbada. Diante disso, em maio de 1982, comuniquei-lhe que não havia mais condições para que eu a continuasse atendendo, visto que ela mesma, através das suas próprias atuações, não o estava desejando. Mais ou menos dois anos depois, encontrei-me casualmente com ela em um restaurante, quando me disse estava muito feliz e satisfeita porque estava trabalhando como atriz teatral amadora. Em agosto de 1986, voltou a me procurar no consultório devido a crises de ansiedade noturnas. Nessa ocasião, estava trabalhando como redatora em uma Secretaria de Estado e continuava fazendo teatro amador, além de estar morando sozinha. Manifestou o desejo de retomar o tratamento psicanalítico comigo, porém não aceitei o caso novamente, fazendo-a ver que já havíamos tentado tudo o que era possível.

Em primeiro lugar podemos dizer, sem nenhuma dúvida, que nossa paciente correspondia ao que já denominamos constitui;cão caracterológica muito típica, isto é, aquela situada em uma região bem próxima ao pólo de tipicidade. Quanto ao tipo de constituição, podemos afirmar que se tratava, indiscutivelmente, de uma constituição caracterológica histérica. A sua maneira de ser, praticamente imutável, que se caracterizava por instabilidade, histrionismo, impressionabilidade, indiferença e coqueteria, sugeria esse tipo de caráter. Por outro lado, dissemos antes que algumas vivências subjetivas chave ocorridas em certos períodos importantes do desenvolvimento pessoal seriam complexificadas simbolicamente de acordo com determinadas tendências pré-estabelecidas de reação. Nesse caso, as tendências constitucionais histéricas favoreceram e elegeram a formação de tipos específicos de complexificação simbólica oriundas de vivências subjetivas altamente polarizadas e relacionadas à situação edipiana vivida pela paciente. O desenrolar de toda a sua vida psíquica oscilava invariavelmente em torno desse complexo simbólico, cristalizado e irremovível, do qual tentávamos, debalde, fazê-la escapar. O seu campo existencial ficava, como conseqüência, seriamente limitado e prejudicado, debatendo-se infrutiferamente nas malhas de um desejo passado, porém inexoravelmente dominador , presentificado e paralisante. Em outra parte18 , já discorremos a respeito daquilo que chamamos operação simbólica da carga instintual biológica no sentido desta adquirir um maior grau de plasticidade quanto à forma das suas manifestações e , assim, vir a se adequar às exigências e necessidades do ambiente social específico. Dessa maneira, teria havido, de algum modo, uma transformação da direção rígida do caminho percorrido pelo instinto biológico, de tal maneira que chegasse a adquirir um curso plástico e maleável, adequando-se às necessidades objetivas e mutáveis do meio sócio-cultural. Assim, o propósito original da carga instintual biológica, transformada e maleabilizada pelo processo de operação simbólica, teria sido lançado no cenário das paixões institucionalizadas, ou seja, teria se inserido no interior dos modelos de integração simbólica oferecidos e legitimados pelos dispositivos sócio-culturais vigentes. Tudo isso teria correspondido a uma etapa caracterizada pelo não poder realizar, da necessidade de se renunciar às exigências originais pelo bem coletivo e pelo equilíbrio harmônico das relações interpessoais, base de manutenção da ordem social nascente. Pois bem, no caso que estamos estudando podemos notar como os equivalentes instintuais de caráter incestuoso invadiram a vida psíquica dessa paciente e a tal ponto que, em determinada ocasião, tornaram-se plenamente conscientes (quando se masturbou fantasiando uma relação sexual com o pai) à semelhança do que ocorre nos quadros clínicos psicóticos. Entretanto, quase a totalidade das suas ações obedeciam a motivações inconscientes que não eram, de nenhuma maneira, claras para ela. E desde que mencionamos os quadros psicóticos, devemos dizer que, no caso em pauta, não havia nenhuma alteração do complexo simbólico correspondente à idéia e sentimento de ‘si mesma’, o que significava que as estruturas psíquicas filogeneticamente mais recentes continuavam inibindo aquelas mais arcaicas apesar da invasão maciça da vida mental pelos equivalentes instintuais de caráter incestuoso. O que acontecia é que, apesar do predomínio constante daquelas estruturas inibidoras, havia, vez por outra, uma espécie de ‘escape’de alguns equivalentes instintuais que se materializavam, imediatamente, sob a forma de algumas ações de cunho erótico e agressivo como no episódio já citado da masturbação e naquele no qual a paciente lançou uma faca de cozinha contra sua mãe. E, exatamente essa situação de ‘escape’, de ‘vazamento’de equivalentes instintuais propiciando a concretização de ações conflitantes e não legitimadas pelos modelos de integração simbólica oferecidos pelos dispositivos sócio-culturais é que, ao nosso ver, caracteriza uma condição verdadeiramente pré-psicótica. Podemos notar que não estamos nos referindo a uma ‘personalidade pré-psicótica’, mas sim a uma determinada condição psíquica que só pode ser caracterizada através de uma visão dinâmica do fato, tanto do ponto de vista teórico como também do prático. Com base na nossa experiência clínica, pensamos que o surgimento dessa condição só ocorre em constituições caracterológicas muito típicas, isto é, desde que se constate uma condição pré-psicótica em um determinado paciente, isso significará que, forçosamente, estamos diante de uma constituição caracterológica situada próxima do pólo máximo de tipicidade. E com efeito, observamos constantemente que determinadas modalidades de comportamento de pacientes denominados ‘personalidades border-line’ou ‘personalidades fronteiriças ou limítrofes’ podem ser perfeitamente explicadas à luz do conceito anteriormente formulado sobre condição pré-psicótica. E é aí que se situa o ponto de interseção de duas importantes dimensões conceituais em Psiquiatria representadas pelas concepções teóricas referentes ao anormal e ao patológico. As constituições caracterológicas muito típicas não podem ser consideradas com patológicas, mas sim como variações caracterológicas que fogem às normas habituais de referência, não se devendo promovê-las, de nenhum modo, à categoria e caracteropatia. Entretanto, uma condição psíquica pré-psicótica já pode ser considerada como uma situação patológica porque traduz a falência parcial do sistema homeostático da vida mental, produzindo alguns sintomas importantes. Vimos como essa paciente se mostrava permanentemente frustrada, ansiosa, infeliz e com expectativas existenciais tormentosas e angustiantes, chegando mesmo a tentar o auto-extermínio de forma convicta e determinada. O motivo que a levou a abdicar de sua vida foi certamente a insatisfação inconsolável de não ter conseguido (e continuar não conseguindo) conquistar o pai tão desejado. Isso representa, ao nosso ver, uma verdadeira rigidez instintual no sentido de que os objetivos biológicos iniciais da carga instintual não pudessem ser deslocados e substituídos por outros tipos institucionalizados de satisfação. Tal impossibilidade poderia ser explicada caso supuséssemos que nas constituições caracterológicas muito típicas a operação simbólica da carga instintual nunca conseguisse ser realizada de maneira completa e satisfatória de modo a dotá-la de grau suficiente de plasticidade, condição necessária para sua adaptação e adequação aos complexos simbólicos legitimados pelos dispositivos sócio-culturais. Como conseqüência haveria maior ‘sobra’ou ‘resíduo’de equivalentes instintuais amorfos de grande valência energética absoluta, livres, anárquicos e destrutivos, perturbando consideravelmente a homeostase do psiquismo com o meio ambiente. Já vimos antes que a eficácia do processo de operação simbólica da carga instintual biológica dependeria da eficiência da atividade de institucionalização harmônica realizada pelo meio sócio-familiar simbólico, além de certos fatores inerentes ao próprio psiquismo pessoal capazes de facilitar ou dificultar aquela ação. Pois é precisamente esta última observação que se aplicaria às constituições caracterológicas muito típicas. Por algumas razões, que ainda desconhecemos, inerentes ao psiquismo desses indivíduos, haveria muita dificuldade para que o processo de operação simbólica da carga institual pudesse ser levado a babo de modo pleno e satisfatório, instalando-se, em decorrência dessa rigidez instintual, uma situação de rigidez existencial caracterizada por uma relativa imutabilidade subjetiva e comportamental. É razoável supor que chamada ‘compulsão à repetição’ consista na expressão legítima dessa rigidez instintual e existencial que seria engendrada, dessa maneira, nas constituições caracterológicas muito típicas. Isso se pode constatar com bastante nitidez à medida que acompanhamos o relato biográfico da paciente, além de se poder observar as suas dificuldades de adaptação ao meio familiar e social, assim como a sua predisposição para apresentar os sintomas neuróticos em consonância com o tipo determinado de constituição caracterológica que possui. Vê-se também que, com toda a certeza, as circunstâncias ambientais não se configuraram como fatores decisivos na gênese do sofrimento neurótico dessa paciente no que se refere ao seu caráter de qualidade ou intensidade, porém algumas delas foram extraordinariamente valorizadas, do ponto vista subjetivo, por força das próprias predisposições constitucionais de reação (vivências subjetivas relacionadas às circunstâncias ambientais ocorridas no período edipiano). Por último, levando-se em conta todo relato do caso, conclui-se que o tratamento psicanalítico provavelmente não obteve o êxito desejado, mesmo considerando-se que a paciente evoluiu razoavelmente bem em termos de adaptação social e também no que se refere a uma certa satisfação existencial. Pode-se dizer que o desempenho teatral que ela assumiu profissionalmente, depois, talvez tenha sido a mais adequada atividade laborativa encontrada para expressar e tentar dissipar a sua angústia e os seus temores.

Esperamos que esta discussão relativamente resumida a respeito do primeiro caso clínico se tenha prestado não só para ilustrar o que havíamos estabelecido antes, mas também para estender e desenvolver um pouco mais os conceitos teóricos instituídos anteriormente. Passaremos, em seguida, à exposição do segundo caso clínico.

C.R., 30 anos, solteira, residia em Belo Horizonte em companhia da mãe e da irmã mais nova; profissão: engenheira.

Procurou-me em dezembro de 1983 relatando angústia, ansiedade e muitas dificuldades no que se refere ao convívio social. Essas dificuldades caracterizavam-se por uma forte inibição e um medo indeterminado, chegando a se configurar como um verdadeiro estado de pânico fóbico em situações nas quais era obrigada a se relacionar com outras pessoas, principalmente os seus colegas de serviço. Apresentava uma auto-estima muito baixa, julgando-se uma pessoa desinteressante e repulsiva, procurava evitar reuniões profissionais e fugia de encontros como churrascos, festas e outros eventos sociais de lazer coletivo. Nessas ocasiões sentia-se extremamente ansiosa, manifestava taquicardia, extremidades frias, boca seca, sudorese profusa e tinha ímpetos de fugir precipitadamente do lugar onde se encontrasse. Além disso, sentia medos noturnos inespecíficos e um constante sofrimento íntimo tão intenso que, por vezes, achava que não o conseguiria suportar por mais tempo. Relatou piora dos sintomas há algum tempo, acrescentando-se perda considerável do apetite e emagrecimento. Havia, ainda, outros sintomas tais como distúrbios gastro-intestinais, cefaléia pulsátil acompanhada de náuseas, dores musculares generalizadas e distúrbio do ciclos menstruais (polimenorréia). Quase não saía de casa e vivia em um estado de tensão emocional constante. Revelava-se uma pessoa extremamente tímida, muito contida e meticulosa, com tendências obsessivas importantes e uma consciência moral bastante exacerbada. Tinha uma visão do mundo fundamentalmente pessimista, com tons de desconfiança e de amargura. Apesar disso, demonstrava um temperamento delicado, afetuoso, sensível e naturalmente afável, bondoso e altruísta. Como via-se com pequenas coisas, preocupava-se com o bem estar das outras pessoas, alegrava-se com o sucesso alheio. Era uma excelente profissional e evidenciava um quociente de inteligência certamente acima da média. Procurava distrair-se através do exercício da pintura que praticava regularmente e a boa qualidade de seus quadros (que pude apreciar depois) indicava um diferenciado potencial artístico. Na primeira consulta, falou ainda de um medo indefinido de ‘perder o controle’, da piora dos sintomas ao anoitecer e de um cansaço excessivo que nunca a abandonava. Há cerca de oito anos submetia-se a tratamento psicoterápico e, até aquele momento, não observara nenhuma melhora. A pesquisa dos antecedentes pessoais, aparentemente, não revelou nenhum acontecimento traumático importante, exceto a morte do pai que ocorreu quando ela tinha sete anos de idade. Nessa ocasião, a paciente e sua irmã (um ano mais nova) residiram durante algum tempo na casa do avô materno.

A primeira impressão que tive a respeito dessa paciente foi que parecia se tratar de uma constituição caracterológica muito típica com uma tendência primária anancástica associada a uma predisposição secundária depressiva. As suas grandes dificuldades no relacionamento humano, a sua meticulosidade e severidade, o seu comportamento anti-social, a sua visão do mundo árida e desesperançada eram características que, forçosamente, sugeriam uma constituição tal como a descrita antes. Entretanto, o potencial de afetuosidade genuína que transparecia claramente em seus gestos e nos seus relatos intrigou-me sobremaneira. Apesar de ser uma pessoa muito bem educada, não detectei aquela amabilidade formal, fria e vazia, quase ritualística, tão própria dos anancásticos. Ao contrário, o seu modo de ser deixava, algumas vezes, a impressão de que era uma pessoa naturalmente vívida, porém acentuadamente atemorizada e reprimida. De qualquer maneira, sob o ponto de vista clínico, tratava-se, sem dúvida, de um quadro depressivo com crises de pânico fóbico (fobia social) como patoplastia secundária. Receitei-lhe “clorimipramina”na dosagem de 75 mg/dia e solicitei que retornasse vinte dias depois. Voltou ao consultório na data marcada e relatou melhora razoável, com aumento moderado da disposição. No entanto, referiu piora do apetite e permanência quase inalterada da angústia. Insisti durante algum tempo com a medicação, porém devido ao aumento da ansiedade e à persistência das crises de pânico fóbico, resolvi mudar a medicação anti-depressiva após dois meses de tratamento. Prescrevi “maprotilina” na dosagem de 150 mg/dia e, realmente, sentiu-se melhor, ficando mais tranqüila durante o dia e com elevação satisfatória do humor. Contudo, as dificuldades de relacionamento humano persistiam, vivia com sobressaltos indefinidos e continuava se julgando uma pessoa desprezível e sem nenhum valor. Recusava todos os convites para reuniões de lazer, temia que pudesse vir a se sentir mal, que talvez quisesse fugir do lugar onde estivesse e que não o conseguiria, enfim, era assolada por toda uma série de medos, inseguranças e temores objetivamente infundados. Continuou em tratamento medicamentoso comigo até que após a morte do avô materno, de quem gostava muito, em agosto de 1985, houve recrudescimento importante do quadro depressivo. Em novembro resolveu encerrar o tratamento psicoterápico que vinha fazendo depois de concluir que não a estava beneficiando e em dezembro começou a ser atendida por mim duas vezes por semana, com vistas a um tratamento psicanalítico. Durante os primeiros meses de atendimento, quase todas as sessões eram preenchidas por infindáveis auto-recriminações que traduziam uma acentuada intolerância e desprezo em relação à si mesma. Costumava dizer que era uma pessoa ‘burra’, pois não conseguia exercer o controle voluntário sobre as situações que a atemorizavam, que não conseguia mudar aquele estado de coisas apesar de assim desejá-lo e decidi-lo. Eram bastante evidentes as tentativas de solução racional para os seus problemas. Tinha sérias dificuldades para reconhecer, identificar e expressar os seus sentimentos e emoções, não conseguia sequer chorar e, aparentemente, procurava viver sob a égide da pura lógica. Geralmente convertia as suas dificuldades afetivas em rígidas categorias morais, sentindo-se, freqüentemente, uma pessoa egoísta, fraca e repleta de defeitos. Costumava projetar, maciçamente, o seu auto-rigor nas outras pessoas e ficava bastante ansiosa em relação à possibilidade de lhe exigirem mais do que podia fazer. Os seus relatos faziam pensar em uma pessoa ‘plana’, com um futuro inteiramente previsível, sem irregularidades ou alterações de contorno e curso. Por outro lado, em relação aos conteúdos de seus sonhos, estes freqüentemente mostravam uma situação interior bastante turbulenta, caótica e sombria. Via de regra, sonhava com a família, ora com o avô e com a avó maternos, ora com a mãe e com a irmã e, quase sempre, os conteúdos oníricos retratavam explosões, acidentes automobilísticos e cataclismas. Nessa época, além da interpretação onírica, eu procurava desfazer, ativamente, as suas tentativas defensivas de racionalização. Conscientemente falava de sua família como sendo constituída por pessoas severas, impassíveis, respeitáveis, com grande desvelo pela integridade moral mas, na região inconsciente, se deparava com abismos de sombra e de morte. Pouco a pouco fui percebendo como sua família possuía alguns modos peculiares de relacionamento com o mundo externo e algumas disposições específicas de reação que se constituíam em um verdadeiro agrupamento de leis, normas e regras familiares. Por exemplo, valorizava-se sobremaneira a discrição, a contenção emocional e afetiva, o formalismo vazio e cerimonioso, desprezava-se tudo o que fosse ruidoso, vívido, sincero, espontâneo e natural. Dissimulavam-se sentimentos, evitavam-se cuidadosamente expressões emocionais que correspondessem a algo agressivo, hostil ou erótico. Fazia-se uma espécie de culto solene da dor e do sofrimento. Em contrapartida, conspirava-se surdamente, engendravam-se intrigas desairosas sob uma forma oculta, insultava-se em segredo, traía-se no silêncio. Essa enorme ambigüidade familiar era retratada nitidamente por aquilo que fluía da paciente e que se me apresentava nas sessões: a procura consciente da impassibilidade da forma em contraste com a turbulência explosiva das emoções inconscientes. Passei, então, a comunicar-lhe as minhas impressões a respeito dos mecanismos do relacionamento intra-familiar com base em seus relatos o que, constantemente, causava-lhe surpresa e uma certa perplexidade. Estava, portanto, elucidado o intenso sentimento de desconfiança que a paciente nutria em relação a todas as pessoas que dela se aproximavam, inclusive em relação a mim. Isso ficou bem esclarecido à medida que fui efetuando a análise dos elementos transferenciais que afloravam com o decorrer do tratamento: ora sentia que podia confiar em mim e ora se arrependia de fazê-lo. Em uma determinada sessão, após relatar um sonho no qual havia se sentido muito amedrontada, começou a ter lembranças vagas de uma cena nebulosa que descreveu como se fora ‘portas se fechando para ela com estrondo’e, em seguida, foi tomada por medo indefinível e agudo. Era o primeiro fragmento, ainda difuso, de lembranças de cenas infantis correspondentes a vivências subjetivas que havia experimentado quando criança, todas elas de caráter traumático e que agora começavam a emergir subitamente. Relacionavam-se, como pude constatar depois, ao período de doença e morte de seu pai, fase essa que passou na companhia dos avós maternos e das tias. Nessa ocasião, tinha sido muito maltratada, principalmente por uma de suas tias, devido ao fato de procurar defender sua mãe de acusações e comentários maliciosos por parte da família. Após a morte de seu pai, iniciou-se um movimento familiar maciço para que sua mãe, na época uma mulher ainda jovem e bonita, se comportasse como uma ‘senhora de moral inatacável’, ou seja, para que não namorasse e nem se divertisse. Minha paciente, então uma criança de oito a nove anos sensível e inteligente, procurou a todo custo protegê-la da sanha doentiamente moralista que se instalara no ambiente familiar e que tinha como único objetivo controlá-la e fazê-la abdicar inteiramente de perspectivas existenciais normais e legítimas. A família fê-la sentir-se, então, como uma pessoa ‘diferente’e ‘errada’que defendia certas atitudes ou desejos maternos considerados abomináveis e ignominiosos. A partir desse momento, consolidou-se um pacto inconsciente que teria uma importância crucial para a futura existência dessa moça, ou seja, foi instituído um acordo com sabor de lei e de norma determinando o seguinte: ela se tornava, de maneira definitiva, a perpétua guardiã e protetora de sua mãe e irmã, renunciando à vida do mesmo modo que a mãe fora obrigada a fazê-lo. Realmente, tanto sua mãe como sua irmã pareciam pessoas frágeis, com vontade débil, bastante sugestionáveis e influenciáveis, sendo que, em relação àquela última, a paciente constantemente a via em seus sonhos sob a forma de um bebê indefeso e desprotegido. Em casa, era a paciente que tomava todas as iniciativas da vida doméstica, administrava e organizava o funcionamento de todos os setores e, nas férias, planejava as viagens que, invariavelmente, faziam sempre juntas. Personificara, decididamente, a instância da lei e da ordem, atributos perdidos do longínquo e extinto pai. Sentia-se inteiramente responsável pela felicidade e pelo bem estar da mãe e da irmã, seus dois únicos e exclusivos objetos de preocupação e de dedicação. Entretanto, o tratamento prosseguia e, aparentemente, a atividade onírica se acentuava bastante. Havia, basicamente, três categorias de sonhos que se apresentavam alternadamente nessa época: 1 – Sonhos em que estava presente a figura do avô materno com o qual havia efetuado a sua ligação edipiana) e que sempre aparecia como um homem triste, solitário e com determinações vagas e fantásticas de ‘salvar a família’; 2 – Sonhos com mãe e com a irmã nos quais, ora procurava salvá-las de inúmeras ameaças, ora se via carregando pesadas cargas em situações de mudança de domicílio num clima emocional de aflição e angústia; 3 – Sonhos com situações de pânico em que se via tentando fugir, desesperadamente, de recintos fechados e sombrios. Em uma ocasião, sonhou que estava tentando fugir de um castelo medieval com masmorras de pedra fria e escura, que associava a sentimentos de sofrimento e morte. Os significados desses sonhos eram bastante evidentes e eu procurava verbalizá-los de maneira ativa e dinâmica. Começaram a surgir evidências clínicas bastante promissoras. A paciente iniciou a tomar consciência do intenso ódio, até então reprimido, que tinha dentro de si e, gradualmente, foi-se permitindo experimentá-lo. Amiúde, sofria crises de pânico durante as sessões e, não raramente, despersonalizações, náuseas, tonteiras e cefaléias de intensidade quase intolerável. Entrementes, a sua vida cotidiana melhorava flagrantemente, sentia-se mais tranqüila, as suas ações começavam a se tornar mais espontâneas e naturais, passou a se aproximar de seus colegas de serviço, a sair com eles, a participar de festas e reuniões sociais. Houve remissão completa das crises de pânico fóbico. Tornou-se sociável, começou a ser bastante estimada pelos seus colegas, fez amizades gratificantes e iniciou a vivenciar sentimentos eróticos em maior grau. Pode parecer estranho, mas até então os sentimentos eróticos dessa moça estavam tão reprimidos quanto os seus sentimentos de Riva e ódio, Afinal, havia abdicado inteiramente da existência comum, julgava-se infalível, sentia que era capaz de prever e controlar os seus eventos íntimos, sentia-se como se não fosse humana. Em dezembro de 1987 resolveu expor os seus quadros, fato que indicava o grau de melhora que havia obtido, isto é, finalmente estava se sentindo à vontade para se expor às outras pessoas, para correr os riscos naturais inerentes ao intercâmbio humano. Ao lado disso, iniciei a observar uma mudança notável em seus gestos, agora vívidos, em sua mímica, agora descontraída e expressiva e, fato extraordinário, uma transformação significativa em suas vestes habituais e na conformação de seu corpo, que começava a se delinear com linhas francamente femininas. No início do tratamento, era uma moça sem muitos cuidados, franzina, com grandes olhos assustados e agora a impressão que eu tinha é que começava a se instalar em seu interior um esboço tímido de verdadeira e plena feminilidade. Entretanto, as auto-recriminações continuavam, sendo induzidas pelo sentimento de culpa motivado pela mudança de sentimentos e comportamento não só relacionados à sua mãe e irmã como também em relação a quase toda sua família. Era-lhe difícil suportar reuniões familiares,assim como também lhe era difícil dissimular certos sentimentos de raiva e desprezo dirigidos a certas pessoas da família. Não raro, demonstrava impaciência e intolerância em relação a esses familiares. Culpava-se por isso. Os seus interesses dirigiam-se, agora, a outras pessoas e a outras expectativas existenciais. O equilíbrio intra-familiar, mantido até então às custas de uma forte repressão e supressão de sentimentos, começou a ser rompido. Sentia que estava abandonando a mãe e a irmã, julgava-se uma pessoa má, egoísta e injusta. De qualquer modo, essa paciente já havia obtido melhoras tão significativas com o tratamento que tais mudanças favoráveis incitam alguns comentários finais conclusivos.

Em primeiro lugar, pode-se perceber como é arriscado, na prática clínica, deixar-se levar por uma única impressão que, muitas vezes, pode se revelar depois errônea e precipitada. A primeira impressão que tive a respeito dessa paciente foi que, possivelmente, se tratava de uma constituição caracterológica muito típica com uma tendência primária anancástica associada a uma predisposição secundária depressiva. Ora, caso essa impressão fosse correta, ela certamente não teria se beneficiado tanto com o tratamento psicanalítico como verdadeiramente se beneficiou. O caso clínico anteriormente discutido pode exemplificar muito bem essa situação de relativa, ou mesmo, de absoluta refratariedade a esse tipo de tratamento. No caso em pauta, observamos como a paciente vinha sofrendo com as suas crises de pânico fóbico que, na verdade, representavam o imenso pavor que sentia em ingressar na vertente da vida, ou seja, de usufruir de uma plenitude existencial gratificante e satisfatória. O pacto familiar inconsciente ordenava que ela renunciasse totalmente à vida e à existência, assemelhado-se, em essência, a algo bem próximo da , morte. Isso se tornava bem visível pela forma mecânica, monótona e repetitiva com que expressava os seus relatos e as suas auto-recriminações, além da vazia imutabilidade de seu existir. Havia, sem dúvida, alguma coisa inorgânica,ressequida e embalsamada em sua mímica, em seus gestos e em sua fala, contrastando, extraordinariamente, com os relâmpagos fugazes de vivacidade e da naturalidade que se lhe escapavam de modo involuntário. As crises de pânico fóbico eram ruidosas alegorias do temor profundo de deixar emergir a seiva de vida orgânica à superfície silenciosa e artificialmente inabalável e impassível de seu ser. Podemos dizer, com toda segurança, que essa paciente não melhoraria de seu sintomas sem um tratamento psicanalítico bem conduzido. Uma prova disso foi a resposta clínica insatisfatória que apresentou após a administração de um medicamento (“clorimipramina”) que a literatura médica atual indica como sendo provido de uma ação terapêutica específica para o tipo de sintoma que apresentava. Esses sintomas agudos, assim como toda a malha invisível que enformava e sustentava a rigidez existencial do paciente só poderiam ser dissipados através da revelação íntima e integral de sua própria existência à ela mesma. Somente essa revelação, percebida pela paciente com sentimento s de surpresa e perplexidade, poderia induzir alguma coisa favorável no seu sobrecarregado equilíbrio psíquico e ocasionar, como conseqüência, transformações existenciais saudáveis e promissoras. E com efeito, isso ocorreu de maneira lenta mas, nem por isso, de forma menos espetacular e notável com o decorrer do tratamento psicanalítico. Por outro lado, caso essa paciente se enquadrasse dentro do espectro daquelas constituições caracterológicas muito típicas, temos certeza que não teria havido mudanças favoráveis tão significativas porque, nesse caso ela certamente não contaria com um potencial suficiente de plasticidade instintual que permitisse a efetivação de um grau satisfatório de simbolização. Pois o que acontecia com essa moça é que os seus equivalentes instintuais eróticos e agressivos parcialmente simbolizados e impedidos de chegar à consciência por força de uma suposta nocividade social (pelo fato de transgredirem as normas e leis familiares) necessitavam ser totalmente simbolizados e, conseqüentemente, institucionalizados e legitimados de modo pleno. Isso se tornou exeqüível por meio do relacionamento terapêutico que propiciou, além disso, a efetivação do processo de simbolização completa de seus equivalentes instintuais amorfos, o que não tinha sido realizado a contento. Pode-se notar como é bem visível, nesse caso, a importância decisiva das circunstâncias ambientais na gênese do sofrimento neurótico da paciente. É claro que ela apresentava algumas tendências ou predisposições constitucionais específicas de reação (anancásticas e depressivas), porém estas é que foram valorizadas e acentuadas por algumas vivências subjetivas importantes em seu desenvolvimento pessoal e não o contrário, como vimos na discussão do caso anterior. Esta observação é muito importante para que possamos delimitar e caracterizar, com segurança, a importância decisiva de um ou do outro fator de influência, seja ele constitucional ou ambiental. Com relação ao tipo de sintomas que apresentava, pode-se dizer o seguinte: eram, em sua natureza, inteiramente consonantes com as suas tendências constitucionais caracterológicas e retratavam, nitidamente o drama conflituoso que era vivido na obscuridade de seu psiquismo. As suas características constitucionais latentes de meticulosidade, severidade e escrupulosidade moral foram acentuadamente realçadas pelo conflito nuclear inconsciente, o qual poderíamos esquematicamente conceituar como sendo equivalente a complexos simbólicos constituídos por sentimentos e idéias sobrevalorizadas oriundas de vivências subjetivas correspondentes a determinadas circunstâncias situacionais muito importantes. Pode-se dizer que esses complexos simbólicos cruciais sempre controlariam o grau permitido de satisfação dos equivalentes instintuais proibidos, quantificando, dessa forma, o nível de tensão acumulada existente nas estruturas psíquicas. O surgimento de sintomas dependeria, assim, do nível de tensão existente nas estruturas psíquicas subjacentes que, por seu turno, seria o resultado da força dos equivalentes instintuais conflitando-se à impossibilidade de concretizá-los. Em resumo, poderíamos afirmar que todo sintoma neurótico é sempre resultado do grau de tensão dos equivalentes instintuais proibidos correlacionado diretamente àqueles complexos simbólicos hiper-dimensionados subjetivamente sob a forma de idéias e sentimentos cruciais somado à natureza da constituição caracterológica individual de base. Ainda, que a forma do sintoma neurótico sempre equivaleria à natureza do conflito (complexos simbólicos subjetivamente sobrevalorizados induzindo a defasagem de satisfação instintual) e o seu conteúdo à história pessoal da vivência conflitante. De qualquer maneira – e julgamos que não será excessivo ressaltarmos mais uma vez esse aspecto – a referida paciente não se situava dentro do espectro das constituições caracterológicas muito típicas, tanto que foi possível a resolução de seu conflito nuclear e daí a sua trajetória pessoal ter sido bem sucedida para alcançar a desejada liberdade existencial. Dispunha de um suficiente nível de plasticidade instintual para que fosse possível a sua adaptação satisfatória às novas demandas ambientais que se lhe ofereciam, isto é, efetivou-se com êxito, a sua inserção harmônica dentro dos modelos de integração simbólica institucionalizados e legitimados pelos dispositivos sócio-culturais.

Esperamos que as discussões anteriores, a respeito dos dois casos clínicos que acabamos de expor, tenham servido para incentivar o leitor a tentar constatar os conceitos e idéias que estamos estabelecendo em sua prática clínica diária. É tarefa sempre fascinante incursionar no terreno da obscuridade psíquica, ainda mais quando pressentimos que poderemos confirmar algumas intuições e formulações teóricas que lentamente vão se delineando à medida que observamos os pacientes no consultório e nos hospitais. É evidente que temos plena consciência de que a maioria das afirmações anteriores não se constitui em pressupostos teóricos originais e inovadores, sendo apenas observações práticas que se foram convertendo, por força da necessidade de se elaborar uma síntese conceitual, em alguns esboços sistematizados de entendimento e de compreensão. Todavia, faz-se necessário estender essas tentativas de conceituação aos outros quadros neuróticos, mesmo considerando que o termo ‘neurose’ mostra-se insatisfatório e bastante questionável para designar e definir estados clínicos tão variados e diversos.Entretanto, na falta de um termo mais preciso e abrangente, não temos outra alternativa senão nos contentarmos com esse, já consagrado e muito difundido,porém não sem fazer, antes, uma importante ressalva: somente consideramos quadros neuróticos aqueles nos quais podemos detectar, sem nenhuma dúvida, sintomas psíquicos agudos correspondentes a um sofrimento íntimo importante com preservação integral da consciência de ‘si mesmo’e que, surgindo em alguma etapa do desenvolvimento pessoal, passaram a induzir mudanças desfavoráveis no âmbito da vida cotidiana do paciente, provocando, desde um desconforto em grau médio até uma incapacitação grave no que se refere à qualidade de seu intercâmbio humano e ao desempenho suas atividades laborativas. Pois o paciente neurótico é, antes de tudo, um indivíduo potencialmente ou verdadeiramente desadaptado em vários graus e perante várias situações ambientais específicas ou todas. Enquadram-se nessa definição, os episódios depressivos agudos que não tenham características endógenas (idéias deliróides de culpa, ruína ou auto-referenciais, insônia terminal,pseudo-alucinações auditivas, inibição acentuada da psicomotilidade e melhora com odecorrer do dia), as crises de pânico fóbico, os sintomas histéricos, múltiplos e de uma variada diversidade, as crises de ansiedade paroxística, puras ou secundárias a um fundo depressivo a princípio não detectável, e por último, as reações obsessivo-compulsivas secundárias a um fundo depressivo (patoplastia obsessiva) -Não se enquadram nesta definição os chamados quadros pseudo-neuróticos, às vezes presentes em psico-sídromes orgânicas, tais como processos tóxicos e infecciosos cerebrais, traumatismos crânio-encefálicos e tumores cerebrais.

Um episódio melancólico neurótico agudo, que se instala de maneira abrupta, dependendo ou não, para o seu desencadeamento, de vivências subjetivas oriundas de circunstâncias ambientais traumáticas nitidamente causadoras, é muito diferente da vivência depressiva experimentada por um indivíduo com uma constituição caracterológica depressiva próxima ao pólo máximo de tipicidade. Neste caso, a angústia faz ( e sempre fez) parte intrínseca de todas as suas vivências subjetivas, momentâneas e sucessivas, impregnando o seu ser com cores de pessimismo e desesperança constantes ou de permanente ironia, desalento e ceticismo, ou mesmo de revolta e inconformismo persistentes e invariavelmente duradouros. A angústia é, nesses casos, parte indissolúvel e indissociável do ser, imiscuindo-se no âmago profundo de seu caráter, influindo decisivamente na forma de suas reações e na natureza genérica de suas concepções do mundo. Do mesmo modo, a uma constituição caracterológica anancástica situada próxima ao pólo máximo de tipicidade acompanharão sempre um temor difuso e um medo impreciso e vago inerentes a qualquer tipo de ação que, convictamente, queira executar. Sempre estarão presentes a indecisão, a hesitação e a dúvida fundamental. Uma idéia obsessiva qualquer poderá surgir com a rapidez de um raio e será substituída por uma outra e assim sucessivamente, num ciclo perpétuo de insegurança e incerteza vitais. Ao contrário, uma ou várias experiências fracassadas por parte de uma constituição caracterológica mais ou menos atípica poderão provocar insegurança, porém esta será, com certeza, superada diante de posteriores afirmações existenciais positivas e vitoriosas. A convicção do ato de execução ocorrerá naturalmente, sem maiores dúvidas ou qualquer espasmo reflexivo. A imposição espontânea do ser se fará sem obstáculos ou tropeços imaginários. Será a vitória da auto-persuasão e da decisão íntima, de caráter involuntário e natural. Será o triunfo da vontade íntegra e hígida, instituído-se em auto-confiança sólida e plena.

Com relação às crises de pânico fóbico e as de ansiedade paroxística, a princípio difíceis de serem diferenciadas clinicamente, temos que ressaltar o interesse das primeiras. Em um bom número de casos, segundo estudos recentes24 , são decorrentes provavelmente, de um aumento súbito da taxa de nor-epinefrina na corrente sanguínea, sendo que a terapêutica adequada consistiria na administração de “clorimipramina”o que, segundo a nossa experiência, produz um alívio dos sintomas bastante significativo nos casos tratados. Contudo, parece que parece que outros casos não respondem à terapêutica psico-farmacológica e, nessas situações, poder-se-ia afirmar que as crises de pânico fóbico (da mesma maneira que os rituais obsessivos secundários) seriam explicados à luz de duas hipóteses teóricas: 1- Essas expressões sintomatológicas conformariam, com nitidez, verdadeiras alegorias, isto é, formas de manifestação de complexos simbólicos cristalizados e hiperdimensionados subjetivamente nas regiões psíquicas inconscientes. Por exemplo, no segundo caso clínico discutido antes vimos como a paciente exteriorizava a sua proibição à vida, engendrada inconscientemente, através de sintomas agudos compatíveis com uma fobia social. Podemos dizer que essa fobia social representava, certamente, uma verdadeira alegoria emanada da complexificação inconsciente que se

*Não se enquadram nesta definição os chamados quadros pseudo-neuróticos, às vezes presentes em psico-sídromes orgânicas, tais como processos tóxicos e infecciosos cerebrais, traumatismos crânio-encefálicos e tumores cerebrais.

havia enformado em seu psiquismo e que significava o seguinte: evitar a vida a qualquer custo. Isso se manifestava sob a forma de um simbolismo concreto e reificadamente encerrado na sua vida cotidiana através da vivência atormentadora de suas crises de pânico. Pois, que o pensamento, tendo atribuído uma existência real a uma idéia, tem necessidade de ver essa idéia viva, e só o consegue personificando-a (no caso em questão, nas situações em que havia iminência de intercâmbio humano). Dessa maneira, vê-se que a forma da expressão fóbica e obsessiva quase sempre equivale à natureza do conflito, expressando-se como uma alegoria, isto é, uma espécie de simbolismo concreto (reificação simbólica) daquele. Por outro lado, o conteúdo do sintoma, com já dissemos, corresponde à história pessoal da vivência conflitante. Entretanto, em muitas ocasiões, não conseguimos perceber um sentido dinamicamente intrínseco que corresponda a um nexo compreensível entre o conteúdo dos sintomas e a história pessoal da suposta vivência conflitante, apesar de se efetuar uma investigação exaustiva da vida psíquica do paciente. Isso leva, necessariamente, a uma segunda hipótese teórica: 2 – Alguns tipos de expressão sintomatológica fóbica e obsessiva secundária teriam um conteúdo essencialmente aleatório, manifestando-se como rituais ou crises de caráter ininteligível, estranho e bizarro, correspondendo, provavelmente, à materialização de equivalentes instintuais amorfos. Quantos aos fenômenos obsessivos, faremos, na parte que se segue, um estudo mais detalhado a seu respeito, porém por enquanto podemos afirmar que essa última possibilidade se refere mais à verdadeira doença obsessiva e não a reações obsessivas secundárias, conforme veremos a propósito da diferenciação dos dois tipos clínicos de manifestação. Parece que, segundo a nossa experiência, se após algum período de tratamento psicanalítico não conseguimos detectar o sentido implícito do ritual obsessivo poderemos enunciá-lo como dinamicamente incompreensível, ou seja, resultado provável da concretização de equivalentes instintuais amorfos. Deveremos, nesses casos, forçosamente cogitar de que se trata, muito provavelmente, de uma doença obsessiva à semelhança de um verdadeiro processo psíquico e, por isto mesmo, de mau prognóstico. É claro que a mesma observação deverá se aplicar aos casos em que for constadada a ausência de resposta clínica favorável diante da administração de medicamentos anti-depressivos de primeira linha, principalmente a “clorimipramina”.

Por último, nunca será demasiado insistir novamente quanto à necessidade de uma avaliação e observação cuidadosas, detalhadas e criteriosas do paciente que apresenta uma condição neurótica. Deveremos sempre pesquisar, minuciosamente, os antecedentes mórbidos pessoais e familiares, procurar traçar um perfil caracterológico, mesmo que seja aproximado, dos pais e dos parentes mais próximos, tentar detectar os gostos, preferências, aptidões e o aspecto geral do temperamento. Além disso, definir e caracterizar os valores e normas familiares e as diversas tendências gerais de reação será muito importante no que se refere à visão que teremos do paciente inserido em uma determinada estrutura familiar. O rastreamento detalhado de suas circunstâncias de vida, de mudanças de domicílio, de perdas importantes e de descensos do nível social-econômico será indispensável para que possamos compreender a forma e o conteúdo da vivência neurótica. Pois, somente assim poderemos fazer um diagnóstico preciso e efetuar o tratamento adequado que consiga aliviar os sintomas tão desagradáveis quanto limitantes para uma desejada e satisfatória plenitude existencial.

IV – OS FENÔMENOS OBSESSIVOS

Os fenômenos obsessivos sempre consistiram em manifestações psicopatológicas enigmáticas e intrigantes devido ao seu insólito aspecto de estranheza e absurdidade. É verdadeiramente incompreensível o fato de que o paciente, apesar de reconhecer a inconsistência e a inadequação do conteúdo de suas representações obsessivas, se veja obrigado a acatá-las e a efetuar uma série ritos e cerimoniais cujos efeitos objetivos ele mesmo julga inócuos e inverossímeis. A seqüência dos rituais somente pode ser interrompida pelo estado de completa exaustão, pois após o término de uma determinada etapa compulsiva motora o paciente vivencia uma dúvida tão forte e irrefutável no que se refere ao cumprimento irrepreensível do rígido cerimonial que é dominado por uma auto-imposição inflexível para voltar a realizá-lo. Desse modo, é a permanente dúvida quanto ao cumprimento integral das obsessões que alimenta a realização repetitiva, incessante e compulsiva dos rituais. Mito se tem especulado a respeito da origem de tais manifestações psicopatológicas sendo que, de acordo com a opinião dos mais renomados e importantes autores, a angústia se constituiria como o fator mais decisivo na gênese desses sintomas. É inegável que esse ponto de vista é muito bem fundamentado do ponto de vista fenomenológico-existencial e no capítulo anterior já tivemos a oportunidade de discorrer sobre as reações obsessivas secundárias, ou seja, quadros clínicos neuróticos nos quais essa expressão psicopatológica surge como uma patoplastia de um estado nuclearmente depressivo. É sabido que as chamadas depressões endógenas, não raro, produzem sintomatologia obsessiva, que também pode ser detectada, em alguns casos, nos períodos intercríticos das psicoses fasotímicas bipolares. Porém, o que dizer do achado dessa sintomatologia em quadros de psico-síndrome orgânica (oligofrenias, epilepsias e estados pós-encefalíticos, por exemplo), e naqueles casos em que um determinado indivíduo, até então assintomático e com uma vida normal, subitamente é acometido, de forma aguda, por idéias e rituais obsessivo-compulsivos que se instalam de maneira definitiva e se desenvolvem com inequívoca tendência à cronicidade, modificando dramaticamente o transcurso existencial sem que, no entanto, se possa constatar algum tipo de lesão orgânica cerebral ou um fundo depressivo importante? Parece que, para tentarmos responder essas indagações, carecemos de algo mais do que as usuais investigações e descrições de cunho estritamente fenomenológico analítico-existencial as quais, por mais detalhadas e profundas que sejam, não têm como escapar à própria raiz conceitual do fenômeno psíquico vivenciado e estudado, escapando-lhes, necessariamente por força desta limitação, uma dimensão encadeadora e integradora de caráter explicativo que consideramos essencial. Tal dimensão, significativamente mais ampla e totalizante, poderia ser alcançada caso adicionássemos àqueles tradicionais enfoques teórico-descritivos uma linha de compreensão abrangente e elucidadora sob a forma de uma visão antropológica. Isso poderia, não somente permitir que o adoecer psíquico fosse visualizado conceitualmente com maior exatidão e autenticidade, mas também impedir que se distanciasse, ou mesmo se dissociasse, das genuínas e legítimas formas de expressão humana. Nisso reside o propósito fundamental da tarefa que pretendemos realizar e que se refere à tentativa de sistematização de entendimento dos fenômenos obsessivos.

Inicialmente, já vimos que as manifestações psicopatológicas obsessivas podem se achar presentes em inúmeros quadros clínicos psiquiátricos. O fato de que inúmeros estados psíquicos patológicos comprovadamente orgânicos ensejam o surgimento desse tipo sintoma incita a hipótese de que, na verdade, deve existir uma ‘estrutura’ latente no psiquismo que poderia, sob certas circunstâncias, ser deflagrada sob a forma de uma condição clínica obsessiva-compulsiva. Naturalmente, estamos empregando o termo ‘estrutura’porque nos falta um nome mais preciso que possa designar o conjunto de tendências psíquicas latentes capaz de dirigir e enformar a vida mental nos moldes da expressão psicopatológica obsessiva tal como a conhecemos. Pois bem, supondo que essa determinada ‘estrutura’psíquica latente exista realmente, poderíamos perguntar como ela seria deflagrada pelos diversos estados de alteração da vida mental, e mais, qual seria exatamente a sua própria natureza? Com o objetivo de alcançar as respostas desejadas começaremos por analisar, primeiramente, os estados psíquicos considerados normais correspondentes a vivências subjetivas ligadas a circunstâncias situacionais ansiogênicas.

Qual de nós já não se surpreendeu, em momentos de extrema ansiedade e aflição, a se deparar observando, de maneira minuciosa e interminável, alguns detalhes insignificantes do ambiente circundante de forma tenaz e irresistível? DOSTOIEVSKI - Citado por Von Gebsattel (21).-descreve com admirável força descritiva e profundidade psicológica como um condenado à morte, imerso na expectativa angustiante da sua execução, prende sua atenção a detalhes acessórios do ambiente tais como os botões da túnica de um soldado e pormenores do vestuário de um transeunte qualquer. Nesses casos possivelmente deve haver uma finalidade de defesa, de tentativa de manutenção da homeostase da economia psíquica, pois no momento em que a consciência está debilitada, ‘frouxa’e vulnerável devido à iminência da eclosão de equivalentes instintuais amorfos e proibidos dotados de grande valência energética, eis que um de seus atributos, que é a atenção, dirige-se com intensa e desmesurada tenacidade para o meio ambiente, polarizando-se em torno de um determinado objeto ou detalhe acidental com o propósito automático de mantê-la íntegra e coesa em sua inteireza de instância psíquica dominante. Nesses momentos deve ocorrer algum fenômeno que auxilie a redistribuição das forças psíquicas de maneira a ocasionar alguma suspensão das emoções dominantes e induzir um estado apaziguador próximo ao ‘sentimento de falta de sentimento’. Com efeito, em alguns pacientes neuróticos em estados de crise aguda, principalmente de caráter histérico e ansioso, às vezes podemos detectar, paradoxalmente, uma aparente distraibilidade ou mesmo uma suposta indiferença afetiva acompanhando uma certa fixidez e perseveração de representações psíquicas ocasionais. Da mesma maneira, estados de insegurança e de ansiedade propiciam alguns esboços de rituais tais como, por exemplo, conferir várias vezes se portas e janelas estão trancadas, se o gás de cozinha está desligado ou mesmo contar e recontar objetos, fazer cálculos numéricos inspirados em fontes diversas, acidentais e corriqueiras procurando coincidências e semelhanças entre eles. Em todos esses casos o que realmente importaria seria manter a prevalência do estado da consciência através da polarização incessante de representações psíquicas em um estado de exercício contínuo de associações ordenadas e repetitivas em seu campo. A sombra da dúvida fundamental, contudo, já está presente e expressa o relativo estado de fragilidade no que se refere ao domínio da consciência sobre a vida mental como um todo. Os pensamentos já surgem revestidos de certas suspeitas de caráter mágico, flutuando em termos de certeza subjetiva sob uma forma lúdica, como um passatempo inevitavelmente obstinado ou de um modo vagamente convicto. Certas coincidências numéricas, fisionômicas e factuais passam a ser interpretadas subjetivamente de maneira a convergir e estabelecer algum nexo de sentido com a vida interior em um clima mágico e nebuloso. A crença íntima, que envolve a relação de resultados de associações mentais particulares forjadas à custa de dados mnêmicos e (ou) senso-perceptivos com um determinado significado subjetivo mais comumente ligado a algo que poderá acontecer na vida do indivíduo ou de outras pessoas, se torna cada vez mais fortalecida. A dúvida fundamental passa a alimentar, de modo contínuo, a necessidade de repetir incessantemente as operações ou representações mentais subjetivamente sobrevalorizadas e estas começam a tomar as cores de algo psiquicamente real, concreto e vivo. Isso já corresponde, em nossa opinião, a uma alteração do caráter de atividade do complexo simbólico correspondente à certeza íntima das ações e pensamentos próprios no sentido de se manifestarem destituídos de pleno vigor de naturalidade e de espontaneidade, ou seja, há uma nítida alteração do caráter daquele complexo simbólico no que diz respeito à consciência do existir.

Tentamos, até aqui, analisar, de modo minucioso, a imprecisa faixa fenomenológica que abarca a transição entre os estados subjetivos considerados normais e os patológicos e o resultado foi que conseguimos isolar os três fatos psíquicos fundamentais que podem ser apreendidos nas vivências obsessivas em geral, quais sejam:1 - A dúvida fundamental; 2 – A reificação simbólica das representações psíquicas e 3 – A alteração da consciência do existir.

Estes três fatos psíquicos, que convertemos na tríade conceitual básica que sustenta a vivência obsessiva genérica, certamente equivalem a alterações formais do psiquismo que poderão ser explicadas à medida que dirigirmos o enfoque teórico elucidador para um campo de estudo que consideramos essencial, isto é, o campo de compreensão antropológica. Na verdade, pensamos que os elementos que compõem essa tríade conceitual poderiam ser dissecados à luz da investigação analítico-antropológica, desde que consistiriam, apenas, em expressões formais oriundas de alteraçòes profundas do psiquismo que, por sua vez, seriam satisfatoriamente compreensíveis pelo referido enfoque. Em outra parte18 já estabelecemos que os princípios funcionais da vida mental, especialmente daquela região que conhecemos pelo nome de inconsciente, poderiam ser sistematizados em três categorias distintas: 1 – Processo de operação simbólica de carga instintual biológica; 2 – Mediação do sensível pelo simbólico e 3 – Vários estágios de potencialidades funcionais capacitativas de operar simbolicamente correspondentes a matrizes simbólicas dotadas de sucessivos graus evolutivos filogenéticos. Vimos como se deu a ascensão do símbolo lingüístico, partindo da senso-percepção rumo à intelectualidade e perdendo, nesse trajeto, a aura de materialidade sensorial concreta que originariamente carregava. Vimos também como as sucessivas concepções mítico-religiosas humanas ainda estariam potencialmente presentes nas estruturas psíquicas arcaicas da vida mental de todos nós e que poderiam ser deflagradas e manifestadas integralmente em sua forma genuína não só nas produções oníricas e nos sintomas psicopatológicos das psicoses esquizofrênicas, mas também nas criações da Arte e nas múltiplas expressões do cotidiano sagrado. Pois bem, no caso dos fen6omenos obsessivos temos certeza de que tais diretrizes teóricas serão de muita valia para esclarecer a sua verdadeira natureza e o enigma, até agora indecifrável, de sua eclosão e desenvolvimento. Não é por acaso que VON GEBSATTEL21 estabelece algumas analogias e diferenças entre o mundo dos anancásticos e dos enfermos paranóicos. Dessa forma, comenta JASPERS8 a respeito - Traduzido da versão castelhana que serviu de consulta (págs. 336 e 337): “...Gebsasttel- compara o mundo dos anancásticos com o dos paranóicos. Ambos vivem em um mundo no qual falta a ingenuidade, ambos vêem em todas as partes, nos acontecimentos, significações que não existem. Não há nenhuma casualidade inocente digna de confiança mas, somente, propósitos intenções. Ambos nos mostram, indiretamente, quão necessário é, para nós, um mundo que não se preocupe conosco e ao qual pertençamos, sem dúvida. O enfermo obsessivo sabe, entretanto, do absurdo das significações que se lhe ocorrem. Para o paranóico, a significação dos fenômenos é a mesma coisa que a sua realidade. Para o anacástico, brilha a realidade originária com seu caráter de inocência e inocuidade, ainda quando inacessível, através do conjunto das significações mágicas. O paranóico possui em seu mundo delirante, sem dúvida, um fragmento de confiança e naturalidade e um resto de imperturbabilidade e de incontestabilidade sem analogia com o desassossego do anancástico. Pode-se dizer, inclusive, que a mais espantosa enfermidade, a esquizofrenia, com seu delírio, é como uma libertação contra o esgotamento da alma desperta enquanto sabe, ao mesmo tempo, causa disso. Para os enfermos obsessivos, na limitação de sua ação obrigatória mágico-significativa, o mundo, com todos os seus conteúdos perante os sentidos sãos, parece perder-se. O mundo dos enfermos obsessivos tem, pois, duas características fundamentais. É a transformação do todo em ameaça, espanto, desfiguração, impureza, podridão e morte. Porém, isso acontece somente por um sentido mágico, o do conteúdo do fenômeno obsessivo como tal ao tornar-se negativo: uma magia obsessiva, ainda quando compreendida como absurda ...” Ainda,VON GEBSATTEL 21 escreve a respeito do mundo dos enfermos obsessivos: “... Têm que repetir infinitamente certas ações, controlá-las até o infinito e assegurá-las, levar algo irrealizável até o esgotamento, ainda que estejam persuadidos do absurdo de sua atuação. E realizam as ações chocantes, esses ritos e cerimônias para defesa a desgraça. Têm significação oposta às significações das quais encontra: em todas as partes ameaça sujeira, podridão – todas as maneiras de dissolução da estrutura. É um mundo mágico – porém não acreditado – o que domina o enfermo obsessivo... As potências amistosas, atrativas da existência, desaparecem a favor das hostis, repulsivas. Não há nada inofensivo, natural, espontâneo... A existência é, para ele, tão somente a orientação da existência à sua não existência nas imagens da sujeira ou do lodo, do veneno ou do fogo, do feio, impuro ou cadavérico... O mundo fica reduzido a uma fisionomia repulsiva ...”.

Em primeiro lugar, já tivemos a oportunidade de discutir como, em uma determinada fase do desenvolvimento humano, foram importantes as normas de tabu para proporcionar o estabelecimento de diversos graus de ritualização do comportamento coletivo, de tipificação dos hábitos dos indivíduos para consolidar a ordem social nascente. Possivelmente, uma das primeiras concepções mágico-sobrenaturais manifestada pelo homem primitivo foi a crença no Mana. Alguns aspectos importantes de tal concepção mítica, por sinal bastante arcaica e originariamente observada entre os melanésios da Oceania, foram posteriormente constatadas em determinadas crenças religiosas de outros povos como, por exemplo, no Mulungu dos bantos, no Manitu dos algonquinos, no Orenda dos iroqueses e no Wakanda dos sioux. Todas essas concepções mágico-sobrenaturais pareciam encerrar, em si mesmas, sentimentos de medo, respeito e admiração que os homens primitivos dirigiam a qualquer classe de objetos ou de pessoas que, segundo a sua crença, pudesse estar saturada por uma espécie de força e poder extraordinário capaz de proteger o indivíduo e a coletividade de modo geral mas da qual também tinham que se proteger através de rituais de evitação bastante complicados e específicos, tamanhos eram os riscos de se confrontarem com poderes de tal intensidade sem contar com uma proteção mágica eficaz em relação a eles. Assim, acreditavam que esses poderes e essas forças se localizavam em determinadas pessoas-chave como, por exemplo, grandes chefes, feiticeiros, guerreiros, etc. e que, também, podiam se deslocar e ‘contaminar’ alguns objetos ou outras pessoas, causando enormes danos àqueles que não estivessem protegidos ou alertados em relação ao suposto perigo. O mesmo se aplicava a crianças recém-nascidas, cadáveres e a guerreiros que se empenhavam em uma batalha e matavam inimigos sendo que, nesses casos, o indivíduo se tornava, automaticamente, um objeto-tabu e não podia, em nenhuma condição, ser visto ou tocado até que fossem concluídos os rituais de purificação próprios para cada caso sob pena de que terríveis castigos sobrenaturais se abateriam sobre um ocasional infrator, ou mesmo, sobre a tribo inteira. O homem primitivo, desse modo, vi-se diante de um mundo povoado de perigos e ameaças sobrenaturais que lhe exigiam uma imediata e eficaz auto-proteção,a qual, por sua vez, consistia na realização incessante e ordenada de rituais mágicos minuciosos e complexos. Podemos dizer que nessa fase do desenvolvimento humano o cotidiano sagrado invadia flagrantemente o cotidiano profano do homem primitivo, com quase todas as sua ações habituais, ou mesmo todas, revestindo-se de um caráter fantástico e extraordinário. Já vimos como as sucessivas categorias de conceituação mítico-religiosa teriam, possivelmente, correspondido à diferenciação progressiva de potencialidades funcionais capacitativas de operar simbolicamente que estaria correlacionada ao desenvolvimento gradual de estruturas psíquicas que se foram sucedendo lentamente no decorrer do percurso evolutivo sócio-cultural humano, inscrito nessas estruturas sob a forma de uma trajetória filogenética. Ainda, que nessas estruturas, correspondentes a fases arcaicas do desenvolvimento humano, o símbolo lingüístico ainda não conseguiria mediar inteiramente o material oriundo da senso-percepção, carregando, como conseqüência, uma acentuada aura de materialidade sensível.

Ora, não é difícil observar e constatar notáveis semelhanças entre os aspectos formais predominantes da vivência obsessiva genérica e as características básicas dessa fase arcaica do desenvolvimento humano que acabamos de relembrar. O aspecto repulsivo e ameaçador do mundo externo, os perigos fantasmagóricos vivenciados pelo enfermo com um caráter de reificação simbólica, os quais, obrigatoriamente, têm que ser neutralizados através de complexos rituais mágicos de evitação, tudo isso nos remete, imediatamente, para aquelas fases remotas da evolução psicossocial humana. Os rituais de limpeza cuidadosa, ordenada e exaustiva de partes do corpo ou de objetos que teriam sido ‘contaminados’ pela sujeira e imundície que trasbordam de um mundo hostil e repleto de supostas ameaças e riscos colocam em relevo o caráter mágico da vivência obsessiva decorrente da mediação apenas parcial do sensível pelo simbólico. O fato de que o paciente, apesar de não acreditar na eficácia de seus rituais, se sinta compulsivamente impelido a voltar a realizá-los infinitamente demonstra que ele está inteiramente tomado pela convicção da vivência de reificação simbólica, quer dizer, é completamente dominado pela certeza reificada da realização voluntária, apesar de não considerá-la verdadeiramente real. Apesar dos seus juízos de realidade considerarem os rituais obsessivos inócuos e inverossímeis, ele não tem como escapar da necessidade concreta de voltar a executá-los, da obrigatoriedade inevitável de realização voluntária como algo que emana da própria vivência simbólica reificada. Habitualmente, as nossas ações voluntárias são dotadas de naturalidade e espontaneidade porque são o resultado de decisões calcadas em um encadeamento simbólico abstrato, livre e fluente, que reveste a convicção de qualquer realização. No caso da vivência obsessiva genuína, o propósito da realização é oriundo do próprio ato de execução em caráter concreto e se esgota inteiramente nele mesmo. A fluidez e a volatilidade do princípio de liberdade, inerente a toda realização voluntária, são capturados e aprisionados no interior do formalismo inflexível pré-determinado. A convicção vivenciada por um indivíduo enfermo de que, por exemplo, um determinado ritual de limpeza, à semelhança com os rituais primitivos de ‘purificação’, o protegerá de uma ‘contaminação’ se origina e termina na própria realização daquele ritual, encerra-se exclusivamente nele sob a forma de um simbolismo concreto. É a irrefutável convicção no resultado da ação que independe de qualquer abstração reflexiva porque está contida no próprio ato, confundindo-se com ele. E é por isto que estamos estabelecendo o conceito de certeza reificada da realização como sendo a primeira essência formal irredutível da vivência obsessiva genuína. Desse modo, com o valioso auxílio instrumental do enfoque antropológico, conseguimos nos aprofundar na análise de um dos elementos da tríade conceitual que sustenta a vivência obsessiva, a reificação simbólica das representações psíquicas, e o resultado foi que desvendamos algo que, na verdade, corresponde ao seu arcabouço fenomenológico estrutural: a certeza reificada da realização.

E o que dizer dos dois outros elementos dessa tríade conceitual, a dúvida fundamental e a alteração da consciência do existir? Responderemos, sem hesitação, que o enfoque antropológico, mais uma vez, auxiliará decisivamente o processo de elucidação desses dois fenômenos psíquicos. Vimos antes, a propósito da análise daquela faixa imprecisa e de contornos mal delineados onde se situa o estado de transição entre as vivências de caráter obsessivo consideradas normais e aquelas francamente patológicas, como a consciência debilitada procura, de forma automática, manter a sua prevalência de estrutura dominante da vida mental através da polarização incessante de representações psíquicas em uma situação de exercício contínuo de associações ordenadas e repetitivas em seu campo. Pois bem, pensamos que o fato psíquico qualitativamente importante e decisivo que demarcaria, nitidamente, a passagem do estado normal para o patológico seria dúvida fundamental. Essa verdadeira incerteza vital, imiscuindo-se em todas as vivências subjetivas do indivíduo enfermo, vem acompanhada desde o início, invariavelmente, de tênues convicções vagamente reificadas de realização, ou seja, já está irremediavelmente infiltrada pela nebulosidade da superstição e do presságio. Isso demonstra que a dúvida fundamental, a verdadeira força motriz da repetição incessante dos rituais obsessivos, incita a revisão contínua e detalhada do modo de realização das ações ritualísticas por força exclusiva da crença supersticiosa de que eles não foram executados corretamente. .Então, poderíamos dizer que a transição do estado normal para o patológico seria caracterizada pela transformação do sentimento de indecisão pertinaz e de hesitação constante na verdadeira dúvida irrefutável e irremovível embebida de superstição mágica. E mais ainda, afirmaremos que essa transição seria efetivada pelo grau quantitativo de defesa da consciência debilitada, isto é, quanto mais ameaçada ela estivesse pela eclosão dos equivalentes instituais proibidos e amorfos mais ‘espástica’ ela se tornaria e mais marcada seria pela ‘impressão’simbólica arcaica de caráter reificado oriunda das estruturas psíquicas subjacentes filogeneticamente mais antigas. E é exatamente a visão de uma consciência espástica e hiper-vigil que queremos sublinhar: uma estrutura psíquica que continua dominante e que, para isso, se torna ‘contraída’ a ponto de necessitar, para a manutenção de sua integridade e funcionamento, da implantação de ritmos de representações ideativas ‘espasmódicos’, ou seja, representações ideativas que se desenrolam rigidamente e voltam a se manifestar dentro de um ritmo inflexivelmente pré-determinado. Essa visão – que infelizmente, por ora só temos condições de descrever de modo abstrato através de metáforas imprecisas – se refere a uma suposta alteração neuro-fisiológica que, acreditamos, provavelmente perpassa a base fisiopatológica da doença obsessiva. Mas voltemos a fixar a nossa atenção na dimensão fenomenológico-existencial do problema.

No interior da ação obsessiva não há lugar para qualquer dúvida, pois ela sempre vem acompanhada da convicção de realização plena com um caráter de reificação simbólica. Então, não há um impedimento da realização das ações compulsivas devido a um conflito importante entre o caráter subjetivo de reificação e a crítica da razão abstrata no que se refere à eficácia real dessas ações . apesar da razão abstrata subjetiva questionar e duvidar da objetividade real das ações compulsivas, elas continuam se repetindo inexoravelmente. Disto se conclui que a compulsão à repetição provém, indiscutivelmente, da própria ação compulsiva. Como conseqüência, teremos que admitir que a dúvida fundamental está muito distante daquilo que habitualmente vivenciamos em nosso cotidiano e que corresponde a uma incerteza abstrata, fluida e evanescente. A dúvida fundamental, ao contrário, reveste-se de um caráter concreto e reificado e se situa no interior da própria ação obsessiva, à semelhança do que ocorre com a certeza rreificada da realização voluntária. É uma dúvida reificada e concreta, encerrando-se no interior da própria ação compulsiva. Dúvida e certeza reificadas, eis no que consiste, finalmente, o verdadeiro núcleo da vivência obsessiva, nos dois pólos opostos que, alimentado-se mutuamente de modo contínuo e incessante, perpetuam indeterminadamente a realização infinita dos rituais obsessivos. Dessa maneira, instrumentalizados pelo conceito de mediação parcial do sensível pelo simbólico (enfoque antropológico), alcançamos a segunda essência formal irredutível da vivência obsessiva: a dúvida reificada da realização. A efetuação impositiva dos rituais obsessivos só poderá acontecer quando os dois pólos opostos incitarem-se mutuamente sob a forma da vivência subjetiva de certeza de realização concreta, alternando-se naturalmente, com a impressão íntima de falta concreta de consecução.

Quanto à alteração da consciência do existir, parece que ocorre, com otranstorno fundamental, uma presentificação, uma reatualização, na vida mental, de certos estágios arcaicos de simbolização que invadem o cotidiano do indivíduo enfermo e modificam radicalmente o curso existencial.

LÉVI-STRAUSS14 analisa, extensamente, um texto indígena mágico-religioso da tribo dos Cuna destinado à cura xamanística. O texto analisado por aquele autor consiste em um longo encantamento sob forma de cântico que era entoado pelo xamã tribal com a finalidade de ajudar a resolver um parto difícil. O referido autor emprega o termo ‘eficácia simbólica’ para designar a correlação fenomênica entre o método mágico utilizado e a cura desejada. Escreve ele: “. . . Sem dúvida, esta transformação dos detalhes do mito tem por finalidade despertar uma reação orgânica correspondente; mas a doente não poderia apropriar-se dela sob forma de experiência, se ela, não fosse acompanhada de um processo real de dilatação. É a eficácia simbólica que garante a harmonia do paralelismo mito e operações. E mito e operações formam um par, onde se encontra sempre a dualidade do doente e do médico . . .”.

Pois bem, podemos imaginar como, para o homem primitivo, teriam sido essenciais os rituais de encantamento para tentar solucionar os problemas com que se defrontava habitualmente. Afinal, eram os únicos recursos de que dispunha para tentar se proteger de um mundo ameaçador, para procurar atenuar o sofrimento de seus semelhantes e para obter êxito na caça, na guerra e nas colheitas. Ora, desde que admitamos que a vivência obsessiva é o resultado da infiltração da vida mental por certas modalidades de simbolização filogeneticamente arcaicas, poderemos supor que a certeza reificada da realização, núcleo formal daquela vivência, certamente corresponderia à procura da efetivação dessa eficácia simbólica remota e perdida mas que se presentificaria, vividamente, no psiquismo do indivíduo enfermo. Tal fato poderia explicar, inteiramente, o aspecto bizarro e o caráter formal, verdadeiramente anacrônico, dos rituais obsessivos. O aprisionamento da existência em infindáveis rituais de cunho mágico, frutos da certeza reificada de realização, a dissipação da vitalidade espontânea e natural em formalismo concreto, tudo isso nos faz pensar nessa possibilidade. A comparação entre o mundo paranóico e o do enfermo obsessivo encetada por VON GEBSATTEL20 pode contribuir ainda mais para facilitar a compreensão de tudo o que já dissemos. Enquanto que na psicose esquizofrênica haveria a falência das estruturas psíquicas dominantes com a dissolução do complexo simbólico correspondente à certeza íntima das ações e pensamentos próprios, resultando na hegemonia completa daquelas estruturas psíquicas filogeneticamente mais antigas, no caso da doença obsessiva haveria uma espécie de ‘espasmo’, uma alteração profunda do caráter das estruturas dominantes com o propósito de evitar a todo custo, que aquilo ocorresse. Entretanto, as estruturas psíquicas dominantes e filogeneticamente mais recentes, apesar de continuarem inibindo as subjacentes, passariam a ser infiltradas, impregnadas por tipos de simbolização arcaicos e que, automaticamente, cobrariam a efetivação integral de suas modalidades específicas de eficácia simbólica. Isso poderia explicar as analogias e as diferenças entre as vivências subjetivas dos enfermos obsessivos e dos esquizofrênicos. Os últimos vivem em um mundo completamente reificado e à mercê dos seus equivalentes instintuais que projetam reificadamente para o meio externo tomando a forma de perseguidores reais, enquanto que os primeiros vivem em um mundo com certas vivências reificadas, as quais, repetindo-se ritmicamente no universo congelado e imóvel da existência, procuram evitar a reificação total desse mesmo mundo. No doente esquizofrênico, a dissolução do complexo simbólico correspondente à idéia e sentimento de ‘si mesmo’ aliada à mediação apenas parcial do sensível pelo simbólico (característica própria das estruturas psíquicas filogeneticamente arcaicas), induziriam a reificação de desejos e temores pessoais até então inscritos subjetivamente em um nível simbólico abstrato e o resultado seria a perda dos limites precisos entre a consciência individual e o mundo externo e a conseqüente atribuição convicta, pelo enfermo, da realização desses mesmos desejos e temores por outrem de forma inteiramente reificada. Como conseqüência, há a alteração da atividade da consciência individual no que se refere ao seu caráter de execução, desde que, pelas razões anteriores, o doente possui a irrefutável certeza íntima de que os seus medos e anseios, agora completamente reificados, estão sendo efetivados concretamente por outras pessoas. É a realização concreta e presentificada do imaginário intemporal e intangível, é a materialização visível e sensorial do abstrato simbólico. Na doença obsessiva, por outro lado, o ‘espasmo’defensivo da consciência em relação à eclosão das estruturas psíquicas filogeneticamente mais antigas faz com que, ao contrário, se instale algo como uma verdadeira hipertrofia do ato de realização voluntária, isto é, o caráter de execução da atividade da consciência individual também se torna ‘espástico’ no sentido de que necessita se afirmar infinitamente, através de repetições ritualísticas infindáveis, para que se mantenha íntegra. Preservado está, portanto, na doença obsessiva, o caráter de execução da atividade da consciência individual, ainda que

hipertrofiado, mas por isso mesmo ocasionando o esvaziamento do seu outro lado contíguo, a plenitude do caráter de existir.

Todas as concepções teóricas anteriores podem contribuir, decisivamente, para que se alcance uma visão ampla, abrangente e dinâmica dos fenômenos obsessivos no que diz respeito à sua compreensão como sintomas psicopatológicos que consistem, na verdade, em expressões sintomatológicas de vários tipos de alterações do psiquismo, sejam elas profundas ou não. Tais alterações sempre corresponderiam a diversas perturbações do equilíbrio capazes de ocasionar um estado de debilitação da consciência como estrutura prevalente da vida mental. Por exemplo, os rituais obsessivos secundários a psicosíndromes orgânicas nos levam a supor que haveria uma fragilização também na natureza orgânica da consciência e daí, a emergência daqueles setores psíquicos filogeneticamente mais antigos e dotados de modalidades de simbolização arcaicas. Em outra possibilidade, no caso de idéias obsessivas acompanhadas ou não de rituais em quadros de depressão endógena, poderíamos explicar o surgimento desses sintomas como conseqüência do transtorno psíquico fundamental, sempre presente nessas condições clínicas, e que é o descenso quantitativamente anormal do fundo endotímico-vital. Parece que esse fundo consiste em uma atividade basal que permeia o conjunto dos processos encadeadores da vida mental, desde os mais primitivos até aqueles superiores e mais elaborados, concedendo-lhe completa inteireza e plenitude de funcionalidade. Quando, em condições patológicas, ocorre uma queda significativa da intensidade dessa atividade basal, parece haver, como conseqüência, uma diminuição da funcionalidade inerente a todos os processos encadeadores da vida psíquica, ocasionando uma lentificaçào anormal do ritmo de sua efetivação. Isso provocaria uma diminuição do grau da turgescência tensional, fisiologicamente necessária, para a manutenção da plena funcionalidade das estruturas psíquicas em geral e, como resultado, aquelas mais recentes filogeneticamente diminuiriam a sua inibição sobre as mais antigas. Tal fato, por sua vez, propiciaria a infiltração de certas modalidades de simbolização arcaicas e de caráter reificado nas estruturas psíquicas dominantes, impregnando as vivências cotidianas do enfermo melancólico. Isso poderia explicar as alterações subjetivas de vivência temporal e também as idéias deliróides de culpa e de ruína, tão freqüentes nesse quadro clínico. Parece que quanto maior é o grau de depressão, mais se fortalece a crença íntima em pressentimentos supersticiosos relativos a acontecimentos catastróficos e trágicos que poderiam se abater sobre o enfermo. Em quadros melancólicos graves existe, por parte do paciente, a convicção reificada da iminência de consumação do evento trágico que, à semelhança das representações obsessivas, polariza inteiramente o transcurso existencial do indivíduo que passa a viver exclusivamente voltado para as funestas expectativas de seu destino. Também as dúvidas de escrúpulos de natureza moral, da mesma maneira que ocorre com os obsessivos, podem transformar-se, no interior das vivências subjetivas do enfermo melancólico, em convicções reificadas de realização de atos malévolos e lesivos para com as outras pessoas. O paciente passaria a viver em um mundo de niilismo reificado, os seus medos e temores se lhe tornariam nitidamente sensoriais, as suas apreensões se transformariam em auto-acusações convictas e irrefutáveis. Tudo isso ocorreria, provavelmente, porque os seus equivalentes instintuais amorfos e proibidos, agora com uma tensão de descarga para o meio ambiente diminuída devido à queda significativa da atividade basal de fundo endotímico, se revelariam reificadamente para o próprio indivíduo e procurariam satisfazer-se nele mesmo, preservado que está o caráter de execução da atividade da consciência individual. Assim, o enfermo melancólico se defrontaria, face a face, com os seus próprios equivalentes instintuais que, por força do descenso do fundo endotímico-vital, se tornariam reificados sob o aspecto formal de vivências de culpa, prejuízo e de iminência catastrófica, isto é, com conteúdos essencialmente negativos e centrados nele mesmo. Vimos antes como os pressentimentos supersticiosos se transformariam na convicção reificada de iminência catastrófica e, também, no caso das auto-acusações objetivamente infundadas poderíamos supor que a descarga dos equivalentes instintuais no próprio indivíduo se faria formalmente camuflada na vivência de convicção reificada de culpa. Dessa maneira, ambas convicções subjetivas reificadas expressariam um movimento instintual auto-destrutivo maciço que, efetivamente, não cessaria até a consumação verdadeira do enfermo, fosse ela realizada de modo reificadamente imaginário sob a forma dessas convicções subjetivas de cunho mágico ou mesmo de modo objetivamente real, através de seu auto-extermínio, podemos afirmar que a vivência da convicção reificada de ameaça e destruição efetuada pelo outro, própria do mundo esquizofrênico, seria substituída pela vivência da convicção reificada de culpa e de iminência de consumação do evento trágico, característica fenomenológica axial do mundo melancólico.

Por último, temos que considerar o achado ocasional de fenômenos obsessivos em pacientes esquizofrênicos, principalmente naquelas fases em que observamos uma diminuição ou mesmo uma remissão dos sintomas agudos psicóticos. Tal fato poderia ser explicado se considerarmos que, segundo nossas concepções conceituais, nessas fases estaria ocorrendo o retorno dinâmico da prevalência das estruturas psíquicas filogeneticamente mais recentes na vida mental e daí uma proximidade tão contígua entre elas e aquelas mais arcaicas, que seria de se esperar, pelo menos teoricamente,o surgimento de sintomas obsessivos nesses períodos de transição entre as fases agudas e as assintomáticas, de acordo com o mecanismo que já tivemos oportunidade de estudar.

Esperamos, dessa maneira, que tenha ficado bastante clara, para o leitor, a compreensão da origem dos fenômenos obsessivos como expressões sintomatológicas que podem surgir em diversas situações de alteração patológica do psiquismo. Além disso, que tenha sido bem estabelecida a diferenciação teórica entre os quadros obsessivos limiares e a verdadeira doença obsessiva. Os primeiros não passam de reações motivadas por estados ansiosos e distimias depressivas, são transitórios, de curso clínico virtualmente reversível e de prognósticos benigno, enquanto que a segunda se caracteriza como um verdadeiro processo, consistindo em uma alteração definitiva do psiquismo de curso clínico irreversível e prognóstico sombrio.

Finalizando, temos a esperança de que tenha ficado bem visível que os sintomas psicopatológicos em geral se por um lado representam algo de surpreendentemente novo, através de sua eclosão súbita no transcurso existencial do indivíduo enfermo, por outro significam apenas distorções e exacerbações sintomatológicas de algo arcaico, porém potencialmente vívido e encerrado na memória ancestral do fator humano. Caso o leitor nos tenha acompanhado com boa vontade nessa incursão e que, ao final dela, haja usufruído algum benefício teórico que julgou importante, consideramos efetivada, com êxito, a presente tarefa.

A - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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B - FONTES COMPLEMENTARES DE INFORMAÇÃO

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25. VERSIANI, M. - “ESTADO ATUAL DA DISCUSSÃO SOBRE CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO E NOSOLOGIA DOS ESTADOS DEPRESSIVOS” - Conferência realizada no Auditório da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais em 21 de maio de 1998 – Promoção da Sociedade de Psiquiatria do Estado de Minas Gerais (SPEMGE).