Gustavo Fernando Julião de Souza

“AS PSICOSES ENDÓGENAS:

UMA VISÃO FENOMENOLÓGICO-DINÂMICA”

I. INTRODUÇÃO:

Não é nossa finalidade empreender um estudo completo e abrangente das chamadas psicoses endógenas, não só porque muito já foi escrito e sistematizado a respeito do tema, mas também devido às enormes dificuldades com que se defronta aquele que se dispõe a fazê-lo. As diversas classificações, as diferenças de conceituação das várias escolas que se dedicaram e ainda se dedicam ao seu estudo fazem com que a tarefa pretendida se prenda a um exaustivo e minucioso trabalho de revisão bibliográfica, catalogando analogias e diferenças dos inúmeros quadros clínicos descritos pelos vários autores. Atualmente, essas dificuldades foram amenizadas pelo surgimento de certas padronizações conceituais presentes no DSM - III1 através de critérios diagnósticos calcados em estudos empírico-estatísticos realizados por diversos pesquisadores. Apesar disso, os problemas que dizem respeito ao diagnóstico diferencial no âmbito das psicoses endógenas continuam prejudicando o tratamento de muitos pacientes devido à impossibilidade de um diagnóstico preciso e exato em um primeiro momento do exame psiquiátrico. Tal é o caso de muitos pacientes acometidos de doenças afetivas e que são erroneamente diagnosticados e tratados como enfermos esquizofrênicos, privando-se, assim, da terapêutica específica pelo lítio10. Isso representa somente um aspecto do problema. O outro consiste no prognóstico da doença, que pode ser mais ou menos favorável dependendo do diagnóstico estabelecido através da observação da evolução clínica de cada caso.

No âmbito das psicoses endógenas existem apenas duas entidades clínicas muito bem estabelecidas e delineadas que são as psicoses esquizofrênicas e as doenças afetivas uni e bipolares. Mas o que dizer de outros quadros psicóticos descritos e catalogados mas cuja realidade clínica é discutível e questionável18, como, por exemplo, o grupo das parafrenias e a paranóia? E aqueles quadros intermediários denominados psicoses reativas ou psicogênicas6? Ainda, o que representa, na verdade, o achado de algumas manifestações psicopatológicas tradicionalmente consideradas esquizofrênicas em pacientes portadores de doenças afetivas10, a ponto de ter sido criada, por esse motivo, uma nova subentidade nosológica, a ‘esquizofrenia esquizoafetiva7 hoje questionada? E os chamados quadros psicóticos mistos?

Sem dúvida, trata-se de uma série de interrogações cujas respostas parece que ainda estamos longe de conseguir responder. Entretanto, nada impede que tentemos estabelecer um sistema de compreensão dos fenômenos psicopatológicos que se nos apresentam nos diversos quadros psicóticos calcados em alguns fundamentos teóricos propostos por nós mesmos anteriormente21,22. Em outra parte22, já dissemos que as costumeiras descrições e investigações dos sintomas psicopatológicos de cunho estritamente fenomenológico e analítico-existencial, por mais detalhadas e profundas que sejam, não têm como escapar à própria raiz conceitual do fenômeno psíquico vivenciado e estudado, escapando-lhes, necessariamente por força dessa limitação, uma dimensão encadeadora e integradora de caráter compreensivo que consideramos essencial. É necessário que a esses enfoques tradicionais seja adicionada uma linha de compreensão que já denominamos antropológica e que, ao nosso ver, seria capaz de dotar o entendimento dos distúrbios psíquicos de um encadeamento dinâmico e totalizante, situando-os no interior das legítimas formas de expressão humana. Já tivemos a oportunidade de estudar21,22 a psicose esquizofrênica e a doença obsessivo-compulsiva à luz de conceitos norteados por essa perspectiva de entendimento e agora tentaremos compreender os quadros psicóticos em geral dando ênfase às semelhanças e diferenças entre os diversos tipos, procurando estabelecer uma linha teórica compreensiva básica que seja capaz de elucidar a natureza íntima dos sintomas presentes nessas situações patológicas. Em estudos anteriores21,22 já enfocamos, a propósito da psicose esquizofrênica, os principais sintomas psicopatológicos dessa doença, embora o tenhamos feito de uma maneira mais ou menos esparsa e, agora, o objetivo será sistematizar o nosso estudo correlacionando os outros quadros psicóticos dentro daquela perspectiva de entendimento teórico que julgamos mais viável e plausível.

Belo Horizonte, fevereiro de 1990.

Gustavo Fernando Julião de Souza

II. AS PSICOSES ESQUIZOFRÊNICAS

Dissemos antes22 que alguns sintomas esquizofrênicos tais como as alucinações e as vivências delirantes primárias seriam o resultado da materialização visível e sensorial da dimensão simbólica abstrata da vida psíquica, isto é, a presentificação sensível do imaginário intemporal e intangível.

Vejamos o que isso representa novamente pois, apesar de já termos discorrido a respeito, consideramos que nunca serão demasiados novos desenvolvimentos conceituais para tentar esclarecer ainda mais a questão.

Para começar, voltaremos a estudar a questão do símbolo ou, mais precisamente, o problema da diferenciação simbólica no que se refere às perspectivas ontogenética e filogenética. Já vimos anteriormente21 a hipótese da ascensão do símbolo, partindo da esfera senso-perceptiva rumo à da intelectualidade e, quanto a isso, poderemos dizer que os dois pólos básicos desse trajeto, isto é, pólo perceptivo e o representativo são ocupados pelos dois tipos axiais de conteúdo psíquico, a saber, respectivamente a imagem perceptiva e a imagem representativa. Já estabelecemos antes21 a hipótese de que o símbolo, em sua ascensão rumo à intelectualidade, iria, gradualmente, perdendo aquela aura original de sensorialidade material e concreta e adquirindo, progressivamente, um atributo cada vez mais abstrato e representativo. Dito de outra forma e com o propósito de ilustrar da melhor maneira possível o que estamos explicando, poderíamos afirmar que a imagem perceptiva eqüivaleria a uma nitidez sensorial igual ao infinito e a uma ‘nitidez’ abstrata igual a zero, enquanto que, por outro lado, a imagem representativa eqüivaleria a uma nitidez sensorial igual a zero e a uma ‘nitidez’ abstrata igual ao infinito. Normalmente, a imagem perceptiva é significada pelo sujeito como sendo oriunda do mundo externo. Qualquer pessoa crê, convictamente, que, por exemplo, as imagens acústicas ou ópticas que percebe estão relacionadas diretamente a objetos situados fora de si, estão ligados a fatos e a eventos que acontecem externamente a si mesma, são causadas por algo ou por outrem. A nitidez sensorial que acompanha tais imagens não dá lugar a nenhuma dúvida a respeito de sua origem. Ao contrário, a imagem representativa é significada como sendo oriunda do interior do próprio psiquismo subjetivo. Um conceito, uma opinião pessoal e um desejo (quando chegam a ser representados subjetivamente) estão carregados de certeza íntima quanto à identidade unívoca dos produtores dessas idéias e impressões emocionais. A delimitação subjetiva bem delineada entre esses dois mundos, o exterior e o interior, constitui a base do sistema de juízos de realidade do indivíduo.

Anteriormente21 já tivemos a oportunidade de discutir a respeito de algumas semelhanças importantes entre o psiquismo infantil e o do homem primitivo e, definitivamente, parece que essas analogias se fundam naquilo que poderíamos denominar por imprecisão de delimitação entre a imagem perceptiva e a representativa, ou seja, entre a realidade e o imaginário. Ao nosso ver, o pensamento mágico primitivo acompanhado de todas as suas características peculiares, por exemplo, da crença de poder agir à distância, de poder infligir malefícios ao inimigo odiado através da execução de danos às partes de um efígie que o representa, em suma, o ato de imaginar corresponder, sem reservas, ao de conseguir o desejado, constitui-se como um bom exemplo da imprecisão de delimitação entre a imagem perceptiva e a representativa. Nesse caso, a dimensão simbólica abstrata (representativa) ainda se encontra carregada de sensorialidade concreta (perceptiva),ocasionando, desse modo, a convicção subjetiva de eficácia das ações do próprio pensamento, operadas pelo imaginário, sobre a realidade. Nisto consiste a perspectiva teórica filogenética e, quanto à ontogenética, podemos mais uma vez afirmar que o psiquismo infantil contém algumas características notavelmente análogas ao que estamos exemplificando. Basta observar, com atenção, as fantasias, devaneios e brincadeiras infantis para se concluir que, também nas crianças, há uma acentuada imprecisão de delimitação entre a imagem perceptiva e a representativa.

Desde que aceitemos a definição de simbólico como sendo aquilo que media o sensível investindo-o de um sentido4, torna-se provável que uma imagem representativa altamente abstrata encerre espécies de fórmulas sensoriais comprimidas15, isto é, inclua os conteúdos sensoriais originais que o fator simbólico conseguiu mediar completamente de maneira progressiva. Isso é bastante visível, em primeiro lugar, nos sonhos, onde as representações abstratas desdobram-se e, posteriormente, norteadas pelas diretrizes de polarização induzidas por relações de sentido análogas, condensam-se fragmentariamente sob a forma de conteúdos sensorializados e reificados, ocasionando o aspecto peculiar do material onírico. Em segundo lugar, e é isso que nos interessa neste trabalho, as manifestações psicopatológicas dos enfermos psicóticos sempre mostram esse caráter de sensorialização e reificação, apresentando-se ao observador e ao próprio doente (em certas fases da doença) como fenômenos estranhos, bizarros e incongruentes. A propósito da forma do delírio primário esquizofrênico, já dissemos anteriormente21 que poderia ser resultante da desdiferenciação da eficácia simbólica para mediar o material senso-perceptivo oriundo do mundo externo, apresentando, desse modo, um caráter arcaico e próprio das estruturas psíquicas filogeneticamente mais antigas. Por outro lado, o conteúdo extremamente variável do delírio poderia ser resultado do povoamento de um mundo interno - recém desprovido de mediação simbólica do sensível - pelos equivalentes instintuais, inconscientes até antes da eclosão da doença, e que agora moldam e forjam um novo drama pessoal encenado em um novo mundo subjetivo, fantasmático e totalmente reificado. Ora, quando o imaginário abstrato reifica-se completamente e passa a ocupar uma parte ou mesmo a totalidade da vida psíquica individual, o resultado é que as referências subjetivas quanto à delimitação precisa entre o mundo interior e o exterior se diluem e se perdem. Os desejos, aspirações e temores pessoais, anteriormente sendo constituídos por conglomerados de emoções e de representações subjetivas, ou seja, de idéias, passam a se realizar objetivamente através do processo de reificação, isto é, adquirem um caráter de realidade factual indiscutível e irrefutável. O desenrolar sensorializado e reificado da trama existencial íntima desejada ou temida ocorre paralelamente ao desmoronamento do patrimônio representativo abstrato do enfermo (complexo simbólico correspondente à inteireza da consciência individual), núcleo exclusivo de seu mundo interior. Conseqüentemente, há um sério comprometimento da convicção subjetiva, por parte do paciente, quanto ao reconhecimento de suas próprias ações diante do mundo externo como verdadeiramente suas. Desse modo, com a sensorialização do patrimônio pessoal representativo abstrato, pulveriza-se o núcleo de convicção de regência e de controle da consciência individual sobre suas próprias ações e pensamentos, transferindo-se os conteúdos psiquícos próprios do mundo interno para o espaço subjetivo reservado àqueles do mundo externo. Para o enfermo esquizofrênico, quase tudo vem ‘de fora’, uma série de eventos e ações situam-se exteriormente a ele: pensam por ele, impõem-lhe pensamentos, ‘roubam’, etc. Dessa maneira, os chamados fenômenos de intervenção alheia, sintomas psicopatológicos que, sob certas condições, podem ser patognomônicos da psicose esquizofrênica, resultam da sensorialização e da conseqüente reificação do patrimônio pessoal representataivo abstrato e de sua subseqüente transferência para o espaço subjetivo que abriga os conteúdos psíquicos oriundos do mundo externo.

Em nossa opinião, a concepção jasperiana12 de alteração do atributo de atividade da consciência do ‘eu’ pode ser muito bem compreendida de acordo com o que estamos postulando. Basta pensar no enfermo esquizofrênico, completamente à mercê de seus equivalentes instintuais bem simbolizados e agora inteiramente reificados, submetendo-se passivamente a ‘controles’ e ‘influências’ que vivencia como sendo impostos externamente a si mesmo e sem que nada possa fazer para atenuar tão tormentosas experiências. Nesses casos há, claramente, uma profunda alteração da consciência subjetiva de execução, com os enfermos vivenciando a impressão irrefutável de que, por exemplo, não são eles que pensam mas sim uma força estranha a eles, sentem-se como verdadeiros autômatos, acreditando que suas próprias ações estão sendo influenciadas ou comandadas por algo ‘de fora’ que freqüentemente, identificam como sendo um poder extraordinário. À medida que, na psicose esquizofrênica, se esvazia ou fragmenta o complexo simbólico correspondente à inteireza da consciência individual, pulverizam-se, conseqüentemente, os seus dois atributos que são a consciência de execução e a consciência do existir. Dissipa-se, no sujeito enfermo, a consciência de ser ele mesmo o produtor de suas próprias ações e pensamentos e, desse modo, a convicção pessoal de causalidade subjetiva é substituída pela convicção reificada de causalidade objetiva.

A dissolução do patrimônio representativo abstrato do paciente esquizofrênico, que eqüivale à profunda alteração do complexo simbólico correspondente à inteireza da consciência individual aliada à sua reificação e à perda da delimitação subjetiva precisa entre o mundo interior e o exterior, pode dar lugar a outras vivências estranhas e características desse tipo de doença. As representações ideativas que, no homem normal, correspondem às referências importantes relativas a dados de sua biografia, de seu percurso histórico-existencial, enfim, dos eventos axiais que constróem a linha ininterrupta de sua consciência do existir como um ser singular e indivisível é que constituem aquele complexo simbólico responsável pelo sentimento de inteireza da consciência individual. É natural, então, que, quando esse patrimônio representativo abstrato se fragmente, haja, como conseqüência, a irrupção de certas vivências subjetivas estranhas e enigmáticas. Tal é o caso dos fenômenos de desdobramento da personalidade12 que se constituem no exemplo mais marcante e típico da alteração da consciência da unidade do “eu”. De forma semelhante, por vezes constatamos alterações da consciência da identidade do “eu”, com os enfermos muitas vezes acreditando que se transformaram em novas pessoas, que ‘renasceram’ com a doença. Por outro lado, a transferência maciça de conteúdos psíquicos próprios do mundo interno para o espaço subjetivo reservado àqueles do mundo externo ocasiona as vivências originárias da alteração da consciência do “eu” em oposição ao mundo externo, ou seja, o doente se sente indissoluvelmente ligado aos objetos, fenômenos e ocorrências que têm lugar em um espaço fora de si mesmo.

Do ponto de vista clínico, pode-se observar como as transformações radicais da personalidade do doente esquizofrênico se sucedem, muitas vezes, de forma gradual e progressiva. Em muitos casos, os pacientes referem uma etapa de vivência, geralmente acompanhada por um estado subjetivo de expectativa vaga e intensa ou mesmo por uma espécie de perplexidade ansiosa e angustiante povoada por temores imprecisos e suspeitas obscuras, denominada humor delirante difuso. Essa etapa, habitualmente, antecede o período de transformações definitivas das vivências subjetivas sob a forma da eclosão de novas experiências pessoais anômalas que são chamadas de delírio primário e onde tem lugar a implantação definitiva e irreversível da convicção reificada de causalidade objetiva. Podemos dizer que esse estado de transição eqüivale ao comprometimento gradual e progressivo da personalidade do enfermo esquizofrênico caracterizado pelas três alterações psíquicas fundamentais que já citamos e que enumeramos a seguir para facilitar a compreensão:

1. Alteração profunda, ou até dissolução, do patrimônio simbólico representativo pessoal (complexo simbólico correspondente à inteireza da consciência individual), o que ocasiona o comprometimento dos atributos da consciência de execução e da consciência do existir.

2. Perda da delimitação precisa entre os espaços subjetivos destinados a abrigar os conteúdos psíquicos oriundos do mundo interior e do exterior.

3. Reificação do exercício simbólico, ou seja, materialização sensorial da dimensão simbólica abstrata da vida psíquica.

A confluência simultânea dessas três alterações básicas da vida psíquica podem levar à compreensão da natureza mais íntima de todos os sintomas psicopatológicos costumeiramente exibidos pelos pacientes esquizofrênicos e que veremos, com detalhes, a seguir:

KURT SCHNEIDER9 propôs uma classificação desses sintomas que dividiu em dois grupos básicos: sintomas de primeira ordem e de segunda ordem. Pertencem aos sintomas de primeira ordem as seguintes alterações:

· Vivências de influência sobre a corporalidade

- produção ou subtração do pensamento

Fenômenos de intervenção alheia - sentimentos

- ações voluntárias

· Eco do pensamento

· Sonorização do pensamento

· Divulgação do pensamento

· Roubo do pensamento

· Percepções delirantes

· Vozes dialogadas e vozes comentadoras.

Pertencem aos sintomas de segunda ordem os seguintes:

· Inspirações delirantes

· Ocorrências delirantes

· Pseudopercepções restantes

· Perplexidade, estranheza

· Distimias depressiva e eufórica

· Empobrecimento da vida afetiva

É quase desnecessário frisar a importância e a utilidade dessa classificação sintomatológica na prática clínica, embora reconheçamos que o achado de um ou mais sintomas de primeira ordem em um determinado paciente em um primeiro momento do exame, ou mesmo isoladamente, não implica obrigatoriamente o diagnóstico de psicose esquizofrênica. É sabido, por exemplo, que pacientes com doença afetiva podem, perfeitamente, apresentar sintomas similares e daí se torna necessária a observação cuidadosa da evolução clínica da doença e, mesmo, de testes terapêuticos experimentais com o carbonato de lítio.

A respeito disso FROTA - PESSOA10 considera que: “... segundo o DSM - III, pessoas com doença afetiva podem apresentar delírios (inclusive paranóicos, p. 187), alucinações, afrouxamento marcado da associação de idéias, pobreza de pensamento, falta de seqüência lógica no discurso e comportamento bizarro, seriamente desorganizado ou catatônico (p. 340). E isso não constitui raridade, pois, segundo a magistral revisão de POPE e LIPINSKI (1978), de 20% a 50% dos casos de doenças afetivas são acompanhados de manifestações psicóticas como essas, isoladas ou em grupos ...”.

Por outro lado, em sentido inverso, praticamente todos os pacientes acometidos de psicose esquizofrênica apresentam aqueles sintomas de primeira ordem nos períodos agudos da doença. O que, realmente, significa esse fato?

Para começar a responder essa pergunta, teremos que empreender, em primeiro lugar, um estudo detalhado e minucioso de cada um daqueles sintomas psicopatológicos de primeira e segunda ordem de KURT SCHNEIDER9,19, objetivando atingir uma compreensão da natureza íntima dessas vivências subjetivas patológicas. A nossa finalidade é fazer com que o leitor compreenda e entenda por quê, em determinadas circunstâncias nosológicas, os enfermos vivenciam fenômenos subjetivos tão desconcertantes e estranhos para o observador e, à primeira vista, tão afastados da realidade e da experiência cotidiana e do senso comum.

Para iniciar o desenvolvimento teórico que culminará na compreensão desejada, é necessário recapitular, rapidamente, as três alterações psíquicas fundamentais responsáveis pela gênese das vivências subjetivas dos enfermos esquizofrênicos e que estabelecemos há pouco (págs. 09 e 10). Pois bem, naquela ocasião postulamos a terceira alteração psíquica fundamental nos seguintes termos: reificação do exercício simbólico, ou seja, materialização sensorial da dimensão simbólica abstrata da vida psíquica. O que, efetivamente, significa este conceito?

Inicialmente, tentaremos, compreender em que consiste a essência do pensamento normal e quais os processos dinâmicos e interativos que estão envolvidos em sua elaboração. Em uma pessoa normal, podemos dizer que o pensamento é constituído por idéias e representações carregadas de afetos e emoções em constante e contínua operação de integração de natureza indutiva e dedutiva. A enorme diversidade de idéias e representações está, por assim dizer, incrustada em dois eixos diretivos que correspondem, em conjunto, ao sistema total de juízos da realidade. O primeiro eixo eqüivale ao sistema de juízo da realidade subjetiva e o segundo ao sistema de juízos da realidade objetiva. Aquele afere a coerência inteligível da realidade sensível e/ou imaginada oriunda do espaço interno ou subjetivo do indivíduo, enquanto que o último o efetua em relação aos mesmos conteúdos psíquicos interpretados, naturalmente, como vindos do mundo externo. De qualquer maneira, o indivíduo é dotado, através de ação diretiva desses dois grandes sistemas de juízos da realidade, da convicção de que uma determinada idéia é, em última instância, abstrata, simbólica e que um determinado dado sensorial, de forma semelhante, emana da realidade sensível. A convicção subjetiva, isto é, o sentimento de certeza consistente, permanente, irremovível e irrefutável de que se pode, espontânea e naturalmente, diferenciar e discriminar uma idéia abstrata de um dado sensorial e concreto é um atributo fundamental do psiquismo humano, mais precisamente, do psiquismo do homem ocidental. Delineia-se, dessa forma, a convicção pessoal de causalidade subjetiva e de causalidade objetiva. Todos nós sabemos que somos nós mesmos os produtores de determinadas idéias, sentimentos e atos e que ocorrem alguns eventos conosco devido a ações produzidas por outrem, ou seja, devido a fatos engendrados no mundo externo. Nós formulamos juízos a respeito de nós mesmos e dos outros, interpretamos acontecimentos que ocorrem no mundo externo, conceituamos atitudes e objetos, procuramos relações de sentido na diversidade das coisas e dos sentimentos, enfim, situamo-nos no mundo solidamente.

De maneira resumida e simplificada, podemos dizer que o pensamento do homem normal possui essas características. Bem, e em relação ao enfermo esquizofrênico quais seriam as grandes diferenças?

Diremos que o pensamento esquizofrênico é essencialmente reificado, ou seja saturado de uma simbologia concreta, de caráter mágico e animista. Provavelmente, com o processo de desdiferenciação simbólico-afetiva Estamos empregando a palavra desdiferenciação no sentido de desorganização, destruição e transformação caótica da dimensão simbólica e afetiva, o que, efetivamente se constitui, em nosso ponto de vista, na característica básica do processo esquizofrênico e da qual se originam todas as outras alterações psicopatológicas da doença. O prefixo latino ‘des’ quer dizer ‘separação’, ‘transformação’, ‘ação contrária’, ‘negação’ e o termo provém da anatomia-patológica, sendo sinônimo de anaplasia, que equivale a uma modificação regressiva e irreversível profunda das células adultas que adquirem tipos celulares mais primitivos, ou seja, embrionários (a constatação de anaplasia representa o melhor critério para o diagnóstico de malignidade dos tumores). Em nossa opinião, algo semelhante ocorreria com o exercício simbólico e a afetividade do homem normal quando acometido pela doença, isto é, haveria uma modificação regressiva, irreversível e profunda dos processos simbólicos e afetivos superiores do psiquismo e estes adquiririam um caráter ‘embrionário’, filogenticamente primitivo e arcaico, ou seja, essencialmente mágico-animista, que consideramos a característica axial do distúrbio esquizofrênico e cuja causa ainda não conhecemos, emergem algumas modalidades de simbolização filogeneticamente arcaicas que impregnam os processos de integração psíquica superiores do indelével caráter de reificação. Desse modo, os equivalentes instintuais parcialmente simbolizados e aqueles até então interditados de chegar à consciência tornam-se inteiramente reificados e agora chegam até ela revestidos de um caráter mágico-animista. Como conseqüência, o enfermo vivencia subjetivamente os seus desejos e temores mais íntimos e recônditos sob a forma daqueles equivalentes instintuais já citados de maneira concreta e reificada, isto é, como verdadeiramente reais. Por outro lado, a perda da delimitação precisa entre os espaços subjetivos destinados a abrigar os conteúdos psíquicos oriundos do mundo interior e do exterior - que já postulamos como a segunda alteração psíquica fundamental na psicose esquizofrênica - propicia a vivência patológica de atribuir concretamente a outrem aqueles mesmos desejos e temores, fenômeno que a psicanálise denomina ‘projeção’ e que nós chamamos de convicção reificada de causalidade objetiva. Acrescenta-se a isso o fato de que o processo de desdiferenciação simbólico-afetiva induz a sensorialização progressiva daqueles mesmos equivalentes instintuais, o que é vivido pelo doente como um evento real, ou seja, oriundo do mundo externo. Aqui se torna necessária a diferenciação conceitual entre os termos reificação e sensorialização. Entendemos como reificação o caráter peculiar de natureza mágico-animista, ou seja, de simbolismo concreto presente nos juízos de significação delirante quase sempre vinculados às vivências subjetivas anômalas marcadas pela sensorialização dos conteúdos psíquicos abstratos, isto é, simbolizados. A sensorialização e a reificação são conseqüências imediatas e naturais do processo de desdiferenciação simbólico-afetiva e fazem com que as vivências subjetivas sensorializadas sejam experimentadas pelo enfermo como verdadeiramente reais e rigidamente irrefutáveis. Pensamos que o processo de sensorialização dos conteúdos psíquicos abstratos e/ou dos equivalentes instintuais do enfermo é progressivo e varia dentro de um espectro de menor à maior intensidade. Por exemplo, a vivência de difusão do pensamento, quer dizer, a convicção subjetiva experimentada pelo enfermo de que todos conhecem o teor de seu pensamento, deve anteceder as vivências de sonorização e de ‘eco’ do pensamento, desde que estas últimas refletem um maior grau de sensorialização dos conteúdos abstratos. De modo semelhante, as alucinações verdadeiras precedem as pseudo-alucinações porque estas eqüivalem à sensorialização total das representações simbólicas abstratas. Neste ponto, devido a uma certa dubiedade, ao nosso ver, dos conceitos alucinação verdadeira e pseudo-alucinação, teremos que fazer alguns comentários e considerações teóricas muito importantes em relação a esses dois termos. De acordo com JASPERS13, as pseudo-alucinações se diferenciam das percepções e das alucinações autênticas pela falta de corporeidade. O referido autor afirma que deverá ser considerada corpórea toda e qualquer vivência perceptiva originária de estímulos situados no espaço objetivo exterior, mesmo aqueles mais tênues e imprecisos, enquanto as pseudo-alucinações, pelo fato de serem representativas e plásticas, isto é, de serem representadas pelo próprio sujeito, serão percebidas no espaço subjetivo representativo interno. Ora, sabemos que as pseudo-alucinações podem ocorrer em determinados estados subjetivos, inclusive naqueles considerados normais, por exemplo, as pseudo-alucinações percebidas com as pálpebras cerradas e que surgem de maneira altamente variada e opticamente vívida sob a forma de uma enorme diversidade de imagens e figuras situadas em um grande espectro de cores, tons e configurações. Ou mesmo naqueles casos em que há a ‘visualização interna’ de uma certa imagem, resultado de extrema clareza, nitidez e vivacidade do raciocínio e do pensamento representativo. Mas o que quer dizer das pseudo-alucinações dos enfermos esquizofrênicos? Por exemplo, um de meus pacientes, um caso de esquizofrenia hebefreno-paranóide de longo curso de evolução, já em fase de cronificação avançada, insistia que em sua garganta habitavam os ‘espíritos’ de seus avós que lhe faziam zombarias, brincadeiras e o insultavam através de diversas ‘vozes’. Esse paciente apontava repetidamente para o seu pescoço e, em meio a risos imotivados e atoleimados, dizia: “O Sr. Está ouvindo? Eles estão brincando comigo ... São as vozes dos espíritos...”. Após dirigir-se a mim dessa forma, começava a mussitar incessantemente, completamente alheio e indiferente a tudo que o cercava. Eis aqui apenas um dos inúmeros exemplos que são extremamente comuns na clínica psiquiátrica e que se constituiriam em casos demasiadamente longos para que se pudesse descrevê-los com detalhes no momento. No entanto, isso implica que, ao nosso ver, as pseudo-alucinações dos enfermos esquizofrênicos devem diferenciar-se, no ponto de vista conceitual, profundamente daquelas encontradas em outros estados subjetivos, inclusive naquele caso exemplificado por JASPERS-* JASPERS, K. “Escritos Psicopatológicos”, Madrid, Editorial Gredos, 1977 págs. 331 e 332

Entendemos que, apesar da forma das vivências subjetivas relacionadas às pseudo-alucinações ser semelhante nos quadros psicóticos e não psicóticos, a sua natureza é essencialmente distinta em uma e na outra situação. As pseudo-representações detectadas em certas condições subjetivas não psicóticas são o resultado, em nossa opinião, de um pequeno grau de sensorialização de conteúdos psíquicos de caráter mnêmico, enquanto aquelas vivenciadas pelos enfermos esquizofrênicos sob a forma, principalmente, de ‘vozes’ interiores, consistem no produto final do processo de sensorialização total dos conteúdos psíquicos simbolicamente abstratos e/ou de equivalentes instintuais simbolizados do enfermo. Ainda, no primeiro caso, as pseudo-alucinações não estão, de nenhum modo, vinculadas a juízos reificados de significação delirante, enquanto na segunda situação as pseudo-alucinações estão quase que obrigatoriamente adjudicadas a tais juízos. Em virtude disso, pensamos que a adoção dos termos alucinações psico-sensoriais e alucinações psíquicas, criadas por BAILLARGER-**Citado por JASPERS13 , em substituição aos conceitos relativamente ambíguos alucinações verdadeiras e pseudo-alucinações, respectivamente, seria uma resolução satisfatória e útil para o problema, desde que aqueles se adequariam, com maior precisão e rigor descritivos, ao registro fenomenológico das vivência alucinatórias dos enfermos esquizofrênicos. Na verdade, a essência das alucinações psíquicas consistiria na sensorialização e reificação totais daquilo que é denominado por pseudo-alucinação em estados subjetivos não psicóticos. Os termos pseudo-alucinação ou pseudo-percepção ficariam reservados àqueles fenômenos psíquicos não vinculados, em nenhuma hipótese, a juízos reificados de significação delirante. Dessa maneira, poderíamos compreender melhor por que as alucinações psíquicas correspondem à sensorialização total dos conteúdos mentais simbolizados, enquanto nas alucinações psico-sensoriais há, apenas, a sensorialização parcial daqueles. Parece que, no caso das alucinações psico-sensoriais, a delimitação entre o espaço subjetivo destinado a abrigar os conteúdos psíquicos identificados como oriundos do mundo externo e aquele destinado aos do espaço interno ainda não está tão comprometida e imprecisa como, certamente, está nos estágios do processo esquizofrênico onde florescem e se multiplicam as alucinações psíquicas. Com efeito, à medida que a evolução clínica da doença caminha inexoravelmente para uma grave cronificação e deterioração mental, aparentemente há uma progressiva intra-subjetivação do delírio primário, ou seja, a diminuição gradual e significativa da tensão entre o mundo interior e o exterior, agravando-se a integridade do contato vital com a realidade. E, justamente nessa etapa de cronificação da doença é que são mais comuns as constatações clínicas de alucinações psíquicas que os enfermos relatam, principalmente, como ‘vozes’ oriundas do interior da cabeça, nos ouvidos ou em outras regiões do corpo e que costumam tomar a forma de ‘vozes’ dialogantes comentadoras da atividade do enfermo ou que lhe dão ordens, impõem-lhe ações e pensamentos. É importante assinalar que, mesmo nas fases iniciais da doença, o paciente pode vir a apresentar alucinações psíquicas e, em nosso ponto de vista, sustentados pela experiência clínica, isso corresponderia a um mau prognóstico porque tais fenômenos alucinatórios eqüivalem à sensorilização total dos conteúdos psíquicos abstratos. De maneira geral, no início da psicose esquizofrênica, são mais freqüentes as constatações clínicas de sintomas psicopatológicos de KURT SCHNEIDER9,10 relacionados a eventos do mundo externo, tais como consciência de significação vaga, vivência do posto ou do preparado, percepções delirantes, além de alucinações psico-sensoriais, como veremos detalhadamente a seguir. Tal fato está inequivocamente relacionado a uma acentuada tensão entre o mundo interno e externo, no início da doença, e que tende a diminuir progressivamente com a intra-subjetivação do delírio primário, em consonância com a perda do contato vital com a realidade.

Pois bem, em resumo, esperamos que essa breve dissertação tenha esclarecido o nosso conceito de gradação da intensidade de sensorialização das vivências dos enfermos esquizofrênicos e que, certamente, ficará mais claro quando esquematizado graficamente como o que se segue (Fig. 01):


Como podemos notar na figura 01, enumeramos aquelas três alterações psíquicas fundamentais, postuladas nas páginas 09 e 10, responsáveis pela gênese das vivências tipicamente esquizofrênicas e encadeadas na produção das experiência subjetivas sensorializadas dessa enfermidade. Podemos ver que após o fenômeno ‘eco do pensamento’ há uma espécie de ‘bifurcação’. Do lado direito, representamos, graficamente, o processo de sensorialização, somente, levando em primeiro lugar às alucinações psico-sensoriais e, finalmente, às alucinações psíquicas (processo de sensorialização total das representações simbólicas abstratas). Por sua vez, no lado esquerdo do esquema procuramos mostrar como o processo de sensorialização avançada aliado à alteração profunda, ou mesmo à dissolução, do patrimônio simbólico representativo pessoal e, como conseqüência, dos atributos da consciência de execução e da consciência do existir, ocasionam a totalidade das vivências subjetivas de influência dos enfermos esquizofrênicos.

Temos oportunidade de observar, também, de maneira freqüente, na prática da clínica psiquiátrica, um outro tipo de fenômeno relacionado às vivências esquizofrênicas. Em determinadas ocasiões, os pacientes relatam apenas experimentar uma certa vivência subjetiva sensorializada, como as que vimos há pouco, sem, necessariamente, adjudicar algum juízo de significação (juízo interpretativo) a essa mesma vivência. É o que costuma ocorrer no caso daquelas vivências já assinaladas acima, quais sejam, as de difusão do pensamento, sonorização e ‘eco’ do pensamento. O paciente, em muitas ocasiões, apenas vivencia e assiste com enorme perplexidade angustiante, principalmente nas fases iniciais da psicose esquizofrênica, essas experiências subjetivas novas e extremamente atormentadoras sem compreender exatamente o que significam e de onde provêm. Porque o psiquismo, ao experimentar uma vivência essencialmente sensorial, a considerará verdadeiramente real e procurará, forçosamente, a sua fonte de produção no mundo externo. Entretanto, em um bom número de casos, quando indagamos ao paciente sobre esses tipos de vivência, o que ele considera sobre a sua natureza e origem, costuma responder que não sabe o que significam e de onde provêm, mostrando-se atordoado, atônito e perplexo.

Ao contrário, em outras ocasiões - e isso geralmente ocorre na instalação e cristalização definitiva do delírio primário da psicose esquizofrênica - o paciente adjudica, convictamente e sem a menor dúvida, determinados juízos de significação às vivências sensorializadas que experimenta. Assim, por exemplo, se antes da eclosão da doença nutria hostilidade ou ressentimento, consciente ou inconscientemente, em relação ao seu vizinho, agora adquire certeza íntima irrefutável de que aquele o insulta constantemente com palavras de baixo calão e que está ‘roubando’ o seu pensamento por intermédio de uma máquina diabólica e fantástica. Vê-se, com clareza, como o processo de sensorialização de conteúdos psíquicos simbólicos abstratos e de equivalentes instintuais resulta em vivências eminentemente sensorializadas - no exemplo em questão em alucinações psico-sensoriais, sob forma de ‘vozes’ que o enfermo acredita estarem sendo emitidas pelo seu vizinho e que ocupam o espaço subjetivo destinado aos conteúdos psíquicos interpretados como provenientes do mundo externo - que são ‘projetadas’ em uma determinada pessoa situada no espaço exterior. É claro que o mecanismo psicológico da ‘projeção’ é um evento psicodinâmico fisiológico, ocorrendo em condições normais e, predominantemente, em situações de desordens emocionais neuróticas. Entretanto, no caso do enfermo esquizofrênico ele ‘projeta’ conteúdos psíquicos sensorializados no mundo exterior e os vincula a juízos reificados de significação delirante, ou seja, há a transformação qualitativa da convicção pessoal de causalidade subjetiva em convicção reificada de causalidade objetiva, constituindo-se esta última em uma certeza permanente, irremovível, irrefutável e cristalizada - ao contrário das ‘projeções’ plásticas e flexíveis dos neuróticos que, potencialmente, podem elaborar-se, dissipar-se e reverter-se completamente no plano da consciência. Acreditamos que, além das inúmeras ‘projeções’ seletivas que o doente inconscientemente engendra, muitas outras são efetivas de maneira errática e indeterminada, vinculando-se as vivências sensorializadas a juízos reificados de significação delirante direcionados praticamente ao acaso no que se refere a objetos e/ou pessoas situadas no mundo externo. O exemplo mais clássico e chamativo daquelas ‘projeções’ seletivas e que encontramos freqüentemente na clínica psiquiátrica cotidiana refere-se às figuras parentais do enfermo. É extremamente comum que este desenvolva um ódio aparentemente inexplicável e acentuado por um de seus pais, ou mesmo por ambos, o que algumas vezes, resulta em conseqüências trágicas e que pode ser explicado pela sensorialização de equivalente instintuais agressivos dirigidos àqueles e que se vinculam a juízos reificados de significação delirante. Como o leitor pode notar preferimos, pelo fato de ser mais preciso, o último termo em substituição ao clássico e tradicional ‘idéia delirante’.

Pois bem, quanto aos tipos de vivência subjetiva sensorializada podemos classificá-los, basicamente, em duas categorias distintas:

1. Vivências subjetivas sensorializadas absolutas: são vivências subjetivas sensorializadas não acompanhadas de juízos reificados de significação delirante, isto é, as vivências sensorializadas ocupam, por si, somente, o lugar da experiência imediata. Por exemplo, o paciente relata estar ‘ouvindo’ o seu pensamento (sonorização do pensamento), mas não atribui nenhuma causa ou motivo para isso, não consegue compreender a estranheza da experiência subjetiva, mostrando-se perplexo, surpreso e atônito.

2. Vivências subjetivas sensorializadas relativas: são vivências subjetivas sensorializadas e que são acompanhadas e vinculadas, necessariamente, a um ou mais juízos reificados de significação delirante, isto é, o lugar da experiência imediata é ocupado por uma vivência composta por dois membros, o componente sensorializado e o(s) juízo(s) reificado(s) de significação delirante intimamente relacionado(s) a ele mesmo. Por exemplo, o doente crê, convictamente, que há um aparelho eletrônico instalado em lugar determinado e que está impondo ou ‘roubando’ o seu pensamento. Naturalmente, o enfermo, de maneira geral, quando adjudica à vivência sensorializada um juízo reificado de significação delirante costuma mostrar-se mais tranqüilo porque, nesse momento, constrói um nexo inteligível que se inscreve no interior de sua lógica fantástica, tornando-se inteiramente verossímil para ele mesmo.

Em terceiro lugar, examinando atentamente os sintomas psicopatológicos de primeira e segunda ordem de KURT SCHNEIDER9 , observamos que, em relação a eventos do mundo externo, todos esses sintomas podem ser agrupados em duas classes de fenômenos distintos: 1 - sintomas psicopatológicos estritamente relacionados a eventos do mundo externo e 2 - sintomas psicopatológicos não relacionados a eventos do mundo externo.

No primeiro caso, um estímulo externo, uma determinada circunstância situacional, enfim, uma vivência perceptiva ou um grupo encadeado de percepções deflagram um ou mais juízos reificados de significação delirante intimamente relacionados e intrinsicamente vinculados àqueles, enquanto, no segundo caso, uma vivência sensorializada passa a ocupar o espaço subjetivo destinado a abrigar os conteúdos psíquicos oriundos do mundo exterior, ou seja, é ‘projetada’, misturando-se e revestindo os objetos situados no espaço externo, podendo ou não, como já vimos, vincular-se a juízos reificados de significação delirante diretamente relacionados a esses mesmos objetos.

Pertencem à primeira classe de fenômenos os seguintes: vivência de significação vaga, vivência do posto ou do preparado e as percepções delirantes.

Incluem-se na segunda categoria de fenômenos a difusão do pensamento, a produção ou ‘roubo’ do pensamento, as vivências de influência sobre a corporalidade, sentimentos e ações, as alucinações psico-sensoriais e alucinações psíquicas.

Pode-se notar, com clareza, a gradual transição no que se refere ao grau de reificação - resultante do processo de desdiferenciação simbólico-afetiva - dos juízos de significação delirante em consonância com o aumento da convicção íntima, por parte do enfermo, quanto à verossimilhança da vivência nos sintomas do primeiro grupo, ou seja, aqueles relacionados a eventos do mundo externo.

Por outro lado, no que se refere aos sintomas psicopatológicos não relacionados aos eventos do mundo externo, a ordem hierárquica das vivências sensorializadas, como foi colocada acima, corresponde ao espectro da gradação progressiva da intensidade de sensorialização resultante do processo de desdiferenciação simbólico-afetiva.

Como já vimos e dissertamos suficientemente a respeito dos sintomas psicopatológicos não relacionados a eventos do mundo externo, isto é, as vivências subjetivas sensorializadas, nos ocuparemos, a seguir, daqueles sintomas psicopatológicos estritamente relacionados a eventos do mundo externo.

A vivência de significação vaga, que costuma surgir na etapa do humor delirante difuso, refere-se a uma impressão subjetiva embebida de extrema expectativa ansiosa, indefinida, imprecisa e nebulosa que se instaura sobre um fundo auto-referencial significativo. Tudo parece convergir em direção ao enfermo, gestos, olhares, expressões faciais adquirem um tom especial, singular e vagamente ameaçador. Diálogos entre duas pessoas desconhecidas e vislumbrados à distância pelo paciente transformam-se em murmúrios e sussuros audíveis sob a forma de comentários vagamente desabonadores a seu respeito; por vezes parece ouvir, nitidamente, uma palavra insultuosa em tom de zombaria insolente que lhe é dirigida por uma fonte imprecisa e indeterminada. Simultaneamente, é tomado, de modo súbito, pela convicção de que todos estão percebendo o conteúdo de seu pensamento de uma forma inexplicável e angustiosamente intrigante e, vez por outra, vivencia a experiência insólita de que está ‘ouvindo’ o seu próprio pensamento. Um passo a mais, na vivência do posto ou do preparado, o enfermo, ao chegar em determinado lugar, por exemplo, é dominado, imediatamente, pela abrupta e irrefutável certeza de que determinadas pessoas e/ou objetos estão intencionalmente colocados e dispostos com uma finalidade malévola e inequivocamente declarada em relação a ele, enfim, tudo no mundo exterior, se move e se configura de uma forma intencional e preparada. O acaso e o inesperado do cotidiano comum e trivial convertem-se em fatos e ações carregados de unívoca e singular intencionalidade e de propósito enigmaticamente voluntário relacionados a ele mesmo. A etapa seguinte de acentuação máxima de reificação dos juízos de significação delirante deflagrados por eventos do mundo externo corresponde à percepção delirante. Nesse caso, os juízos reificados de significação delirante alcançam o grau máximo no que se refere à convicção íntima quanto à verossimilhança da vivência experimentada pelo enfermo. Por exemplo, uma chamada telefônica significa, para o paciente, que é um sinal e um aviso de que será assassinado.

Podemos observar que, à semelhança dos sintomas psicopatológicos de KURT SCHNEIDER estritamente relacionados a eventos do mundo externo, quais sejam, consciência de significação vaga, vivência do posto ou do preparado e percepções delirantes, os juízos reificados de significação delirante - de maneira análoga àquela gradação de intensidade das vivências sensorializadas pertencentes ao grupo de fenômenos não relacionados a eventos do mundo externo - percorrem um espectro de gradação ascendente no que se refere à intensidade da convicção íntima, por parte do enfermo, quanto à verossimilhança da vivência. Dito de outro modo, parece que quanto maior é a intensidade de reificação dos juízos de significação delirante, por exemplo, nas percepções delirantes, mais cristalizada se torna a convicção íntima do paciente quanto à verossimilhança da vivência experimentada.

Tudo o que dissemos, até aqui, poderá ficar bem mais compreensível se for esquematizado graficamente como o que se segue (Fig. 02).

Fig. 02

Como podemos notar na representação esquemática da figura 02, a classificação final que estamos propondo para os fenômenos de primeira ordem de KURT SCHNEIDER implica seu inter-relacionamento dinâmico com as suas três características básicas, que dizer, vinculação ou não a eventos do mundo externo, intensidade gradativa de sensorialização das vivências subjetivas sensorializadas e adjudicação ou não de juízos reificados de significação delirante a essas mesmas vivências. No caso dos sintomas psicopatológicos não relacionados a eventos do mundo externo, observamos que esses sintomas correspondem àquelas vivências subjetivas sensorializadas já representadas esquematicamente com bastante detalhes na figura 01. Quanto aos sintomas psicopatológicos estritamente relacionados a eventos do mundo externo, constatamos que esses fenômenos correspondem, exclusivamente, aos juízos reificados de significação delirante e, ainda, quanto maior é o grau de reificação presente nesses juízos, mais forte, poderosa e irrefutável se torna a convicção íntima, por parte do enfermo, da verossimilhança das vivências subjetivas anômalas experimentadas.

III. AS PSICOSES AFETIVAS

No que se refere à doença afetiva, temos que observar o aspecto da apresentação clínica das fases depressivas ou maníacas, considerando algumas proposições téoricas que podem trazer a compreensão em relação aos fenômenos subjetivos estudados, além de estabelecer algumas analogias e diferenças importantes com a psicose esquizofrênica.

Na doença afetiva, parece que o transtorno psíquico fundamental sempre presente em todas as suas condições clínicas consiste em uma elevação ou em um descenso quantitativamente anormal do fundo endotímico-vital do enfermo. Podemos dizer que esse fundo consiste em uma atividade basal que permeia o conjunto dos processos encadeadores da vida mental, desde os mais primitivos até aqueles superiores e mais elaborados, concedendo-lhes completa inteireza e plenitude de funcionalidade. Quando, em condições patológicas, ocorre uma queda significativa da intensidade dessa atividade basal, parece haver, como conseqüência, uma diminuição da funcionalidade inerente a todos os processos encadeadores da vida psíquica, ocasionando uma lentificação anormal do ritmo de sua efetivação. Isso provoca uma diminuição do grau de turgescência tensional, fisiologicamente necessária para a manutenção da plena funcionalidade das estruturas psíquicas em geral e, como resultado, aquelas mais recentes filogeneticamente diminuem a sua inibição sobre as mais antigas. Tal fato, por sua vez, propicia a infiltração de certas modalidades de simbolização arcaicas e de caráter reificado nas estruturas psíquicas dominantes, impregnando as vivências cotidianas do enfermo melancólico.

A clássica trilogia clínico-fenomenológica9 constituída por idéias deliróides de ruína, de culpa e/ou hipocondríacas, invariavelmente presente na melancolia e sempre detectada, isoladamente ou em conjunto, se constitui no achado semiológico praticamente patognômico dessa condição nosológica. Na verdade, e já tivemos oportunidade de discorrer sobre isso em outra parte, consideramos que os elementos constitutivos dessa tríade emanam de uma vivência subjetiva mais profunda que denominamos convicção reificada de iminência de consumação do evento trágico. Caso a intensidade do quadro depressivo se acentue sobremaneira, o enfermo experimentará a convicção reificada de consumação do evento trágico, isto é, não mais como uma simples e ameaçadora iminência, mas sim como algo catastrófico que efetivamente se abateu e se consumou irreversivelmente sobre si mesmo e do qual não pode mais escapar. Um passo a mais e nos depararemos com os estados de estupor melancólico que correspondem, sem dúvida, aos graus mais acentuados de descenso do fundo endotímico-vital, sendo acompanhados daqueles conhecidos sintomas dramáticos e que refletem toda a gravidade do quadro.

Podemos vislumbrar, dessa maneira, um espectro de transição correspondente ao grau ascendente de convicção íntima quanto à verossimilhança da vivência, por parte do enfermo que será tanto maior quanto mais acentuado for o grau de descenso do fundo endotímico-vital. Nesse caso, devemos denominar esse tipo de vivência subjetiva anômala como juízos reificados de significação deliróide, visto que o caráter de reificação de tais juízos é secundário ao transtorno primário do humor, ao contrário das psicoses esquizofrênicas onde o caráter de reificação das vivências é resultante, exclusivamente, do processo primário de desdiferenciação simbólico-afetiva, como já vimos. Entretanto, de maneira semelhante às psicoses esquizofrênicas, na melancolia observamos que quanto maior for o grau de reificação dos juízos de significação deliróide, mais consistente e sólida se tornará a convicção íntima do doente quanto à verossimilhança da vivência experimentada. Inicialmente, os doentes queixam-se de sensação de fadiga e mal estar generalizado que costuma melhorar um pouco com o passar do dia, além de insônia terminal, simultaneamente com o surgimento de pressentimentos catastróficos vagos, idéias de ruína passageiras enxertadas em uma visão de mundo pessimista e acabrunhada. Com o agravamento do quadro depressivo, os pressentimentos desastrosos se vão convertendo, imperceptivelmente, em certezas íntimas de acontecimentos ruinosos e trágicos, o pessimismo transforma-se em um completo niilismo e a desesperança em um abatimento desconsolado e prostrado. O enfermo torna-se taciturno, calado, inerte e, não raro, os juízos reificados de significação deliróide de culpa ruína ou de enfermidade tomam a forma de fenômenos obsessivos com interações ideativas monotemáticas, repetitivas e persistentes. O doente se vê mergulhado em suas tormentosas convicções íntimas, absorto em suas infindáveis auto-condenações ou à espera de funesto destino terrivelmente certo para ele, ensimesmado e inconsolavelmente desalentado. Em fases intermediárias da doença, o melancólico também costuma relatar um ‘sentimento de falta de sentimento’, considerando-se incapaz de experimentar alegria ou tristeza, achando-se indiferente e insensível. Nas fases avançadas, costuma transmitir ao observador uma impressão de desconsolo frio e desvitalizado, uma espécie de obstinação vazia e mecânica às convicções irrefutáveis de culpa e de ruína, uma inércia e resistência absolutamente irremovíveis por qualquer tipo de convencimento, conforto ou persuasão. As dúvidas e escrúpulos de natureza moral podem transformar-se, no interior das vivências subjetivas do enfermo melancólico, em convicções reificadas de realização de atos malévolos e lesivos para com as outras pessoas. O paciente passa a viver em um mundo de niilismo reificado, com os seus medos e temores se lhe tornando nitidamente sensoriais, as suas apreensões se transformando em auto-acusações convictas e inquestionáveis. Tudo isso ocorre, provavelmente, porque os seus equivalentes instintuais amorfos e proibidos, agora com uma tensão de descarga para o meio ambiente bastante diminuída devido à queda significativa da atividade basal do fundo endotímico, se revelam reificadamente para o próprio indivíduo e procuram satisfazer-se nele mesmo, preservado que está o caráter de execução da atividade da consciência individual. Assim, o enfermo melancólico se defronta, face a face, com os seus próprios equivalentes instintuais que, por força do descenso do fundo endotímico-vital, se tornam reificados sob o aspecto formal de vivências de culpa, prejuízo e de iminência catastrófica, isto é, com conteúdos essencialmente negativos e centrados nele mesmo. Os pressentimentos supersticiosos e trágicos, certamente, transformam-se na convicção reificada de iminência catastrófica e, no caso das auto-acusações objetivamente infundadas, podemos supor que a descarga dos equivalentes instintuais no próprio indivíduo se faz formalmente camuflada na vivência reificada de culpa. Dessa maneira, ambas convicções subjetivas reificadas expressam um movimento instintual autodestrutivo maciço que, efetivamente, não cessará até a consumpção verdadeira do enfermo, seja ela realizada de modo reificadamente imaginário sob a forma dessas convicções subjetivas de cunho mágico ou mesmo de modo tragicamente real, através de seu auto-extermíno. Podemos afirmar que a vivência da convicção reificada de ameaça e destruição efetuada pelo outro, própria do mundo esquizofrênico, é substituída pela vivência da convicção reificada de culpa e de iminência de consumação do evento trágico, característica fenomenológica axial do mundo melancólico. Também aqui, os juízos de significação deliróide estão embebidos e saturados do caráter peculiar de natureza mágico animista, de simbolismo concreto, isto é, de reificação e, por isso mesmo, emanam de experiências pessoais centradas em convicções subjetivas reificadas, sendo que quanto maior for o grau de reificação desses juízos mais acentuada será a convicção íntima do enfermo em relação à verossimilhança das vivências.

Em certas formas clínicas ou em estágios medianamente agravados da melancolia, podem advir, também, vivências subjetivas sensorializadas, principalmente sob a forma de alucinações auditivas psico-sensoriais e, muito raramente, alucinações psíquicas. Da mesma maneira, podem surgir, esporadicamente, em alguns casos, outras vivências subjetivas sensorializadas tais como difusão do pensamento ou sonorização do pensamento. Entretanto, em nossa experiência clínica, observamos que são mais freqüentes as vivências subjetivas anômalas com baixa intensidade de sensorialização (vide fig. 01, pág.20), sendo extremamente raras aquelas com acentuado grau de sensorialização como, por exemplo, as vivências de influência, no caso quase que exclusivamente características e restritas à psicose esquizofrênica. Tal fato pode ser compreendido levando-se em conta que a experiência subjetiva das vivências de influência depende da sensorialização dos contéudos psíquicos abstratos aliada à alteração profunda do patrimônio simbólico representativo pessoal, ou seja, o comprometimento da inteireza da consciência individual (vide fig. 01), o que não ocorre, pelo menos em princípio, na melancolia. Todavia, em graus extremos de descenso do fundo endotímico-vital, podemos supor, do ponto de vista teórico, que haja uma convicção subjetiva reificada de aniquilamento pessoal, o que, ao menos nos estágios iniciais de vivência, poderia propiciar experiências subjetivas de influência formalmente próximas daquelas vivenciadas habitualmente por enfermos esquizofrênicos. De qualquer maneira, as vivências subjetivas sensorializadas não se constituem, definitivamente, em sintomas típicos dos quadros melancólicos, apesar de seu achado na clínica não ser incomum. Deve-se assinalar, no que se refere a isso, que em muitas ocasiões os pacientes melancólicos com formas clínicas graves da doença ou em estágios avançados da enfermidade relatam vivências subjetivas sensorializadas compatíveis com alucinações cenestésicas ou cinestésicas com a adjudicação de juízos reificados de significação deliróide relacionados a deterioração ou negação corporais. Provavelmente, esses juízos deliróides - que podem apresentar-se isoladamente, sem a presença daquelas alucinações - emanam daquela vivência subjetiva que eqüivale à convicção reificada de aniquilamento pessoal. Nessas condições, os enfermos acreditam, por exemplo, que não existem mais, que não têm corpo ou que não possuem mais vísceras, que estão apodrecendo, etc.

Ao contrário, os sintomas psicopatológicos estritamente relacionados a eventos do mundo externo (vide fig. 02, pág. 28), tais como vivências de significação vaga, do posto ou do preparado e percepções delirantes podem ser detectados com alguma freqüência em pacientes melancólicos. Entretanto, de maneira geral, os enfermos melancólicos relatam essas vivências subjetivas imersos em um estado de ânimo de taciturnidade grave e severa, por vezes com um colorido de surpresa ou mesmo de perplexidade, mergulhados e absortos que estão em suas infindáveis e obsessivas convicções reificadas de culpa ou de ruína. Não há a disforia, a inadequação e a incongruência que, invariavelmente, marcam de modo definitivo a afetividade do enfermo esquizofrênico. Essas observações clínicas vêm confirmar a nossa hipótese teórica de que as vivências subjetivas sensorializadas e os juízos reificados de significação delirante dos pacientes esquizofrênicos são produto direto do processo de desdiferenciação simbólico-afetiva que acomete a vida psíquica nessa enfermidade, enquanto aquelas vivências de sensorialização e os juízos reificados de significação deliróide dos melancólicos são conseqüências secundárias do descenso do fundo endotímico-vital, sendo, por isso mesmo, potencialmente reversíveis e benignas do ponto de vista evolutivo. É claro que o leitor está percebendo que, em relação à melancolia, o que foi dito há pouco não consiste em nenhuma novidade, porém deve ter notado uma inscrição teórica de nexo inteligível novo e inédito no que se refere à compreensão conceitual da natureza íntima das vivências subjetivas, tanto dos melancólicos como também dos esquizofrênicos. E é isso o que realmente nos interessa: que o clínico consiga pensar a respeito dos relatos das vivências anômalas dos enfermos e situá-los conceitualmente em um arcobouço teórico satisfatoriamente convincente e plausível.

Nas fases maníacas da doença afetiva sempre se pode supor uma elevação excessiva, em diversos níveis de gradação, do fundo endotímico-vital ocasionando aqueles sintomas típicos da doença como, por exemplo, taquipsiquismo, fugas de idéia, um estado de ânimo eufórico, ou mesmo divertidamente exaltado, otimismo exagerado, aumento demasiado da disposição física, jogos de palavras e atitudes com um tom jocoso, zombeteiro e brincalhão. Em algumas formas clínicas da doença, catologadas sob o termo mania iracunda9 , o estado de ânimo pode tornar-se instavelmente irritável, bastante exaltado ou francamente colérico e enfurecido, caracterizando quadros pautados por intensa agitação psicomotora e hetero-agressividade. Outros sintomas típicos da doença consistem em insônia, por vezes total, prodigalidade excessiva, dissipação, aumento variável da atividade sexual e vivências subjetivas correspondentes a expectativas onipotentes das realizações existenciais, com o enfermo, em todos os casos, valorizando exageradamente suas aptidões e características pessoais e com uma visão pragmática do mundo anormalmente otimista e ingenuamente arrojada.

É importante assinalar que as constituições caracterológicas hipertímicas típicas exibem um comportamento habitual centrado em um estado de ânimo naturalmente otimista, realizador, pragmático e superficial, costumando mostrar-se como pessoas muito ativas, empreendedoras e voltadas, essencialmente, para o prático e o imediato. Esses indivíduos simplesmente são assim e agem de acordo com as suas potencialidades constitucionais de reação, não havendo, normalmente, dificuldades no que se refere ao intercâmbio humano e social. Ao contrário, de modo geral, apresentam-se como pessoas muito sociáveis, comunicativas e afáveis apesar de, às vezes, expressarem temperamento irritável, excitável, querelante e exigente. Aparentemente, segundo nossa experiência clínica, essas constituições caracterológicas teriam maior predisposição para apresentar oscilações bruscas do humor (ciclotimia), sob a forma de fases depressivas agudas e, eventualmente, episódios de hipomania. De acordo com nossa observação clínica, esses episódios de hipomania se caracterizam por elevação discreta do estado de ânimo do indivíduo, ocasionando uma certa acentuação e exacerbação transitórias daqueles traços constitucionais típicos sem que, no entanto, resulte em inadequação ou desadaptação sociais. Geralmente, esses estados transitórios têm curso clínico favorável e benigno, além de apresentarem, de modo habitual, remissão espontânea. Clinicamente, correspondem, por exemplo, a períodos nos quais os indivíduos se mostram extraordinariamente empreendedores e dinâmicos, fazendo muitos negócios, elaborando vários planos de trabalho, viajando muito, demonstrando pequena necessidade de sono, exibindo invejável disposição física e sendo capazes de realizar, satisfatoriamente ou mesmo com êxito, várias tarefas de modo rápido e quase simultâneo.

Alguns políticos importantes, empresários bem sucedidos, assim como executivos de renome e com muito sucesso na profissão são alguns bons exemplos dessas constituições caracterológicas hipertímicas típicas sujeitas a fases de hipomania duradouras e existencialmente densas e produtivas.

Por outro lado, os pacientes acometidos por fases maníacas apresentam, como característica fundamental, uma nítida inadequação e desadaptação sociais, pelo menos enquanto durarem as suas fases. Habitualmente, apresentam uma excitação generalizada e difusa, muitas vezes sob a forma de uma exaltação tosca e grosseira, ou mesmo de uma euforia insípida e esvaziada. Não podemos designar esses estados de ânimo como alegria, simplesmente porque faltam aquelas modulações afetivas mais refinadas e aprimoradas que conferem consistência harmônica e plástica ao humor e que lhe concedem gradações qualitativas capazes de ir, elasticamente, do pólo da serenidade ao paroxismo, ao mesmo tempo em que há a apreensão aguda e sagaz do conteúdo inesperadamente divertido e malicioso ou daquele sutilmente jocoso, hilariante e cômico. O que há no paciente maníaco não é, de nenhum modo, um delicado movimento de perspicácia zombeteira, mas sim de exaltação grotesca e caricatamente burlesca sob a forma de jogos de palavras ou brincadeiras que se sucedem quase mecanicamente com um tom esvaziado e inconsistente. Parece que o maníaco, na verdade, não está preocupado com o efeito que suas brincadeiras e jogos produzem na platéia, nos outros, mas, somente, em si mesmo, em uma espécie de movimento eufórico maciço, obsessivo, obstinado e inescapável centrado nele, unicamente. Podemos falar de uma vivência eufórica reificada, constantemente paroxística e interminável, entremeando e saturando os jogos de palavras encetados pelo enfermo com um franco tom de simbolismo concreto. Com efeito, as associações e correlações semânticas das palavras e frases apresentam um aspecto reificado que só não é mais característico devido à sua fugacidade decorrente da extrema rapidez com que são realizadas. Dessa maneira, a convicção reificada de iminência ou de consumação do evento catastrófico, vivência fundamental do mundo melancólico, dotada de uma densidade e de uma corporalidade de reificação caracteristicamente grave, severa e trágica, contrapõe-se e contrasta extraordinariamente com a vivência eufórica reificada do enfermo maníaco, por sua vez dotada de um acentuado caráter de leveza, fugacidade e volatilidade de reificação.

Os juízos reificados de significação deliróide nas fases maníacas também apresentam, de maneira semelhante àquelas das fases melancólicas, diversos graus de reificação diretamente proporcionais à convicção íntima, por parte do enfermo, da verossimilhança das vivências experimentadas. Grosso modo, podemos dizer que quanto maior for o grau de elevação do fundo endotímico-vital, maior será a intensidade de reificação desses juízos, fortalecendo-se, sobremaneira, a crença íntima do enfermo em relação a essas vivências subjetivas. Como dissemos há pouco, o paciente maníaco vive em uma realidade subjetiva de constante exaltação, de uma otimismo exagerado e desmesurado, em uma espécie de rigidez eufórica e poderosa influência e controle sobre as coisas do mundo acompanhadas de tons de jactância, de fanfarronice brincalhona, impaciente ou irritável. As convicções de que, por exemplo, é capaz de fazer negócios orçados em valores exorbitantes, de conseguir ocupar cargos ou postos normalmente inatingíveis, de usufruir, poderosa e decisivamente, altas instâncias governamentais, são, inequivocamente, convicções reificadas de realização saturadas de um cunho mágico e objetivamente desproposital. Desse modo, a euforia persistente, inesgotável e reificada induz, diretamente, o surgimento de convicções subjetivas reificadas de realização existencial que correspondem à efetivação concreta, em nível imaginário, dos desejos e expectativas grandiosas e onipotentes que o enfermo nutre em relação ao mundo. Em muitas ocasiões, a impregnação acentuada dos juízos deliróides de significação do doente maníaco pelo componente mágico-animista (reificação), pode levar a enganos e equívocos diagnósticos. Sabe-se que, em certos casos, as fases maníacas podem vir acompanhadas de sintomas psicopatológicos característicos das psicoses esquizofrênicas tais como vivências subjetivas sensorializadas e de influência. É razoável supor que uma grande elevação do fundo endotímico-vital propicie o deslocamento de modalidades de simbolização filogeneticamente arcaicas que passam, então, a colorir e saturar as vivências subjetivas dos enfermos maníacos. Isso esclareceria o fato de se detectarem, eventualmente, vivências alucinatórias e sensorializadas em certas formas clínicas de fases maníacas, embora sejam extremamente raras a vivências de influência, à semelhança do que ocorre nos quadros melancólicos. Quando essas vivências são constatadas nos maníacos, geralmente se apresentam ao observador com um aspecto atípico e descaracterizado, justapostas a convicções reificadas de enormidade e de grandeza, ao contrário do clima subjetivo de perplexidade, gravidade e de sofrimento presente nos quadros melancólicos ou daquele francamente incongruente dos esquizofrênicos. Parece que os sintomas psicopatológicos estritamente relacionados ao mundo externo tais como vivência de significação vaga, do posto ou do preparado e percepções delirantes (vide fig. 02, pág. 28) são bem menos comuns na mania do que as vivências subjetivas sensorializadas. Na verdade, o paciente maníaco não se sente ameaçado pelas coisas do mundo e, muito menos, sucumbe no interior de qualquer espasmo reflexivo de desconfiança ou de autocondenação mas, pelo contrário, exibe uma disposição existencial básica que, ao menos em princípio, se caracteriza pelo arrojo, desassombro, temeridade e domínio, ou seja, é impulsionado por um movimento existencial francamente expansivo.

Entretanto, em muitas ocasiões, o clínico poderá defrontar-se com um impasse diagnóstico, principalmente quando detectar algumas vivências sensorializadas alucinatórias e de influência ao lado de juízos de significação deliróide com acentuado grau de reificação, e daí com elevada convicção íntima do enfermo relacionados, por exemplo, a temas de grandeza e enormidade. Como resolver a questão? Como diferenciar esses quadros maníacos, nos quais a acentuada reificação dos juízos de significação deliróide induz no observador um profundo sentimento de estranheza, dos quadros psicóticos esquizofrênicos?

Em primeiro lugar, o médico deverá observar, atentamente, a evolução clínica da doença, valorizando, por exemplo, a periodicidade fásica da irrupção dos quadros maníacos e/ou melancólicos nos casos de doença afetiva, estabelecendo se a forma clínica é uni ou bipolar, enquanto na psicose esquizofrênica poderá caracterizar o surgimento de sintomatologia aguda através da evolução por brotos psicóticos típicos. Cabe neste momento, objetivando apurar ao máximo os conhecimentos semiológicos do leitor, discorrer um pouco sobre a evolução clínica da esquizofrenia e compará-la a certos aspectos do transcurso da doença afetiva.

Provavelmente, a psicose esquizofrênica - e o nosso protótipo são as formas hebefrênica e paranóide da doença* com curso clínico bastante desfavorável, desembocando em uma deterioração mental (cronificação) irreversível a curto ou médio prazo, sendo que os tratamentos psico-farmacológico e biológico não são capazes de alterar decisivamente esse prognóstico, podendo somente e no máximo, abrandar e atenuar a sintomatologia produtiva dos brotos psicóticos agudos e/ou aumentar a duração dos períodos intercríticos - consiste em uma unidade clínica relativamente autônoma e com características próprias.

É extremamente importante o fato de que, no que se refere aos brotos psicóticos agudos dessas formas clínicas, mesmo quando conseguimos obter, através do tratamento, a remissão completa da sintomatologia produtiva dessas etapas de reacutização processual, os pacientes ainda assim demonstrarão um nítido comprometimento afetivo que variará em grau de intensidade de acordo com a gravidade de cada caso. Assim, muitas vezes, observamos nos pacientes acometidos pelas formas clínicas mais graves da doença um defeito processual caracterizado por um comportamento marcado indelevelmente por uma puerilidade tosca e grosseira e por uma espécie de esvaziamento afetivo que confere às suas atitudes em tom atoleimado e parvo. Em outras ocasiões observamos um comportamento inadequado e irremediavelmente extravagante, ensimesmado e apragmático alternado com atos esdrúxulos e incoerentes desenvolvendo-se sobre um fundo afetivo que sugere sério esvaziamento e empobrecimento de sua densidade e um evidente comprometimento de sua integridade. Em alguns casos detectamos uma evolução clínica extremamente desfavorável e grave, com os pacientes completamente alheios e indiferentes a tudo o que se passa ao seu redor, mostrando-se totalmente apáticos e desinteressados e, em algumas ocasiões, apresentando risos imotivados, mussitações, em um verdadeira ruína psíquica. Esses pacientes, sem dúvida, perdem irreversivelmente a capacidade de efetivar uma integração simbólica em níveis mais elaborados e elevados em consonância com os estágios correspondentes de diferenciação afetiva mais aprimorados e complexos. O resultado disso é a diminuição acentuada ou, mesmo, um verdadeiro déficit da atuação e do desempenho desses pacientes em todas as áreas de produção, atividade e relacionamento humano. Podemos dizer, então, que o verdadeiro processo psíquico no rigoroso sentido jasperiano corresponde à eclosão de uma acentuada desdiferenciação simbólico-afetiva progressiva da vida psíquica do enfermo e que culminará em uma definitiva incapacitação funcional e em uma destruição da potencialidade de efetivar as suas múltiplas alternativas existenciais.

Ao contrário, os pacientes portadores de doença afetiva e que, principalmente, na fase maníaca apresentam sintomas psicopatológicos aproximadamente semelhantes aos dos brotos psicóticos de pacientes esquizofrênicos não costumam apresentar, após a remissão da sintomatologia aguda, comprometimento irreversível da afetividade e do exercício simbólico normal. Dissemos que certos pacientes com doença afetiva apresentam sintomas psicopatológicos aproximadamente semelhantes aos dos brotos psicóticos de pacientes esquizofrênicos porque, diante de evidências sucessivas em nossa observação clínica, concluímos que aqueles não demonstram, com inequívoca clareza fenomenológica, as vivências patológicas subjetivas chamativas e tão conhecidas dos últimos. Em outras palavras, as vivências subjetivas de influência, por exemplo, expressos por pacientes com doença afetiva, carecem de absoluta e irremovível convicção pessoal, de constância e de solidez no que se refere à certeza individual de causalidade objetiva. A intensidade da convicção subjetiva quanto à clareza da causalidade objetiva da ‘influências’ é um tanto fluida e frouxa e entremeada, na maioria dos casos, de um tom afetivo algo descompromissado e jocoso e, além disso, divertido, ágil, acalorado e fluente, ao contrário do clima subjetivo esquizofrênico, taciturno, sombrio, frio, rígido e enigmaticamente inexplicável.

Por outro lado, a diferenciação fenomenológica tradicional entre forma e conteúdo12 das vivências subjetivas estudadas é o ponto teórico fundamental capaz de esclarecer dúvidas diagnósticas. Por exemplo, uma constituição caracterológica com traços acentuados de fanatismo religioso e que afirma, convictamente, ter contato direto com Deus transmite ao observador uma impressão tão peculiar que este último, provavelmente, concluirá, em termos diagnósticos, por um desenvolvimento paranóide. Em outro caso, um paciente portador de doença afetiva e em franca fase maníaca, loquaz e taquipsíquico, que invoca acaloradamente a Divindade como inspiradora de seus atos e pensamentos embebidos de um tom de grandiloqüência e enormidade, induz, no observador, uma nítida impressão de que essas vivências estão centradas em um humor anormalmente elevado. Por último, um comportamento excessivamente místico de início súbito, com um colorido extravagante e com um aspecto completamente dissociado do senso-comum, inspirará, no observador, um sentimento de profunda estranheza, o que o levará a colocar essa vivência no espaço diagnóstico reservado à psicose esquizofrênica. Podemos ver com clareza, através desses exemplos, que o conteúdo místico-religioso é comum a todas essas vivências subjetivas, mas a forma de surgimento é totalmente distinta nos três casos descritos.

IV. O PROBLEMA DAS PSICOSES ATÍPICAS

As psicoses atípicas são, freqüentemente, motivo de controvérsia teórico-clínica bastante conflitante entre os diversos autores. Infelizmente, isso se reflete diretamente na atropelada opinião diagnóstica do clínico comum que, ou por falta de conhecimento semiológico suficiente ou por força da urgência terapêutica que a própria gravidade do quadro impõe, geralmente não possui uma certeza diagnóstica segura que lhe permita estabelecer um tratamento adequado desde o início da eclosão dos sintomas. Essa controvérsia, por seu turno, é resultado das várias experiências e tentativas isoladas de pesquisadores que se dedicam ao reagrupamento de diversos quadros clínicos fundamentados somente, ao que parece, em enfoques empírico-estatísticos particulares, por exemplo, tomando como parâmetro de referência as diversas repostas terapêuticas, mas negligenciando, em nosso ponto de vista, de criação e da renovação teórico-conceitual. Com efeito, essa espécie de vazio de novos princípios teórico-conceituais propicia, além de erros e equívocos diagnósticos, uma visão distorcida e deficitária daqueles quadros clínicos que não se enquadram perfeitamente no molde sintomatológico clássico das psicoses esquizofrênicas e das doenças afetivas típicas. Esses quadros atípicos são como que relegados à categoria de exceção de uma regra geral ou, mesmo, considerados como quadros impuros e marginais, sendo agrupados arbitrariamente em vãos ocasionais de taxonomia nosológica. Na verdade, pensamos que os chamados quadros psicóticos atípicos representam uma espécie de elo de ligação entre os dois grupos clínicos kraepelianos originais, ou seja, a demência precoce e a psicose maníaco-depressiva, sendo, por isso mesmo dotados de morfologia sintomatológica extremamente variável, representantes que são de um grande arco gradativo de transição nosológica.

Nos tópicos anteriores, procuramos discorrer, ainda que resumidamente, sobre as principais características clínicas dos quadros esquizofrênicos e afetivos típicos mas a verdade é que, cada vez mais habitualmente, deparamo-nos na prática, com certos quadros que desafiam toda e qualquer tentativa de classificação calcada naqueles dois grupos nosológicos puros. Assim, muitas vezes, em certos pacientes, constatamos que a evolução clínica é francamente psicótica, havendo séria desadaptação social e incapacitação funcional sem que, todavia, possamos caracterizar e delinear vivências subjetivas sensorializadas e/ou juízos de significação delirantes típicos e eloqüentes. Nesses casos, notamos uma espécie de excitação maniforme vazia acompanhada de uma incongruência improdutiva com matizes flutuantes de confusão mental e de perplexidade, às vezes ao lado de vivências alucinatórias esporádicas e agudas. São extremamente comuns a agitação e a agressividade, manifestando-se de forma despropositada e aleatória, assim como algumas expressões neuróticas dramáticas, tais como crises conversivas motoras ou afásicas. O paciente costuma exibir uma flutuação e plasticidade extraordinárias no que se refere à sintomatologia apresentada. Ora denota um certo histrionismo grosseiro, tosco e pueriliforme, ora desenvolve uma inadequação e incongruência perplexas sempre marcadas por um fundo de excitação difusa e constante. Não há, decisivamente, uma constância duradoura quanto à apresentação de um aspecto clínico-psicopatológico em uma forma mais ou menos fixa. Esses quadros, habitualmente, evoluem, segundo a nossa experiência clínica, de forma periodicamente fásica apesar da inconstância e da imprecisão do surgimento e da eclosão das crises produtivas. O prognóstico é muito variável, porém, na maioria dos casos, pelo que já tivemos oportunidade de observar, costuma ser razoavelmente benigno. Ao que parece, essas crises produtivas agudas apresentam uma potencialidade de remissão aumentada e tanto maior será a rapidez de duração quanto mais precocemente se implantar uma terapêutica eficaz e adequada. A resposta clínica imediata, assim como a profilaxia das crises, costumam ser bastante satisfatórias com o emprego de sais de lítio, o que demonstra o parentesco nosológico desses quadros com o grupo das doenças afetivas. Os períodos intercríticos desses pacientes são marcados, freqüentemente, por queixas e sintomas neuróticos conversivos, hipocondríacos e ansiosos sobressaindo-se de um fundo depressivo mesclado com um estado de ânimo irritável ou apático. Esse quadros correspondem, pelo menos aproximadamente, àquelas formas clínicas descritas em 1949 por HOCH e POLATIN sob a denominação esquizofrenia pseudoneurótica7 .

Em outros casos, observamos, na apresentação das crises, uma evidente exaltação do estado de ânimo dos pacientes coexistindo com vivência subjetivas sensorializadas e juízos reificados de significação delirante, além de constatarmos disforia, incongruência, inadequação e atitudes incoerentes. Notamos que, em muitos desses casos, a resposta clínica costuma ser favorável com a associação terapêutica de drogas neurolépticas com sais de lítio. Esses pacientes, nos períodos intercríticos, costumam apresentar uma inequívoca tendência a estados depressivos, mostrando-se, periodicamente, apáticos, hipobúlicos e com juízos reificados de significação deliróide de ruína ou culpa brandos, esparsos e mal sistematizados entremeados por uma afetividade levemente embotada e esvaziada. A propósito disso, é bastante típico o relato sucinto do caso de uma paciente relativamente jovem que permaneceu internada, sob os nossos cuidados médicos, em uma enfermaria do hospital durante longo período de tempo. As suas crises agudas, que eclodiam de modo periódico, eram caracterizadas por comportamento totalmente incoerente permeado por atitudes esdrúxulas e disparatadas sobre um fundo endotímico que sugeria elevação anormal em sua intensidade. Mostrava-se exaltada, agressiva, irritável e, ao mesmo tempo, exibia uma espécie de puerilidade travessa, esvaziada e grotesca. Ao lado disso, observávamos solilóquios, pára-respostas, desagregação do pensamento e atitudes que sugeriam franca e produtiva atividade alucinatória. Nos períodos intercríticos demonstrava vivacidade e adequação, apesar de certo embotamento afetivo que lhe conferia falta de espontaneidade, até que, em um certo momento, começava a apresentar alheamento, diminuição do interesse geral e hipobulia acompanhada de um estado de taciturnidade reflexiva, grave e, às vezes, perplexa. Paradoxalmente, juízos reificados de significação deliróide raros, imprecisos e vagos a respeito de iminência catastrófica eram detectados em um estado subjetivo que podia ser considerado praticamente estuporoso. Com o agravamento progressivo dos sintomas, apesar do uso continuado e regular do carbonato de lítio, chegava a ficar completamente restrita ao leito, recusando alimentos e rechaçando qualquer abordagem verbal, simultaneamente à acentuação do descuido pela sua aparência e, mesmo, pela higiene pessoal. Essa paciente somente manifestava melhora após duas semanas de ingestão de 100 mg de um anti-depressivo dotado de boa ação timoléptica e timerética (“imipramina”), quando então, voltava a demonstrar interesse sintônico pelo meio ambiente e retornava ao exercício de alguma atividade laborativa na enfermaria. Nessas ocasiões, expressava razoável adequação e ressonância afetiva, mostrava-se moderadamente vivaz, indagava pelos seus familiares e reivindicava alta hospitalar. Algum tempo depois, advinha uma nova crise aguda, como a que foi descrita no início, que obrigava a retirada do anti-depressivo e a retomada da terapêutica com neurolépticos, seguida de melhora até a eclosão de nova fase melancólica e, assim, sucessivamente, em uma evolução clínica que poderíamos caracterizar, sem nenhuma dúvida, como circular.

Este é, segundo nossa opinião, apenas um exemplo daquelas formas clínicas que KASANIN descreveu em 1933 com o nome de psicose esquizoafetiva7, apesar desse autor referir-se a pacientes jovens com bons antecedentes pré-mórbidos e que são acometidos abruptamente por sintomas esquizofrênicos e afetivos, tendo a doença bom prognóstico. O impasse teórico-clínico que se nos apresenta, entretanto, terá como resultado prático um frutífero esclarecimento a respeito desse termo, utilizado, em nosso ponto de vista, inadequadamente na maioria dos caos. Ora, sabemos que nas fases maníacas, como já vimos, os pacientes podem vir a apresentar vivências subjetivas sensorializadas e juízos reificados de significação deliróide como conseqüência direta da elevação excessiva do fundo endotímico-vital. Dessa maneira, alguns pacientes francamente maníacos poderiam apresentar sintomatologia psicopatológica esquizofreniforme sem que, por isso devessem ser considerados nuclearmente esquizofrênicos. Por outro lado, em um outro grupo de pacientes observamos que, ao mesmo tempo que há uma elevação excessiva do fundo endotímico-vital, detectamos aquilo que consiste na verdadeira essência fenomênica do distúrbio esquizofrênico e que é o processo de desdiferenciação simbólico-afetiva. Assim, a reificação dos juízos de significação e a sensorialização do patrimônio simbólico abstrato e dos equivalentes instintuais do enfermo possuem, a nosso ver, nos dois casos, qualidades clínico-fenomenológicas bastante distintas. Enquanto são tênues, voláteis, potencialmente reversíveis e benignas nos quadros pertencentes ao distrito das doenças afetivas, apresentam caráter de irreversibilidade e profunda gravidade e malignidade quando se trata de quadros esquizofrênicos. Como já vimos antes, o processo de desdiferenciação simbólico-afetivo destrói, em graus variáveis e em períodos de tempo curtos ou longos, as potencialidades superiores de simbolização do psiquismo normal, assim como as modalidades superiores, diferenciadas e harmônicas da vida afetiva. Em vista disso, pensamos que o termo psicose esquizoafetiva somente poderá ser empregado quando constatarmos, sem nenhuma dúvida, através da observação minuciosa da evolução clínica do enfermo e da resposta terapêutica aos neurolépticos e ao carbonato de lítio, a coexistência independente e autônoma, no mesmo quadro, dos dois fatores básicos que concorrem, conjuntamente, para a caracterização dessa unidade nosológica, ou seja, a desdiferenciação simbólico-afetiva e a elevação e/ou descenso anormais do fundo endotímico-vital. Desse modo, ao que parece, os casos clínicos catalogados por KASANIN7 e que inspiraram a criação do termo eram, provavelmente, quadros de fase maníaca com sintomas psicopatológicos esquizofreniformes secundários à alteração básica do fundo endotímico-vital. Ao contrário, como estamos propondo, o diagnóstico de psicose esquizoafetiva implica num prognóstico, pelo menos a princípio, grave, e em muitas dificuldades naturais no manejo terapêutico dos neurolépticos e do carbonato de lítio. Do ponto de vista prático, e isso pode ser confirmado de acordo com as bases teóricas que estamos estabelecendo, podemos notar diversos tipos de formas clínicas da psicose esquizoafetiva conforme os ‘pesos’ relativos que os transtornos do fundo endotímico ou a gradação de desdiferenciação simbólico-afetiva contribuem, em conjunto, para a caracterização morfológica de determinado quadro e sua evolução clínica. Isso implica, naturalmente, a aceitação de um espectro de formas clínicas com morfologia psicopatológica extremamente variável, considerando-se os graus de predominância, ora do componente de desdiferenciação simbólico-afetiva, ora daquele correspondente aos transtornos do fundo endotímico-vital. Ainda, vê-se que o grupo nosológico das psicoses esquizoafetivas pode abranger, completamente, aqueles quadros clínicos denominados, por alguns autores, ‘psicoses mistas’. Dessa maneira, por exemplo, determinada evolução clínica pode estar marcada, indelevelmente, pelo defeito processual progressivo e irreversível proveniente da desdiferenciação simbólico-afetiva de modo bem mais acentuado do que, propriamente, pelos sintomas psicopatalógicos oriundos dos transtornos do fundo endotímico-vital. Em outros casos, poderemos observar, em sentido praticamente inverso, a predominância de uma exaltação vital crônica ou de uma hipobulia persistente e desvitalizante sobre um comprometimento simbólico-afetivo insidioso, lento, mas gradual e progressivo, mesmo que de modo imperceptível. A propósito, alguns autores 3 já consideravam aquilo que descreviam como ‘melancolia delirante com distúrbios de associação de idéias’, uma forma clínica com mau prognóstico, assim como a chamada ‘mania delirante’. Aparentemente, essas formas clínicas deveriam aproximar-se muito da unidade nosológica intermediária que estamos descrevendo e caracterizando para serem agrupadas sob a denominação psicose esquizoafetiva. De modo semelhante, em alguns quadros clínicos diagnosticados como ‘mania crônica’ podemos ver, com clareza, a predominância de uma exaltação vital crônica e persistente, embora insípida e vazia, sobre uma afetividade incongruente e empobrecida, resultado direto do processo de desdiferenciação simbólico-afetiva. De mais a mais, a gravidade de cada forma clínica da psicose esquizoafetiva dependerá do comprometimento e do prejuízo do desempenho existencial e funcional do enfermo induzido pelo transtorno do fundo endotímico-vital e pela desdiferenciação simbólico-afetiva, assim como pelas dificuldades e obstáculos de se estabelecer um esquema terapêutico mais ou menos definido e constante para evitar a irrupção de novos ‘brotos-fases’. Grosso modo, podemos dizer que os neurolépticos butirofenônicos agiriam, terapeuticamente, sobre a desdiferenciação simbólico-afetiva, enquanto o carbonato de lítio, pelo menos teoricamente, teria a propriedade potencial de estabilizar a harmonia do fundo endotímico-vital, servindo como profilaxia à irrupção de novas fases maníacas ou depressivas. Quem está habituado às diversidades da prática clínica cotidiana sabe, perfeitamente, das enormes dificuldades e decepções a que estão sujeitos os médicos imbuídos de uma visão excessivamente otimista a respeito desses recursos terapêuticos, embora tenha conhecimento, também, do grande progresso que representou o advento desses psicofármacos e dos grandes benefícios que podem levar a muitos doentes. De qualquer maneira, mesmo que essas drogas não sejam capazes de estabilizar, de modo favorável, a evolução clínica de muitos pacientes, podem, por outro lado, contribuir para traçar o perfil de diagnóstico dos dois tipos de transtorno básicos presentes e delinear, aproximadamente, a expectativa quanto ao prognóstico de cada uma das formas clínicas estudadas e tratadas. No que se refere a isso, podemos lançar uma sugestão a respeito da classificação das formas clínicas do grupo de psicoses esquizoafetivas, tomando como parâmetros de referência alguns dados importantes relacionados à observação clínica. Por exemplo, o primeiro parâmetro de referência poderia consistir na avaliação do grau de comprometimento simbólico-afetivo. Isso seria realizado através da mensuração da intensidade do defeito processual nos períodos intercríticos. Por meio de testes cognitivos da personalidade, além de quantificações padronizadas, como exemplo, por número de pontos do desempenho profissional e da atuação existencial. O segundo parâmetro consistiria na avaliação de predominância de transtornos do fundo endotímico ou do componente de desdiferenciação simbólico-afetiva através do estudo da morfologia psicopatológica predominante nas fases agudas e nas oscilações fásicas ocasionais dos períodos intercríticos. O terceiro parâmetro seria a resposta terapêutica dos diversos quadros às várias combinações de tratamento estabelecidas. Por exemplo, o tipo I abrangeria todos os quadros que respondessem favoravelmente apenas ao carbonato de lítio, tipo II aqueles que o fizessem somente com a associação entre o carbonato de lítio e neurolépticos, o tipo III com a associação neurolépticos, carbonato de lítio e eletroconvulsoterapia e assim, sucessivamente, em um bom número de combinações de respostas terapêuticas, gerando tipos gerais e subtipos específicos e particulares. A correlação final entre os inúmeros tipos e subtipos vinculados aos três parâmetros básicos, certamente seria muito interessante e proveitosa no sentido de se tentar isolar algumas ‘populações’ de enfermos esquizoafetivos dotados de características clínicas bastante similares e aparentadas entre si.

No início deste capítulo discorremos, rapidamente, a respeito da esquizofrenia pseudo-neurótica7 de HOCH e POLATIN e, depois do que já vimos até aqui, pensamos não haver nenhuma dúvida quanto à validade da inclusão dessa forma clínica no interior do grupo nosológico das psicoses esquizoafetivas. Em nossa opinião, essa população de pacientes teria algumas desordens neuróticas potenciais ou manifestas desencadeadas ou agravadas, de maneira súbita e paroxística, pelas oscilações quantitativamente anormais do fundo endotímico-vital, ocasionando, dessa forma, aquele colorido clínico típico relacionado a essas desordens agudas ao lado de fenômenos subjetivos francamente psicóticos.

LANGFELDT, em 1939, descreveu as psicoses esquizofreniformes7 ou marginais que, ao contrário das esquizofrenias autênticas que designou como formas clínicas nucleares ou malignas, seriam mais agudas do que aquelas e teriam bom prognóstico. Com efeito, na prática, observamos, com certa freqüência, quadros psicóticos esquizofreniformes que irrompem de forma súbita e abrupta, muitas vezes após vivências subjetivas correspondentes a circunstâncias situacionais traumáticas e que costumam apresentar remissão sintomatológica completa após um curto período de tempo de terapêutica com neurolépticos. Apesar da morfologia psicopatológica desses quadros ser absolutamente idêntica àquela encontrada nos brotos psicóticos das psicoses esquizofrênicas, seu curso clínico é bastante favorável, não se instaurando, de nenhum modo, defeito processual sob a forma de comprometimento definitivo e indelével da vida afetiva e simbólica do indíviduo. É provável que certas pessoas possuam, por assim dizer, um terreno constitucional propício e latente para o desencadeamento de uma desdiferenciação simbólico-afetiva, potencialmente reversível e benigna, tanto que alguns autores denominam esses quadros psicoses psicogênicas6 e psicoses reativas, ressaltando o seu bom prognóstico evolutivo. Segundo DAKER7, alguns estudos indicam que existem mais familiares de pacientes com quadros psicóticos esquizofreniformes acometidos por psicose maníaco-depressiva do que aqueles de enfermos esquizofrênicos. Ainda, o referido autor após argumentar que, freqüentemente, sintomas afetivos colorem os quadros esquizofreniformes e que esses costumam responder e ser controlados pelo carbonato de lítio, sugere que essas formas clínicas consistem na parte de ligação entre as duas categoria básicas de psicoses endógenas e faz o seguinte esquema gráfico para ilustrar a sua concepção:


Fig. 03

E = Esquizofrenias

Ef = Psicoses Esquizofreniformes

EA = Psicoses Esquizoafetivas

A = Psicoses Afetivas

Em nossa opinião, as psicoses esquizofreniformes devem ser incluídas no grupo nosológico das psicoses esquizoafetivas com a ressalva importante de que são as suas variantes clínicas benignas. Enquanto naquelas formas clínicas bem delineadas da psicose esquizoafetiva há, efetivamente, de um lado, o processo de desdiferenciação simbólico-afetiva e, de outro, os transtornos do fundo endotímico-vital, nos quadros psicóticos esquizofreniformes há apenas o esboço dessa alteração. Isso poderia ser representado , graficamente, da seguinte maneira, com uma alteração do esquema original de DAKER:


Fig. 04

Podemos notar que o círculo representativo que abrange as formas clínicas esquizofreniformes apenas tangencia dois grupos nosológicos originais, isto é, não recebe um investimento real daqueles dois componentes básicos responsáveis pelas alterações psicopatológicas típicas (desdiferenciação simbólico-afetiva e transtornos do fundo endotímico-vital), ao contrário das psicoses esquizoafetivas cujo círculo representativo intersecciona os grupos fundamentais e contém, verdadeiramente, em seu núcleo partes variáveis e substanciais daquelas alterações.

V. PARAFRENIA E PARANÓIA: DUAS REALIDADES CLÍNICAS

Essas duas unidades clínicas, inicialmente descritas e separadas do grupo da demência precoce por KRAEPELIN14 , tornaram-se motivo de grande controvérsia por parte dos inúmeros autores. A tendência geral foi incluí-las no grupo das esquizofrenias, especialmente depois que se constatou, no que se refere à parafrenia, que uma parte considerável dos pacientes catalogados pelo próprio KRAEPELIN como parafrênicos teve uma evolução clínica típica nos moldes da psicose esquizofrênica inclusive com déficit afetivo e cronificação processual18.

Classicamente, a parafrenia consiste em uma psicose com abundantes manifestações alucinatórias que alicerçam vivências delirantes extravagantes, bizarras e grandiloqüentes relacionadas a temas de enormidade e grandeza entremeados com motivos místicos, cósmicos e universais, dentre outros. São comuns as produções fantásticas imaginativas relacionadas e enredos fabulosos e mágicos. Entretanto, parece que esse material delirante caudaloso e altamente inverossímil é justaposto à consciência de perfeita percepção do mundo por parte do enfermo coexistindo, dessa maneira, o delírio parafrênico e a visão isenta da realidade. Os autores que como EY8 aceitam essa entidade clínica considerando necessária, inclusive, a sua reinclusão no grupo das psicoses são unânimes em reiteirar a sua independência e autonomia nosológica e insistem quanto à vida afetiva do enfermo no transcurso da evolução clínica da doença. Aparentemente, o indivíduo não perde, de forma nuclear, o contato vital com a realidade apesar da extravagância e da estranheza dos diversos temas delirantes alimentados por sucessivas e maciças vivências alucinatórias.

Em nosso meio SARAIVA18 publicou uma excelente revisão sobre o assunto e, em seu trabalho, assinala que KRAEPELIN distinguiu quatro formas clínicas de parafrenia: a sistemática que corresponde ao delírio crônico de evolução sistemática de MAGNAN e se caracteriza por delírio persecutório estimulado por alucinações auditivas e, mais tarde, acrescido de idéias de grandeza sem destruição da personalidade. KRAEPELIN8 insiste na importância das alucinações e no fato de que a evolução clínica, inclusive longa, não chega a produzir nunca uma autêntica destruição da personalidade e, muito menos, um estado demencial. É mais comum em homens, na faixa etária de trinta a quarenta anos de idade. A expansiva, na qual aparece em primeiro plano delírio de grandeza exuberante com alucinações visuais acompanhado de humor elevado e leve excitação psicomotora lembrando fases maníacas, a atividade delirante se desenvolve sobre conteúdos religiosos, proféticos e eróticos, sendo mais comum em mulheres. A confabulatória que, segundo KRAEPELIN18 , é mais rara e, se caracteriza por idéias delirantes persecutórias e de grandeza em cujo desenvolvimento desempenham papel capital as falsificações mnêmicas, isto é, as alucinações e ilusões da memória. Finalmente, a fantástica cujos sintomas principais são as concepções delirantes extremamente absurdas, mutáveis e polimorfas.

Nós mesmos já tivemos oportunidade de suspeitar do diagnóstico dessa doença em vários pacientes internados no Instituto Raul Soares, hospital psiquiátrico que abriga pacientes oriundos predominantemente do meio rural. O grau de absurdidade das convicções delirantes manifestadas, os enredos imaginativos fantásticos relacionados com o fabuloso, o mágico e o maravilhoso - em um estreito contato com lendas, crendices, mitos folclóricos e tradição - a intensidade das vivências alucinatórias, a conservação da integridade da personalidade pelo menos em uma primeira fase de acompanhamento clínico, a excitação psicomotora leve ou moderada, todos esses ingredientes psicopatológicos incitavam-nos ao estabelecimento do diagnóstico de parafrenia. Entretanto a totalidade dos pacientes com essas características apresentava, senão uma oligofrenia real, pelo menos um déficit pedagógico importante, o que levava a rotular esses casos com o diagnóstico de pseudologia fantástica. Apesar disso, alguns ou muitos desses pacientes, temos certeza, eram verdadeiramente parafrênicos. As dificuldades com que nos defrontamos, em nosso meio, para estabelecer um diagnóstico psiquiátrico preciso são inúmeras e vão desde as precárias condições de trabalho para o médico até os extremos obstáculos para a continuidade de tratamento para o paciente.

Em nossa opinião, a parafrenia corresponde a um processo de desdiferenciação apenas da dimensão simbólica da vida psíquica, deixando perfeitamente intacta a dimensão afetiva. Daí o fato de ocorrerem, essencialmente, vivências subjetivas sensorializadas tais como alucinações servindo como base real e primária para a produção delirante, isto é, juízos reificados de significação delirante secundários que se vinculam àquelas vivências subjetivas. A nossa hipótese de que nas parafrenias o processo de desdiferenciação é seletivo atingindo apenas a esfera simbólica e poupando a vida afetiva coincide com aquilo que é detectado na prática clínica. Com efeito, segundo a observação de vários autores, muitos casos considerados originariamente como parafrenia evoluíram, posteriormente, dentro dos moldes clássicos da psicose esquizofrênica e EY8 parte do pressuposto teórico de que as construções delirantes parafrênicas sugiriam de um episódio esquizofrênico frustro ou abortado. Ora, nesse último caso podemos concluir, facilmente que o processo de desdiferenciação seria como que incompleto e benigno comprometendo somente a dimensão simbólica da vida psíquica do enfermo e produzindo vivências subjetivas sensorializadas vinculadas a determinados juízos reificados de significação delirante, enquanto naqueles casos que posteriormente evoluem para os padrões típicos da psicose esquizofrênica podemos supor que o processo de desdiferenciação simbólico-afetiva inicia, primeiro a sua atividade na dimensão simbólica e, mais tardiamente, compromete o setor da vida afetiva da do paciente. Dessa maneira, compete-nos não somente aceitar a realidade e a autenticidade clínica dessa unidade nosológica, como também situá-la de forma contígua ao círculo de abrangência das psicoses esquizofrênicas (fig. 05):


Fig. 05

Como podemos observar, a figura 05 mostra esquematicamente, a exata localização nosológica do grupo das psicoses parafrênicas. Notamos que a sua situação geográfica é contígua e comunicante em relação ao grupo das psicoses esquizofrênicas e ao das psicoses esquizoafetivas. Em relação ao grupo das esquizofrenias, como já dissemos, parece não haver dúvidas quanto ao parentesco muito próximo entre elas, desde que consideremos que o distúrbio axial em ambas consiste em um processo de desdiferenciação de natureza simbólico-afetiva nas primeiras e apenas simbólica nas parafrenias. No que se refere ao parentesco dessas últimas com o grupo das psicoses esquizoafetivas, temos que considerar a forma clínica denominada expansiva que, para nós, nada mais é do que o resultado direto do processo de desdiferenciação simbólica associado a uma elevação anormal do fundo endotímico.

Por último, poderemos ainda, com o objetivo de ampliar mais detalhadamente o modelo teórico que estamos propondo, reportarmo-nos o modelo teórico que estamos propondo, reportamo-nos à fig. 02 (Pág. 28). Naquele esquema gráfico, originariamente destinado à compreensão totalizante da morfologia psicopatológica das psicoses esquizofrênicas, podemos visualizar no EIXO I os sintomas psicopatológicos não relacionados a eventos do mundo externo, que são as vivências subjetivas sensorializadas, como a verdadeira base clínico-fenomenológica das parafrenias, resultante do processo de desdiferenciação simbólica somente. A principal diferença conceitual com a psicose esquizofrênica reside no fato de que nas parafrenias não haveria a ruptura da inteireza da consciência individual (comprometimento profundo do patrimônio simbólico representativo pessoal e dos atributos da consciência de execução e da consciência do existir), apesar do processo de desdiferenciação simbólica e da perda dos limites entre os espaços subjetivos que abrigam os conteúdos psíquicos interpretados como oriundos do mundo externo e aqueles do mundo interno, (Fig. 01, pág. 20).

De acordo com KRAEPELIN18 , a paranóia consiste no desenvolvimento de um sistema delirante duradouro e imutável resultante de causas internas, que se acompanha de completa conservação da clareza e ordem no pensamento, na vontade e nas ações. Trata-se de um delírio interpretativo, egocêntrico, sistematizado, coerente, que pode ser de prejuízo, de perseguição ou de grandeza, com tonalidade erótica ou com temas de invenção ou de reforma. As vivências alucinatórias são sempre estranhas ao quadro clínico e a imutabilidade fundamental das idéias delirantes vale como uma característica da paranóia.

O tipo de constituição caracterológica predisponente à estruturação delirante sistematizada já foi objeto de ampla investigação e análise por parte dos vários autores 8,18 e todos eles sublinham algumas características pessoais bem definidas presentes nessas constituições tais como egocentrismo, susceptibilidade, desconfiança, orgulho, beligerância, teimosia e dificuldades para adaptação social. Trata-se de indivíduos que sobrevalorizam os acontecimentos cotidianos por mais banais e insignificantes que sejam, estão sempre demasiadamente atentos para qualquer acontecimento ou ação de outrem, principalmente para aqueles que se referem a eles mesmos, são delicadamente susceptíveis e costumam apresentar temperamento combativo e querelante. É evidente que a enfermidade não se constitui, apenas, na hipertrofia desses traços caracterológicos fundamentais, mas esses desempenham papel capital no mecanismo psicológico envolvido na gênese e no encadeamento articulado e sistematizado da produção delirante.

Por outro lado, pensamos que o movimento mundial de ampliação da abrangência das psicoses esquizofrênicas sobre a maioria dos quadros psicóticos esquizofreniformes iniciado por BLEULER2 levou a uma simplificação conceitual excessiva de certas formas clínicas e, até, o seu desaparecimento como unidades nosológicas autônomas, além de ocasionar um progressivo empobrecimento psicopatológico de certos quadros o que, decisivamente, não faz jus à riqueza semiológica encontrada. Em certos casos como, por exemplo, as demências paranóides8 classificadas por KRAEPELIN isso se justifica visto que se trata de variantes clínicas claramente pertencentes ao distrito nosológico das esquizofrenias, porém tal atitude não parece correta no que se refere à paranóia. Não concordamos com autores9 que se referem a essa entidade clínica como ‘um grande mito kraepeliniano’ porque temos oportunidade de observar, embora raramente na prática clínica, alguns casos que correspondem exatamente à descrição original.

Os poucos casos, cuja evolução pudemos acompanhar, se caracterizam pela produção de juízos reificados de significação delirante em uma sucessão concatenada e bastante articulada no sentido de imprimir coerência e versossimilhança ao seu conteúdo. Com o passar do tempo, de acordo com os relatos dos pacientes, notamos que se ia configurando uma verdadeira rede, complexa e intricada, de juízos reificados de significação delirante que, simultaneamente, emoldurava e enformava o terrível drama subjetivo no qual o próprio paciente era o seu protagonista. À medida que os juízos de significação delirante se tornavam mais reificados, mais acentuada e sólida se tornava a convicção íntima por parte do enfermo quanto à indiscutível verossimilhança das vivências experimentadas e o mundo ia, gradualmente, perdendo o seu brilho de ingenuidade e causalidade. Tudo se tornava ameaçador, adquiriria um sentimento próprio, especial, enigmático. Toda palavra vinha revestida de um sentido duplo, irônico, acusador e todo gesto ou olhar transmitia malícia incriminadora e vil. Qualquer fato cotidiano e banal transformava-se em um sinal, em um aviso indireto de que a grande trama continuava a engendrar-se de maneira misteriosa e inefável. O paciente tornava-se, então, centro do mundo e dos acontecimentos universais, descortinavam-se, subitamente, grandes revelações, estava completamente à mercê de ignominiosas e sinistras conspirações e nada poderia fazer para escapar de sua diabólica influência.

Pode-se notar, apesar da exposição sucinta, a ausência de vivências alucinatórias, desenrolando-se o quadro clínico às custas, exclusivamente, de juízos reificados de significação delirante deflagrados por um conjunto de estímulos oriundos do mundo externo. Voltemos, novamente à Fig. 02 (pág. 28) e observemos no EIXO II os sintomas psicopatológicos estritamente relacionados a eventos do mundo externo, quais sejam, vivência de significação vaga, do posto ou do preparado e percepções delirantes. Esses fenômenos psicopatológicos se constituem, sem nenhuma dúvida, na verdadeira base clínico-fenomenológica da paranóia. Em nossa opinião, o processo de desdiferenciação da afetividade induz a produção de juízos reificados de significação delirante que se vão incrustando na personalidade do enfermo e tecendo a vasta trama imaginária reificada que vai ocupando os interstícios da totalidade de sua existência. Estamos nos referindo, é bom ressalvar, ao processo de desdiferenciação da afetividade do enfermo, que não é, de nenhum modo, idêntica à destruição anaplásica da vida afetiva como ocorre na psicose esquizofrênica. O que sucede na paranóia é a instauração de uma espécie de catatimia reificada repleta de conteúdos de natureza mágico-animista e de simbolismo concreto que se infiltram e contaminam, de modo projetivo, irremediavelmente, a visão do mundo efetuada pelo enfermo. Devido ao fato de não haver vivências subjetivas sensorializadas e, muito menos, ruptura da inteireza da consciência individual, o sistema delirante alcança configurações cada vez mais complexas e enrijecidas sem que, todavia, se instale no observador a impressão caótica de destruição da personalidade que o processo nuclearmente esquizofrênico transmite. De qualquer maneira, trata-se de um processo de desdiferenciação da afetividade do enfermo e, por isso mesmo, aparentado, proximamente, com o processo de desdiferenciação simbólico-afetiva padrão que observamos na psicose esquizofrênica. Faz-se necessário, portanto, situar esquematicamente a paranóia de maneira contígua e comunicante com o círculo de abrangência das esquizofrenias, conforme podemos visualizar na figura 06:


Vale dizer que o fato dos dois círculos de abrangência serem comunicantes se deve à constatação de uma realidade clínica equivalente a certas formas intermediárias de transição entre as duas unidades nosológicas. Assim, em muitos casos intermediários surpreendemos, além da produção incessante de juízos reificados de significação delirante, raras vivências subjetivas sensorializadas que, por seu turno, contribuem sobremaneira para a estruturação da verossimilhança do sistema delirante. O mesmo pode ser dito, em sentido praticamente inverso quanto à morfologia psicopatológica, em relação à contigüidade e à comunicação entre o círculo de abrangência das parafrenias e o das esquizofrenias. Parece que essas modalidades parciais de desdiferenciação podem confluir e se tornar, na zona de transição entre os respectivos círculos de abrangência dessas psicoses, praticamente idênticas ao protótipo do processo de desdiferenciação simbólico-afetiva, característica axial da psicose esquizofrênica. Dessa maneira, deixariam de ser variantes ‘satélites’ do padrão maior e típico de desdiferenciação e se converteriam nele mesmo, originando quadros clínicos nuclearmente esquizofrênicos.

Finalizando, desejamos registrar o nosso otimismo em relação a essa visão panorâmica final do grupo das psicoses endógenas esperando que o eventual benefício que o leitor consiga usufruir das novas proposições teóricas aqui estabelecidas se reflita inteiramente no campo de sua atuação clínica onde o tema psicose ainda consiste, com toda a certeza, em seu maior e intrigante desafio.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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* Principalmente as sub-formas mistas hebefreno-paranóide e hebefreno-catatônica.