UM CASO DE TRICOTILOMANIA: CONSIDERAÇÕES DIAGNÓSTICAS E TERAPÊUTICAS
A CASE OF TRICHOTILLOMANIA: DIAGNOSTIC AND TERAPEUTIC CONSIDERATIONS


Rodrigo Barreto Huguet*
Guilherme Assumpção Dias**
Leandro Fernandes Malloy Diniz***
Maria Goretti Pena Lamounier****
Gustavo Fernando Julião de Souza****
Antônio Carlos de Oliveira Corrêa****

* Psiquiatra, ex-residente da Residência de Psiquiatria e Neurologia do HC - UFMG
** Residente do terceiro ano da Residência de Psiquiatria do HC - UFMG
***Neuropsicólogo
**** Supervisores da Residência de Psiquiatria do HC - UFMG
Resumo

Descreve-se caso de paciente do sexo masculino, 27 anos, que vinha cursando com tricotilomania e tricofagia, graves a ponto de ficar sem os supercílios. Inicialmente suspeitou-se de comorbidade com esquizofrenia e o quadro apresentou melhora inicial visível com o emprego de neuroléptico. Sua evolução e novas investigações, como exames neuropsicológicos e o uso do International Personality Disorder Examination (IPDE), indicaram comorbidade com transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno de personalidade evitativa, transtorno de personalidade dependente e provável retardo mental leve, excluindo-se o diagnóstico de esquizofrenia. A resposta ao uso de neurolépticos se manteve apenas parcialmente a longo prazo. Antidepressivos serotoninérgicos também foram empregados. Discute-se sobre as comorbidades na tricotilomania, o diagnóstico diferencial com esquizofrenia e o papel dos neurolépticos no seu tratamento.

Palavras- chave: Tricotilomania; neurolépticos; esquizofrenia; transtorno obsessivo-compulsivo; transtorno de personalidade evitativa; transtorno de personalidade dependente; oligofrenia.

Caso Clínico

Paciente atendido no Serviço de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da UFMG a partir de 07-12-98.

Identificação

J.N.C. é um jovem de 27 anos, melanoderma, solteiro, católico, natural e residente em BH, desempregado, formação escolar até a quinta série do primeiro grau.

Queixa Principal

“Nervoso”

História da Moléstia Atual

Primeiros sintomas aos 23 anos. Iniciou o hábito de arrancar e ingerir freqüentemente os pêlos do rosto, incluindo supercílios, e dos antebraços. Tornou-se repetitivo em seu discurso, eventualmente ria e falava sozinho. Foi demitido do emprego, o que o irritou muito. Nesta ocasião, relata que “veio uma fala em minha cabeça: você não é ninguém, rasga seus documentos”, ao que o paciente rasgou e queimou seus documentos. Nunca mais trabalhou ou teve relacionamentos amorosos, passou a ficar recluso em casa, reticente e a comunicação com as pessoas tornou-se restrita. Iniciou desleixo nos cuidados com a higiene, raramente tomava banho ou cortava o cabelo. Apresentava períodos de insônia. Lavava repetidamente o chão do seu quarto, onde deixava uma garrafa d’água para lavá-lo sempre que quisesse. Dizia que o chão estava com “vírus”, que vinha uma “fala” em sua mente: “tem que estar limpo” (na ocasião do primeiro atendimento, já há um ano não apresentava essas compulsões de limpeza). Costumava ficar trancado no quarto, sem falar com ninguém. Às vezes quebrava coisas. Apresentava-se com aparência entristecida e alimentava-se pouco.

Nega tratamentos prévios. Nunca havia se consultado antes por resistência em ir ao médico, segundo a família. Compareceu à primeira consulta sem saber que iria a uma entrevista psiquiátrica. Julgava ser acompanhante da irmã, e que esta é quem iria consultar-se.

História pregressa

Nega doenças prévias, tabagismo, etilismo, uso de drogas.

História pessoal

O paciente é o mais novo de seis irmãos: quatro mulheres, o paciente e o primogênito, já falecido. A família nega doenças graves na infância e atrasos no desenvolvimento neuropsicomotor.

Seu pai, de quem muito gostava, faleceu quando tinha 8 anos. Nessa época esteve muito abatido, segundo a mãe “ficou 3 dias sem falar”. Desde a morte do pai, seu irmão mais velho passou a “comandar” a casa. Ele comprou o lote onde moravam e os outros irmãos o obedeciam e respeitavam.

O paciente tinha um temperamento tranqüilo, era mais calado, possuía poucos amigos. Porém, convivia bem com as pessoas, praticava esportes, freqüentava a igreja. Não tinha dificuldades escolares. Aos 13 anos, começou a trabalhar paralelamente aos estudos, cortava arames em uma fábrica de gaiolas. Posteriormente passou a trabalhar em uma lavanderia, como entregador. Com 15 anos, decidiu parar de estudar para dedicar-se só ao trabalho e ajudar nas despesas de casa, apesar de sua família não estar em dificuldades financeiras.

Possuía relação muito próxima com o irmão. Dormiam juntos na mesma cama, iam juntos à discoteca nos fins-de-semana. Nunca teve namoradas fixas, apenas relacionamentos eventuais. Estando o paciente com 16 anos, seu irmão contraiu hepatite e veio a falecer, aos 23 anos de idade. Desde então, J.N.C. parou de sair à noite, tornou-se mais recluso.

História familiar

Paciente e familiares negam doenças psiquiátricas na família.

Exame do estado mental

Paciente com cuidados higiênicos preservados. Cooperativo. Praticamente não tem os supercílios, o que lhe confere um aspecto bizarro. Arranca pequenos fios da barba e dos supercílios e os ingere durante a entrevista. Orientado, consciência clara, normovigil, normotenaz. Sem alterações da memória, da consciência do eu, da senso-percepção ou idéias delirantes aparentes. Relata pensamentos invasivos que ocorriam anteriormente, aos quais se refere como “falas que vinham em sua mente”. Discurso pobre e evasivo. Apresenta períodos de mussitação pouco inteligíveis. Ansioso e inquieto, retorce as mãos durante toda a consulta. Boa interpretação de provérbios, inteligência limítrofe. Crítica prejudicada, nega arrancar os pêlos do rosto.

Súmula psicopatológica

Aspecto bizarro. Orientado. Consciência clara. Normovigil e normotenaz. Memória preservada. Discurso pobre e evasivo. Ansioso. Crítica prejudicada. Presença de mussitação, tricotilomania e tricofagia. Inteligência limítrofe.

Hipóteses diagnósticas

- Tricotilomania, F63.3 da CID-10.
- Esquizofrenia indiferenciada, F 20.3 da CID-10.
- Retardo mental leve? F70.1 da CID-10.

Evolução do caso

Foi instituído tratamento com haloperidol, 3 mg/dia, e biperideno, 2 mg/dia. J.N.C. retornou em 25/01/99 com relato de estar falando menos sozinho, de ter apresentado melhora do humor e dos cuidados de higiene, de estar conversando mais com as pessoas. Passava os dias em casa, sem atividades, assistindo TV. Ao exame, mantinha mussitação, tricotilomania e tricofagia. Aumentamos o haloperidol gradativamente até atingirmos 10 mg/dia, em 11/02/99. Em 11/03/99 apresentava-se com melhora importante da aparência, devido a um crescimento já significativo dos supercílios. Não vinha apresentando mais tricotilomania ou mussitação. Dizia que falava sozinho porque “pensava alto, ficava lembrando das coisas”- negava alucinações auditivas. Reduzimos o haldol para 7,5 mg/d, devido a sedação, e o biperideno foi suspenso. Em 08/04 paciente compareceu à consulta já com aparência normal. Vinha exercendo algumas atividades produtivas, ajudando o cunhado a construir o muro de casa. Pouca crítica, dizia: “ não estou doente, não preciso de psiquiatra”. Como ainda se queixasse de sedação, reduzimos o haldol para 5 mg/dia.

Em 13/08, encaminhamos o paciente para o serviço de terapia ocupacional do NAPS de Ribeirão das Neves (grande Belo Horizonte), a fim de estimulá-lo a exercer atividades produtivas e melhorar seu relacionamento com outras pessoas.

O paciente vinha mantendo melhora no tocante à tricotilomania, à mussitação e à convivência com a família. Mandou fazer novamente seus documentos, andava sozinho pela vizinhança e vinha à consulta sem precisar de acompanhante. Teve boa adaptação ao NAPS, freqüentando-o duas vezes por semana. Fazia atividades de colagem, tapeçaria e desenhos. Falava em procurar um emprego, mas não o fez. Não tinha relacionamentos amorosos, mas voltou a procurar eventualmente prostitutas, coisa que não fazia desde os 23 anos, quando teve início sua doença. Mantinha uma vida pouco produtiva, quando não estava no NAPS permanecia em casa vendo programas infantis na TV ou ouvindo música. Tem fascínio pelo Michael Jackson. Possui vários pôsters e discos dele e dizia sentir-se compelido a escrever seu nome em vários lugares, em folhas avulsas, no caderno da irmã. Escrevia o nome do cantor em letras de fôrma, a data de seu nascimento, as iniciais de seu nome e imitava sua assinatura. Já encheu um caderno inteiro com isso. Dizia que, se não o fizesse, o Michael Jackson pararia de aparecer na televisão.

Em 03/2000, o paciente relatou apresentar-se mais ansioso, em virtude de a família pressioná-lo para trabalhar e sua irmã estar procurando emprego para ele. Dizia-se preocupado em “não dar conta” do novo emprego. Apresentava novamente tricotilomania e tricofagia, inclusive observados ao exame, porém em menor intensidade do que anteriormente. Assim sendo, optamos por elevar novamente a dose de haloperidol para 7,5 mg/dia.

Em 13/04/00 mantinha tricotilomania. Associou-se fluoxetina 20 mg/dia, com resposta apenas parcial, conforme observado em maio e junho de 2000. Em 27/07/00 aumentamos o haloperidol para 10 mg/d, sem resposta. Em 31/08/00 aumentamos fluoxetina para 40 mg/d, com pequena melhora da tricotilomania. Em 09/00 solicitamos risperidona junto à Secretaria de Saúde. Em 14/12/00, em função de importante acatisia e tremores de membros superiores, reduzimos haloperidol para 5 mg/d e fluoxetina para 20 mg/d.

Obteve-se liberação da risperidona em janeiro/01. Nessa ocasião, o paciente se apresentava bastante ansioso, angustiado e com acatisia. Queixava-se de pensamentos intrusivos que lhe ordenavam cortar os pulsos ou jogar-se na frente de carros. Apesar de citá-los como “vozes”, não os percebia como vindos de fora ou como produzidos por outra pessoa. Ocorrem preferencialmente em situações ansiogênicas como estar sozinho, ser xingado pela irmã ou ver facas e outros objetos pontiagudos. Dizia que com o tratamento ele ao menos conseguia controlar o impulso de obedecer tais pensamentos. Mantinha tricotilomania e tricofagia, embora em níveis inferiores ao pré-tratamento. Em 15/01/01 iniciamos risperidona, 4 mg/d, com suspensão do haloperidol. Em função da ausência de melhora, substituímos a fluoxetina por clormipramina, 75 mg/dia (em 29/01/01), aumentamos a risperidona para 6 mg/dia (em 12/02/01) e a clomipramina para 150 mg/dia (em 26/03/01).

No último retorno (02/04/01), relata melhora da acatisia, mas mantendo pensamentos intrusivos e algum grau de tricotilomania e tricofagia. Apresenta boa interação afetiva à consulta, adequadamente trajado, supercílios com algumas falhas. Durante a entrevista arranca e ingere pêlos dos supercílios algumas vezes. Encontra-se lúcido, orientado, normovigil, normotenaz, memória preservada. Seu discurso é organizado, não havendo alterações formais do pensamento. Relata pensamentos intrusivos esporádicos. Diz sentir-se uma pessoa “carente” pela falta de amigos, de uma companheira e de um emprego. “O psiquiatra é a única pessoa com quem posso falar de meus sentimentos”. Face à melhora apenas parcial, optamos por aumentar a risperidona para 8 mg/d.

Resultados de exames

- Exames laboratoriais: hemograma, íons, funções tireoideana, renal e hepática, glicemia e Tomografia Computadorizada de Crânio sem alterações.

- Exame neuropsicológico, realizado em 30/03/2000 por Diniz: Mini- Exame do Estado Mental, Teste das Matrizes Progressivas de J. C. Raven, Teste de Sondagem Intelectual, Teste de Aprendizagem Auditivo Verbal de Rey, Teste da figura complexa de Rey, Fluência Verbal, Alcance de Dígitos, Teste dos trigramas de consoantes, Teste de Stroop (Versão Vitória), Teste Gestáltico Visuo-motor de Bender, Token Test, Série Both de Testes Manuais. Conclusão: a avaliação das funções cognitivas indicam comprometimento cognitivo global com prejuízo mais acentuado nas seguintes áreas:
Funções executivas: memória de trabalho, raciocínio indutivo e dedutivo, capacidade de abstração, categorização, formação de conceitos, planejamento, inibição de respostas salientes, atenção e velocidade de processamento, susceptibilidade e interferência proativa e retroativa.
Aprendizagem e memória (verbal e visual): aprendizagem, retenção, evocação e reconhecimento de material verbal, aprendizagem, retenção e evocação de material visual e velocidade de esquecimento.
Motricidade: dificuldades sutis relacionadas à precisão e velocidade psicomotora.
Os comprometimentos apresentados nas funções executivas e na memória podem ser indicativos de comprometimento das atividades das regiões frontais, fronto-estriatais e temporais (bilateralmente). As funções motoras estão levemente comprometidas como resultado provável do uso do haloperidol. Cabe salientar que os prejuízos encontrados nestas modalidades avaliadas devem estar relacionados às dificuldades cognitivas globais apresentadas pelo paciente, bem como à sua baixa estimulação cognitiva.

- International Personality Disorder Examination - IPDE(1), instrumento aplicado em 26/03/01 por Dias (sob supervisão de Daker MV), procurando identificar transtornos de personalidade listados no DSM-IIIR e CID 10. Considera-se como ponto de corte 3 a 4 pontos para cada categoria específica. O paciente J.N.C. apresentou alta pontuação para transtornos de personalidade evitativa (10 pontos) e dependente (7 pontos). Apresentou também pontuação significativa para transtorno de personalidade esquizóide (4 pontos).

Hipóteses diagnósticas atuais

Diagnóstico pela CID-10:
- Tricotilomania - F 63.3
- TOC com predomínio de idéias ou ruminações obsessivas - F 42.0
- Transtorno de personalidade evitativa - F 60.6
- Transtorno de personalidade dependente - F 60.7
- Retardo mental leve? - F 70

Diagnóstico multiaxial pelo DSM-IV:
EIXO I : - Tricotilomania - 312.39
- TOC - 300.3
EIXO II : - Transtorno de personalidade esquiva - 301.82
- Transtorno de personalidade dependente - 301.6
- Retardo mental leve? - 317
EIXO III (condições clínicas gerais): sem condições relevantes
EIXO IV (nível de estressores psicossociais): estressor psicossocial crônico moderado a grave ( desemprego crônico, baixa inserção social duradoura )
EIXO V (funcionamento global: escala de 0, pior funcionamento, a 100, melhor funcionamento) : 40 - 50

Discussão

Inicialmente, consideramos para o paciente as hipóteses diagnósticas de tricotilomania, esquizofrenia e oligofrenia.

Quanto à tricotilomania, não há dúvidas.

Houve fatores que nos sugeriram a hipótese de esquizofrenia indiferenciada. Porém, com a evolução do caso e à luz de novas investigações, esses fatores adquiriram outro peso diagnóstico:
A presença de mussitações nos fez pensar inicialmente que o paciente sofresse de alucinações auditivas. Porém, relatos posteriores de J.N.C. afastaram essa hipótese. Lembramos ainda que seu relato de “falas que vinham em sua mente” não podem ser consideradas vivências alucinatórias, por não possuírem características de percepção, nem tampouco pseudo-alucinações, por não apresentarem evidência de realidade(2). O paciente sempre reconheceu que essas “falas” eram produto de sua própria mente. Souza sugere que esses fenômenos seriam melhor caracterizados como “representações sensorializadas”.(3)
O aspecto bizarro do paciente à primeira entrevista, que entretanto sofreu melhora progressiva durante o tratamento, à medida que os supercílios cresceram novamente.
Parecia haver evidência de um quadro processual, segundo a definição de Jaspers(4), pois surgiu algo novo na vida psíquica do paciente, no fluir de sua existência, que resultou em alteração permanente.
Havia sintomas que poderiam ser considerados negativos de esquizofrenia, tais como pobreza no conteúdo do discurso, abulia, apatia, interrupção das atividades produtivas, desleixo pessoal, declínio nas interações com familiares e amigos, redução do interesse sexual(5).
O fato de o paciente ter apresentado melhora clínica referente à tricotilomania, à mussitação e ao relacionamento social, mediante tratamento com neurolépticos, fez-nos pensar inicialmente que isso corroboraria um diagnóstico de esquizofrenia. Porém, uma revisão da literatura evidenciou o benefício do uso dos neurolépticos no tratamento da tricotilomania por si só. O primeiro trabalho nesse sentido, publicado em 1992 por Stein e Hollander(6), relata a adição de baixas doses (1mg) de pimozide ao tratamento de pacientes refratários ao uso de serotoninérgicos, com melhora de 6 em 7 pacientes. Mais recentemente, Stein et al(7) e Epperson et al(8) relatam melhora de moderada a significativa em pacientes com tricotilomania refratários a serotoninérgicos com a adição de risperidona. Ameringen et al(9) defendem que a tricotilomania tem características clínicas que a aproximam mais do Transtorno de Gilles de la Tourette do que do Transtorno Obsessivo-Compulsivo, sendo mais um transtorno da impulsividade do que da compulsividade. Assim sendo, e considerando-se que as medicações usadas no tratamento de TOC não têm uma resposta tão satisfatória na tricotilomania, esses autores sugerem que medicamentos usados no tratamento de Tourette, como os neurolépticos, poderiam ser tentados para tricotilomania. Em seu estudo, 6 pacientes com tricotilomania refratários ao uso de ISRS tiveram haloperidol adicionado a seu tratamento e 3 outros pacientes foram tratados apenas com haloperidol, com uma dose média de 1,1 mg/dia. Houve melhora clínica em 8 dos 9 pacientes, sendo que 7 deles tiveram uma interrupção completa ou quase completa da tricotilomania.
Chama a atenção a resposta inicial ao uso de haloperidol, com a interrupção quase total da tricotilomania, ter se mantido apenas parcialmente a longo prazo, apesar da manutenção da medicação. Keuthen et al.(10) avaliaram vinte e sete pacientes com tricotilomania, há dois anos e meio em tratamento com antidepressivos serotoninérgicos e terapia comportamental, isoladamente ou associados. A melhora na tricotilomania no início do tratamento não aumentou ao longo do tempo, se mantendo em um mesmo patamar. Houve ainda uma melhora inicial nos sintomas ansiosos e depressivos, no impacto psico- social e na auto-estima dos pacientes, que não se manteve ao longo do acompanhamento. São necessários estudos mais detalhados sobre a evolução a longo prazo e sobre a manutenção dos ganhos terapêuticos dos pacientes em tratamento para tricotilomania.

A hipótese de oligofrenia foi mantida e reforçada pela avaliação neuropsicológica, que sugere um déficit intelectivo leve ou, na melhor das hipóteses, um grau de inteligência no limite inferior da normalidade. Além disso, há o encerramento precoce dos estudos do paciente, que sugeriria um início das dificuldades cognitivas antes dos 18 anos, e as dificuldades adaptativas por ele apresentadas.

J.N.C. preenche ainda critérios diagnósticos para transtorno obsessivo-compulsivo, com predomínio de idéias ou ruminações obsessivas (os pensamentos intrusivos de cortar-se ou jogar-se na frente de carros). Antes ainda do primeiro atendimento, apresentava compulsões de limpeza, não observadas atualmente.

O paciente apresentou 10 pontos para transtorno de personalidade evitativa no IPDE, correspondentes aos seguintes critérios da CID-10 para esse transtorno: (a) sentimentos invasivos e persistentes de tensão, apreensão e desconforto em situações sociais; (b) alguns sentimentos de inferioridade; (c) preocupação em ser rejeitado em situações sociais; (d) relutância em se envolver com pessoas desconhecidas, cuja aceitação seja incerta; (e) restrições no estilo de vida devido à insegurança frente a situações desconhecidas; (f) evitação de atividades sociais e ocupacionais que envolvam contato interpessoal significativo. Este transtorno de personalidade pode explicar seu alto grau de limitação em atividades sociais, inclusive no contato normal com mulheres, bem como explicaria sua dificuldade inicial de procurar o tratamento.

Para transtorno de personalidade dependente teve 7 pontos no IPDE. Dentre os critérios da CID-10, apresenta: (a) permissão para que outros (no caso, sua mãe) tomem decisões importantes de sua vida; (d) sentimentos invasivos de desconforto e desamparo quando sozinho, por sentir-se incapaz de cuidar de si mesmo; (e) preocupações quanto a perder alguma pessoa com a qual tenha relacionamento íntimo e de ser deixado para cuidar de si próprio (sua grande preocupação é com a morte da mãe, note-se que sofrera muito com a morte do pai); (f) capacidade limitada de tomar sozinho decisões cotidianas. Este transtorno explica seu alto grau de dependência pela mãe e, de certa forma, também pelo seu médico (“o psiquiatra é a única pessoa com quem posso falar de meus sentimentos”).

Conforme o IPDE, teve 4 pontos para transtorno de personalidade esquizóide. Preenche completamente dois dos critérios da CID-10, que poderiam, por outro lado, ser justificados por seus traços evitativos: (f) preferência quase invariável por atividades solitárias; (g) preocupação excessiva com fantasia e introspecção. Quanto ao critério (h), apresenta a falta de amigos íntimos ou de relacionamentos confidentes (ou ter apenas um), mas não a ausência de desejo por tais relacionamentos. Em fase inicial do seu acompanhamento chegou a manifestar indiferença a relacionamentos sexuais - critério (e) -, o que não mais se verificou. Os demais critérios, como frieza emocional, indiferença a elogios ou críticas, insensibilidade para convenções sociais, não se aplicam ao paciente. Dessa forma, este diagnóstico se torna menos provável.

A tricotilomania tem altas taxas de comorbidade com outras patologias psiquiátricas, com destaque para transtorno obsessivo-compulsivo, mas incluindo também transtorno depressivo, transtorno de ansiedade generalizada, dependência química, fobia social e vários transtornos de personalidade(11). Não é comum a comorbidade de tricotilomania com esquizofrenia. Em revisão na PUBMED, foram encontrados apenas dois artigos relatando essa associação (12,13).

Summary
The authors present a 27 years male patient that presented trichotillomania and trichophagy, serious to the point of being without the eyebrows. Initially it was suspected comorbidity with schizophrenia and the patient presented visible initial improvement with neuroleptic employment. The development of the case and new investigations, as neuropsychological evaluation and the use of the International Personality Disorder Examination (IPDE), indicated comorbidity with obsessive-compulsive disorder, anxious personality disorder, dependent personality disorder and probably mild mental retardation, and excluded the schizophrenia diagnosis. The improvement with the neuroleptic use stayed only partially in long term. Serotonin reuptake inhibitors were also used. The authors discuss the comorbidities associated with trichotillomania, the differential diagnosis with schizophrenia and the role of neuroleptics in trichotillomania’s treatment.

Key words: Trichotillomania; neuroleptic; schizophrenia; obsessive-compulsive disorder; anxious personality disorder; dependent personality disorder; mental retardation.

Bibliografia:

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7. 7. Stein DJ, Bouwer C, Hawkridge S, Emsley RA. Risperidone augmentation of serotonin reuptake inhibitors in obsessive - compulsive and related disorders. J Clin Psychiatry. 1997; 58: 119-22.
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12. Tsai SI, Chang FR. Repetitive hair pulling associated with schizophrenia. BR J D Dermatol. 1998;138:1095-6.
13. Giersz T. A case of trichotillomania in schizophrenia. Psychiatr Pol. 1984; 18: 1 171-3.

* Agradecimento especial ao prof. Eduardo Queiroz