GUSTAVO FERNANDO JULIÃO DE SOUZA

SIMBOLIZAÇÃO:


UMA SÍNTESE SÓCIO-ANTROPOLÓGICA E PSICOLÓGICA

ÍNDICE:

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO I - SIGNIFICAÇÃO E CONHECIMENTO IMEDIATO ........................................04

CAPÍTULO II - SOCIALIZAÇÃO .............................................................................09

CAPÍTULO III - CONSCIÊNCIA COLETIVA E CONSCIÊNCIA INDIVIDUAL .........................22

CAPÍTULO IV - O SÍMBOLO LINGUÍSTICO E SUA DIFERENCIAÇÃO ..............................25

CAPÍTULO V - O PROBLEMA DO INCONSCIENTE ....................................................32

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................................54

INTRODUÇÃO:

A idéia de elaborar um trabalho teórico sobre o tema socialização nasceu de uma leitura do livro "A Construção Social da Realidade" de Peter L. Berger e Thomas Luckmann, do qual retirei dois conceitos que julguei bastante importantes. O primeiro versa sobre a origem das instituições sociais a partir de ações habituais humanas e o segundo se refere à definição de atores e papéis sociais. A partir desses conceitos, considerei possível desenvolver uma teoria sobre a origem das instituições sociais sob o ponto de vista da simbolização e para tal empreendimento contei também com a definição básica de Ernst Cassirer a respeito da mediação do sensível pelo simbólico. Comecei, então a empresa por uma parte que denominei "Significação e Conhecimento Imediato", onde procurei estabelecer e definir conceitos que levassem à compreensão essencial dos aspectos mais minuciosos e íntimos do fenômeno da simbolização. Isso foi realizado deliberadamente de modo sumário e sintético através da apresentação dos postulados teóricos fundamentais e necessários para a compreensão de tudo o que viria a ser exposto e discutido posteriormente. Porém, à medida que refletia sobre a aplicação desses postulados teóricos no processo de socialização, considerei que poderia fazer algo mais extenso e que conseguisse abranger outras áreas do conhecimento, especialmente Psicologia Analítica e Psiquiatria através da aplicação do conceito de inconsciente. As idéias foram se sucedendo e se encadeando umas às outras e no final estava diante de um trabalho norteado exclusivamente por aquilo que conhecemos pelo nome de simbolização e que, na realidade, é a verdadeira infraestrutura teórica de tudo o que foi tratado neste ensaio. Tornou-se necessário, desse modo, fazer o esclarecimento mais completo possível a respeito do referido fenômeno e, com efeito, foi o que tentei realizar através da síntese e conciliação dos vários elementos teórico-conceituais pertencentes aos campos de estudo da Antropologia Filosófica, Antropologia Cultural e Social e Filosofia. O maior desafio presente nessa tarefa consistiu na tentativa de compreensão do mecanismo do inconsciente à luz das minhas concepções sobre o fenômeno da simbolização e, felizmente, para minha satisfação, tanto uma como a outra área de indagações foram elucidadas de maneira coerente e satisfatória. Dessa forma, tanto as concepções teóricas sobre o fenômeno da simbolização quanto o entendimento relativo ao mecanismo do inconsciente calcado naquelas, ficaram mais sólidas e fortalecidas, pois provaram a sua consistência e viabilidade por si mesmas, reciprocamente. Cabe, ainda, esclarecer que empreguei o termo dialético no sentido lato e não no estrito, o que pode servir para evitar possíveis e fundadas críticas.

Finalizando, tenho que dizer que procurei oferecer ao leitor, dentro do que foi explicado, algum material teórico que lhe pudesse interessar e servir para reflexão. Caso o tenha conseguido sob a forma de curiosidade, aquiescência ou questionamento, considerarei cumpridos e satisfeitos os motivos que me levaram a empreender a presente tarefa.

Belo Horizonte, junho de 1987

Gustavo Fernando Julião de Souza

NOTA ESCLARECEDORA:

O presente ensaio foi concluído no mês de junho de 1987, como o demonstra a data assinalada no final da INTRODUÇÃO.

Em meados deste ano consegui um exemplar de uma das obras capitais de ERNST KRETSCHMER intitulada "PSICOLOGÍA MÉDICA"* , livro por sinal bastante difícil de ser adquirido devido ao fato de não estar sendo editado há bastante tempo. Ao empreender a leitura do referido livro, grande foi a minha surpresa ao constatar a coincidência de diversos pontos de vista teóricos e formulações conceituais por mim estabelecidas com outras da mesma ordem feitas pelo renomado estudioso e psiquiatra alemão. Para citar um exemplo, a propósito do estudo do caminho percorrido pelo símbolo, partindo do senso-percepção rumo à intelectualidade, essa concepção, de minha autoria, guarda uma impressionante semelhança com as conceituações kretschmerianas de "Leyes de la Proyeccion de Imágenes" (pág. 93) e de "Sensación, Imagen y Objeto" (pág. 95) desenvolvidos no CAP. VI daquele livro e que se intitula "El Psiquismo y su Evolución" pertencente à segunda parte denominada "Os Aparatos Psíquicos y su Formación Evolutiva" (pág. 82). Da mesma forma, o autor desenvolve um estudo das analogias entre o pensamento primitivo, o pensamento infantil e os estados mentais patológicos, especialmente no que se refere à esquizofrenia e à histeria. Na realidade há muitas diferenças, mas também existem muitas semelhanças conceituais entre o que estabeleci no presente ensaio e aquilo que estabeleceu aquele importante autor em seu livro. E é exatamente esse caráter de semelhança entre as duas concepções teóricas que é necessário ressaltar com o objetivo de prevenir e evitar possíveis mal entendidos ou críticas tendenciosas ao presente ensaio. Por outro lado, devo confessar que é muito difícil deixar de se sentir lisonjeado a partir do momento da constatação de tais coincidências teóricas, levando-se em conta a enorme dimensão intelectiva e a importância histórica fundamental daquele que se constituiu em um dos mais notáveis nomes da Psiquiatria Contemporânea.

Belo Horizonte, agosto de 1988

Gustavo Fernando Julião de Souza

I -SIGNIFICAÇÃO E CONHECIMENTO IMEDIATO:

Pensamos que a noção de si mesmo tem origem em um tipo de consciência rudimentar que surge numa fase arcaica do desenvolvimento humano, atingindo sua plena substanciação em um período de crescimento e amadurecimento do psiquismo que tem lugar na inserção do homem no eixo social.

A consciência mais rudimentar de si mesmo coincide com o processo de diferenciação entre o ‘eu’ e o ‘não eu’, utilizando a criança, nessa etapa, toda uma vertente sensoperceptiva que a auxilia a situar-se em um meio no qual começa a perceber que existe cercada de outras coisas.

É lícito supor que a noção de si mesmo começa a delinear-se na criança à medida que se torna mais nítida a delimitação física de seu corpo paralelamente ao desenvolvimento completo da capacidade de utilizar símbolos em suas representações ideativas.

A partir do momento em que consegue simbolizar, é dado um grande passo para a sua separação do mundo circundante o qual, até então, sentia como uma continuação concreta de si mesma. O símbolo é algo que retira a criança dessa concretude mágica e infinita, que a faz abrir mão do desejo concreto de possuir em si própria o ilimitado para contentar-se em ter em si mesma coisas limitadas e representadas, com a consciência de que agora estão situadas fora de si.

Começa a estruturar-se, nesse momento, a consciência de significação do mundo, isto é, a capacidade de perceber, de adjudicar, de julgar e de integrar as coisas fora de si. A aquisição da consciência de significação do mundo é conseguida através da aprendizagem de normas sociais a partir da própria socialização a que é submetida a criança, além da maturação neurobiológica de certos setores psíquicos que tornam esse processo viável.

A operação de socialização é processo de natureza exclusivamente simbólica e é capacitada pela introdução da linguagem no universo da criança. As leis sociais, utilizando como veículo a linguagem, introduzem a finitude no ilimitado, delimitam o descontínuo. A consciência de significação do mundo, pouco a pouco, passa a institucionalizar-se e a tornar-se consensual. Rompem-se progressivamente os vínculos mágicos que uniam a criança ao mundo e que a amalgamavam a ele.

A estruturação e ordenação institucional da consciência de significação do mundo permitem o assentamento e a legalização da consciência de si mesmo entre os outros, viabilizando a sua própria existência.

A consciência de significação do mundo é algo que, à medida que adquire diferenciação, torna-se um atributo importante da consciência de si mesmo que ajudou a formar e da qual também faz parte.

A consciência de significação do mundo adquire progressivamente a capacidade de classificar, de ajuizar, de entender e de significar a enorme variedade de coisas do mundo externo, desde o que se refere à sua extrema diversidade e também às suas nuances.

Aí está, portanto, o núcleo básico da consciência de significação do mundo que é o entendimento e a compreensão das coisas do mundo externo.

Levando adiante esse raciocínio, terminaríamos por indagar em que consiste exatamente o fenômeno significação em termos de entendimento e de compreensão íntima, isto é, qual a natureza do fenômeno em si mesmo?

Como definição, podemos dizer que o fenômeno significação corresponde à plenitude do conhecimento subjetivo, isto é, à apreensão completa do símbolo pelo campo da consciência em toda a sua inteireza, reconhecendo-o como idêntico ou semelhante à coisa objetivada a qual, por outro lado, relaciona-se direta ou indiretamente a outro(s) equivalente(s) simbólico(s) anteriormente reconhecido(s) e fixado(s) pela memória.

É necessário esclarecer que estamos empregando o termo equivalente simbólico como a potencialidade múltipla de significação, isto é, a coisa objetivada no início do processo pode corresponder a mais de um sentido intrínseco, o qual somente se definirá na etapa final de significação.

É claro que, quando pensamos em uma coisa qualquer, só o conseguimos – e isso requer um exercício contínuo de inteligibilidade subjetiva – em termos de equivalentes simbólicos dela mesma, isto é, o exercício do pensamento configura mecanismos de representação.

A representação corresponde à fixidez ou à ‘impressão’ do equivalente simbólico no campo da consciência e que é um momento estático que se renova sucessivamente no fluxo contínuo e dinâmico do processo de entendimento pleno que tem lugar na consciência.

Significação é, portanto, o fenômeno final de uma cadeia de eventos que tem início com a representação da coisa objetivada, ou seja, a situação de fixidez do equivalente simbólico correspondente àquela no campo da consciência, no fluxo contínuo e dinâmico do processo de entendimento pleno que tem lugar na consciência seguida pelo reconhecimento dentro do elo específico no qual ela se insere no momento e, finalmente, pelo reconhecimento pleno ou entendimento completo, isto é, pela integração simbólica total dos elementos participantes na consciência.

O fenômeno de significação é acompanhado sempre pela certeza da compreensão, pela convicção subjetiva de exatidão do entendimento e do conhecimento.

Podemos dizer, desse modo, que significação é o conhecimento subjetivo pleno, absoluto e convicto de uma coisa objetivada ou de um evento externo ou interno ao indivíduo em um determinado momento.


A sequência dos eventos citados pode ser representada da seguinte maneira:

1-‘Impressão’ do equivalente simbólico no campo da consciência.

2-Reconhecimento do equivalente simbólico em relação a outros equivalentes direta ou indiretamente interligados àquele.

3-Conhecimento subjetivo pleno.

É necessário esclarecer, ainda, que o campo da consciência é o setor da vida psíquica onde ocorre o fenômeno da significação, enquanto a consciência individual consiste no todo psíquico reflexivo, pessoal e único.

A noção de si mesmo, intermediada e forjada pelo simbólico através da consciência de significação do mundo, gradualmente evoluirá para a estruturação completa da consciência de si mesmo ou consciência individual dotada de um caráter singular de autonomia, atividade e identidade.

Concluídas as considerações anteriores, vejamos agora qual é a natureza do conhecimento disponível ao indivíduo e como ele se integra à consciência de significação do mundo como algo inquestionável e irrefutável em toda a sua extensão, ou seja, prescindindo do mínimo grau de reflexão íntima.

Quando uma coisa significa algo, não há nenhum movimento reflexivo nessa operação simbólica, mas sim uma identificação imediata, automática e irrefletida da coisa com o seu significado.

Poderíamos indagar então, de que maneira e por quê isso ocorre, qual a sua necessidade e a sua verdadeira importância dentro de um âmbito maior de investigação.

Em primeiro lugar, teremos que admitir que o homem, e o que é mais importante, exclusivamente ele, é dotado de uma estrutura – e aqui se faz necessária a postulação da existência de um substrato neurobiológico determinado – inerente ao seu psiquismo e que é capaz de operar simbolicamente desde que seja contínua e regularmente estimulada. Chamaremos essa estrutura de matriz simbólica.

Essa estrutura, certamente produto final de uma longa evolução e verdadeira aquisição filogenética, corresponderia à potencialidade funcional capacitativa de operar simbolicamente, ao que chamaremos de função simbólica.

Ainda, o ato ininterrupto de operar simbolicamente, denominaremos exercício simbólico.

Podemos concluir, dessa maneira, que a matriz simbólica (função simbólica) necessita de alguma espécie de ‘matéria-prima’ suficiente para que seja acionado e efetuado o exercício simbólico. Essa ‘matéria-prima’, por sua vez, equivale ao patrimônio simbólico que reside no complexo sócio-cultural onde o indivíduo está inserido.

Definiremos patrimônio simbólico como o imenso conjunto de sinais e símbolos que formam, eles mesmos, o eixo e as ramificações do sistema de inteligibilidade coletiva, o qual denominaremos sistema consensual ou senso comum.

Procurando definir mais precisamente esses conceitos, diremos que o patrimônio simbólico corresponde ao conjunto de representações simbólicas coletivas de cada complexo sócio-cultural, as quais podem ordenadas conforme múltiplas possibilidades de arranjo, estruturando, desse modo, determinados sistemas consensuais ou de senso comum.

Deparamo-nos, neste ponto, com o elemento essencial, pedra angular básica e fundamental para a constituição e interação desses sistemas e que é a linguagem.

A procura do princípio de harmonia ou de coerência e de organização simétrica das coisas do mundo externo parece resultar da força de ressonância inerente a essa estrutura, existindo, em si mesma, a tendência e a capacidade de classificar e adjudicar os objetos, ou seja, constituindo a potencialidade nominativa do ‘eu’.

A matriz simbólica possuiria em si mesma a capacidade de agir como uma espécie de matriz de significados, quer dizer, de criadora de nexo e sentido para as coisas do mundo externo, de indutora do surgimento de noções e conceitos, investindo assim o sensível de um caráter de plena inteligibilidade e compreensão. Isto é, de antemão, a condição prioritária para o estabelecimento de significados coletivos, ou seja, representações simbólicas coletivas que constituirão a base da comunicação humana e da organização social como um todo.

Podemos ainda supor que a potencialidade nominativa do ‘eu’ é primordialmente binária, isto é, originariamente discrimina o ‘eu’ do ‘não eu’, dito de outra maneira, a consciência individual sabe que não é outro.

Partindo, desse modo, de uma escala binária de potencialidade de discriminação, podemos pensar que, da estrutura da linguagem (função simbólica) poderiam resultar múltiplos pares de símbolo com possibilidades teóricas de se ramificarem, se adicionarem e justaporem a si mesmos, criando, desse modo, um acervo considerável de unidades simbólicas básicas de comunicação inteligível e capaz de abrigar significados em número suficiente para o êxito da comunicação humana. Dito de outra maneira, a matriz simbólica abrigaria em si mesma a potencialidade de representação de alguns pares de símbolo com ‘valências’ opostas de sentido, pares de símbolos básicos, primordiais no caráter de denotação.

O sucessivo desdobramento desses pares, pressionado pela necessidade de denotação de inúmeros graus de tessitura, nuances, detalhes e qualidades específicas, poderia originar uma escala correspondente a um número muito grande de símbolos lingüísticos que manteriam estreitos vínculos genéticos de significação entre si, embora à primeira vista assim não o parecesse.

Desse modo, é lícito supor que a matriz simbólica (função simbólica) confunde-se ou é ela mesma a própria estrutura predisponente da linguagem, isto é, uma estrutura capaz de gerar um fluxo contínuo de exercício simbólico e que se concretiza em termos de exercício lingüístico.

O exercício lingüístico, através da linguagem falada e escrita, somado ao conjunto de sinais correspondentes a expressões mímicas, gestuais e corporais ritualizadas, estruturará o léxico coletivo, base para o assentamento do sistema de inteligibilidade coletiva ou senso comum.

Estamos diante, desse modo, da verdadeira e única base estrutural que forjará o universo simbólico humano e que é o sistema de linguagem

Esse sistema já carrega em si mesmo o caráter de consenso, de aliança e de partilha, visto que os significados coletivos ou representações simbólicas coletivas são ofertados e compartilhados integralmente pelos indivíduos.

É oferecido sob a forma de senso comum ou, conforme vimos antes, como um verdadeiro sistema de inteligibilidade coletiva, de organização e de denotação coletiva específica.

Nisso consiste, portanto, a fonte para a significação e para o entendimento imediato, que é o conhecimento do dia a dia, do quotidiano momentâneo.

Os fatos usuais e costumeiros, o linguajar rotineiro, as expressões e atitudes comuns adquirem um caráter inteligível tão claro e uma compreensão íntima tão plena que estão muito além de qualquer tipo de movimento reflexivo voluntário individual que possa ser realizado.

Os significados coletivos ‘estão aí’, precedem a origem do indivíduo e suas experiências, impõem-se como tal carregados de sentido e de certeza de compreensão.

Contudo, longe de consistirem em um sistema estático, aparentando estar situados exclusivamente fora da consciência individual como pode parecer à primeira vista, na verdade fazem parte de um todo dialético, dinâmico e intrincado.

Podemos dizer que, ao mesmo tempo que a consciência individual utiliza o conhecimento imediato que lhe é oferecido através do sistema de inteligibilidade coletiva sob a forma de significados coletivos ou representações simbólica coletivas e que servirá para a sua ordenção institucional, tem ela mesma condições de introduzir mudanças ou produzir novos significados dentro desse sistema vigente.

Nisso reside o extremo dinamismo e as infindáveis flutuações do caráter de significação, levando-se em conta as mudanças possíveis de ocorrer através do tempo.

Consideramos de muita utilidade, objetivando uma visão de totalidade do que foi dito, rever os conceitos anteriormente emitidos através de uma representação diagramática como a que se segue:

MS = Matriz simbólica = Estrutura da linguagem
S = Campo da Consciência
S’ = Significação
Q = Consciência Individual
PS= Patrimônio simbólico = Sistema de Inteligibilidade coletiva = senso comum
Es = Simbolização = Exercício lingüístico

De acordo com esse esquema, vemos com nitidez como se efetua a integração recíproca entre PS (Patrimônio Simbólico) e a MS (Matriz Simbólica) , resultando no exercício simbólico (ES) que, na verdade, se concretiza em exercício lingüístico que é a base de comunicação humana.

Vemos também que o conhecimento imediato e cotidiano se realiza no campo da consciência (S), através do processo de significação (S’) e que isso irá constituir o alicerce de formação da consciência individual (Q).

Consciência individual , senso comum, matriz simbólica e sua ‘matéria-prima’, o patrimônio simbólico , são nomes dados a estruturas e funções que equivalem a várias dimensões de um fenômeno resultante de um complexo jogo dialético, o fenômeno humano.

II- SOCIALIZAÇÃO:

Dissemos anteriormente que a plena substanciação da consciência de si mesmo tem lugar na inserção do indivíduo no eixo social. Por esta razão, de posse dos conceitos estabelecidos no capítulo anterior, passaremos a fazer um estudo do processo de socialização.

Em primeiro lugar tentaremos esclarecer exatamente de que se trata esse processo e em que necessidades está apoiado, para em seguida elucidarmos de que forma ele se efetua e desenvolve.

Entretanto, para conseguirmos algum esclarecimento a respeito da natureza desse processo, teremos que elaborar uma teoria que nos permita compreender exatamente de que maneira o homem inseriu-se em uma ordem social nascente produzida por ele mesmo, em seus primórdios e, além disso, se fará necessário que investiguemos os fatores que confluíram para viabilizar essa inserção.

Para que consigamos tal intento é preciso que voltemos os olhos para um passado remoto e longínquo, tão desconhecido como fascinante e tão complexo quanto obscuro.

Em vista disso, na exposição que se segue, procuraremos inicialmente ressaltar e definir os conceitos básicos que julgamos necessários para a construção do arcabouço da teoria proposta, partindo em seguida para a formulação e ordenamento dos elementos conceituais finais, os quais, através de uma interação dialética, comporão o eixo central daquela.

É nosso pensamento que o homem, ser simbólico por excelência, só conseguiu constituir-se como tal à medida que alguns fenômenos, ocorrendo em caráter sincrônico, chegaram, em alguma época, a se configurar como em uma verdadeira interseção, levando, desse modo, à profunda transmutação que o lançou definitivamente no universo simbólico.

Como uma primeira pergunta, poderíamos indagar como esse processo teve início e para começar a responder precisaremos lançar mão, como hipótese de trabalho, de um conceito definido no capítulo anterior, que é o princípio nominativo humano.

É possível supor que o princípio organizador humano que se manifesta sob a forma de classificar e exercer o princípio nominativo caminhe lado a lado com a necessidade profunda do homem de experimentar algum tipo de organização coletiva. Á medida que progride o conhecimento das coisas do mundo externo, desenvolve-se a necessidade de organizá-las e também de justificá-las e legitimá-las.

Acreditamos – e isso se constitui em um consenso pacífico entre praticamente todos os autores que se ocupam do tema - que não seria incorreto dizer que a necessidade de organização social é algo profundamente enraizado no caráter do homem e que o seu início ocorreu independentemente da razão humana tal como a conhecemos, ou seja, expressou-se sob a forma de ritos mágicos e normas de tabu.

No entanto, a produção mítica que emoldurou o universo simbólico humano carregava em si um tipo de legitimação e de normatização dos diversos níveis de convivência entre os indivíduos, isto é, foi capaz de estruturar a formação de uma ordem social.

Quanto a isso, vemos claramente que as normas de tabu encerrando de maneira geral um núcleo de proibição, seja ele referente, por exemplo, ao ato de tocar um morto ou mesmo de pronunciar sílabas que estão presentes no nome do chefe da tribo, equivalem a graus de ritualização do comportamento coletivo, de tipificação dos hábitos dos indivíduos.

É evidente, desse modo, que a produção mítica abriga a lei, que, por sua vez, irá induzir a legislação da convivência humana. Sob o vôo etéreo do mito, descortinamos a espantosa funcionalidade da união social.

O ‘não poder fazer’ e o ‘ter que cumprir’ já são os primeiros significados sociais que originarão os papéis a serem desempenhados por atores típicos em uma reciprocidade contínua de ações habituais (1).

Papéis são modos de ação, tipos específicos de atitudes desempenhadas por atores (1) que já sabem instantaneamente o que desempenhar com exatidão porque aprenderam o alfabeto social e estão continuamente integrando os significados sociais à sua disposição no enorme ‘script’ social, o senso comum.

Os adultos significativos e os membros do meio social se encarregarão de promover a aculturação da criança com a finalidade de integrá-la entre os outros, de legalizar a sua existência nesse meio, isto é, de socializá-la.

Á consciência, em seus estágios iniciais, é oferecido todo um mundo completamente inteligível e legitimado, cheio de propósito e finalidade. As coisas do mundo ‘estão aí’, elas são integralmente dotadas de sentido, harmonicamente ordenadas e justificadas em si mesmas.

Nisso se constitui a alma de todas as instituições humanas e o processo de socialização da criança realizado através da educação consiste em ‘imprimir’ toda uma vasta série de significados consensuais ou sociais naquilo que denominamos consciência de significação do mundo.

Pelo termo significado social entende-se o conteúdo simbólico que traz a certeza de conhecimento e de entendimento daquilo que é familiar e corriqueiro, do tipo de papel que se deve desempenhar no momento adequado e esperado. Carrega consigo o sentido de legitimidade e de inteligibilidade de ação efetuada ou da mensagem emitida, acompanhado por um estado efetivo subjacente de mínima carga de tensão emocional ou de sensação de desconforto. Corresponde às ações ou mensagens habituais significadas em um clima de calma rotineira, não sendo necessário um esforço voluntário para aprender a significá-las e adequá-las aos momentos específicos e muito menos para compreendê-las, para descobrir a sua inteligibilidade intrínseca.

Acreditamos que nos primórdios do desenvolvimento do homem as ações se foram tornando habituais provavelmente porque correspondiam às formas de agir que mais convinham às necessidades de seu grupo social, isto é, as que traduziam maior economia de esforço e maior ganho de benefícios solidários coletivos passaram a induzir a formação de diversos tipos de conteúdo simbólico que se foram tornando cada vez mais pertinentes e enformados á medida que essas ações bem sucedidas repetiam-se com regularidade de freqüência.

É comum em nossas experiências cotidianas observarmos que esse fenômeno acontece quando, por exemplo, sendo forçados a uma mudança de forma de vida, desenvolvemos novos hábitos que se incorporam rapidamente à nova rotina de maneira a evitar gasto energético inútil e procurando manter uma situação de economia interna.

É bem possível que isso corresponda a uma capacidade intrínseca do homem, a uma potencialidade adaptativa que favoreceu o seu êxito biológico, impulsionado pela sua vontade e curiosidade, fontes inquestionáveis de sua razão.

É interessante notar como os conteúdos simbólicos correspondentes às ações habituais bem sucedidas para o grupo social foram inicialmente manifestados sob a forma de expressões pictóricas e de ritos mágico-sagrados.

Quando observamos, por exemplo, uma pintura rupestre relativa a uma cena de caça, não podemos deixar de pensar na extrema importância de que se revestia essa atividade para a sobrevivência do homem e de seu grupo social e, mais ainda, na importância que representava para a manutenção da ordem social nascente e de sua organização interna, para o estabelecimento e conservação dos esboços de papéis sociais e distribuição de trabalho e de relações de poder entre os seus membros.

A expressão pictórica equivalente a uma ação habitual específica era algo visto e sentido pelos integrantes do meio social como uma ação comum imbuída de um caráter de partilha solidária.. O drama cotidiano estava ali, diante do grupo tornava-se familiar a todos, despertava basicamente o mesmo espectro de emoções e sentimentos, era significado da mesma forma. Contudo, esse drama pictórico, além de simbolizar o sucesso do homem do mundo e seu êxito perante todas as vicissitudes naturais, exprimia talvez as primeiras noções de significados sociais, a importância da coesão do grupo e a necessidade de manutenção da ordem social sustentada pela divisão específica de papéis entre os indivíduos.

Os atores típicos começavam a desempenhar os seus papéis dentro de uma reciprocidade contínua de ações habituais. Estava nascendo uma das primeiras instituições humanas, a instituição da caça.

Da mesma maneira, os ritos mágico-sagrados também expressavam a manifestação de conteúdos simbólicos calcados em ações habituais. Os ritos correspondentes aos mitos cosmogônicos e escatológicos traziam em si a necessidade de reafirmar periodicamente a origem sagrada do homem, ou seja, sua repetição regular reafirmava a plena convicção nos mitos partilhada coletivamente.

A produção mítica exteriorizada sob a forma de ritos é mais um exemplo da relação dialética entre conteúdos simbólicos e ações habituais. Basta pensar nos ritos mágicos relativos, por exemplo, às cerimônias de iniciação tribal mediando transformações de papéis sociais, veiculando mudanças dos ‘status’ sociais nos indivíduos que delas participam, em suma, remanejando e regulando a homeostase dos grupos sociais.

Quando, em outro exemplo, os ritos se referem às origens dos cereais e vegetais, na verdade o que ocorre é a sacralização das ações habituais coletivas bem sucedidas referentes às atividades de colheita que originaram e continuam favorecendo o êxito biológico grupal através dos tempos. A tortuosa saga da tribo é narrada e repetida muitas vezes reafirmando-se a importância da coesão social, da manutenção da ordem social e da divisão de trabalho e de relações de poder entre os membros do grupo.

O rito nada mais é que uma ação específica pertencente à esfera do sobrenatural e efetuada por indivíduos que são dotados de um determinado ‘status’ os quais desempenham o seu papel como membros constituintes de uma instituição religiosa socialmente legitimada. Essa ação ritualizada pertence a um tipo de cotidiano, o cotidiano sagrado, mas nem por isso se situa fora do sistema de inteligibilidade coletiva, o senso comum. Ao contrário, o membro do grupo sabe que as cerimônias de sacralização realizadas pelo xamã ou feiticeiro pertencem ao seu próprio mundo, estão cheias de propósito e de finalidade, estão dentro de sua "Weltanschauung", ou seja, pertencem à visão cognitiva da vida e do ambiente total que ele e os outros têm.

É necessário, neste ponto, discriminar e definir os dois tipos básicos de cotidiano: o cotidiano profano e o cotidiano sagrado.

O primeiro abriga os significados sociais de caráter prático, usual, rotineiro e familiar, equivalentes a conteúdos simbólicos correspondentes às ações significadas dentro de um sentido de inteligibilidade acessível ao homem comum. Contém, portanto, os significados sociais que são compartilhados por todos os membros do grupo e que são acompanhados por um estado afetivo subjacente de mínima carga de tensão emocional.

O segundo abriga significados sociais de caráter sobrenatural, incomum e extraordinário, equivalentes a conteúdos simbólicos correspondentes a ações significadas dentro de um sentido de ininteligibilidade, de mistério e de incompreensibilidade. Não são acessíveis ao homem comum, mas apenas aos indivíduos investidos de ‘status’ específicos para decifrá-los e transmitir o seu sentido de inteligibilidade aos demais. São acompanhados por estados afetivos de exaltação, de horror, de medo e de fascínio.

Vemos aí, claramente, como se estruturam as relações de poder entre os diferentes indivíduos do mesmo grupo social, como as leis sociais são cobertas pelas vestes da magia, do mistério e do sagrado sem que, à primeira vista, se possa suspeitar de uma tão grande eficácia funcional.

As duas esferas, a do profano e a do sagrado, interpenetram-se de tal maneira que no cotidiano profano encontram-se elementos sagrados imiscuindo-se e impregnando todas ou quase todas as ações habituais e as atividades rotineiras e vice-versa, o cotidiano sagrado encontra-se povoado de elementos profanos. Os deuses também excutam atos humanos, simples e corriqueiros e os homens comuns podem às vezes adquirir uma centelha divina, transmutando-se, assim, em heróis. Estes são significados sociais que permitem a legitimação de intercâmbios e alternância das relações de poder entre os membros do grupo social, atendendo à necessidade de legalizar o surgimento de lideranças emergentes personificadas por indivíduos dotados de alto valor de diferenciação física e intelectual.

Parece provável que a grande escalada da evolução social humana obedeceu a grandes ‘saltos’, ocorrendo vários fenômenos tão intimamente relacionados e interligados que, sob o ponto de vista temporal, é provável que alguns deles tenham se dado de uma forma quase superposta e simultânea com caráter de continuidade orgânica, sucessiva e indeterminada. As aquisições progressivas de características peculiares devem ter sido agregadas cumulativamente até o ponto de representarem novas formas de significação dotadas de maior precisão denotativa, correspondendo então a etapas decisivas desses ‘saltos’ evolutivos.

Entretanto, apesar das dificuldades, faz-se necessário tentar localizar e definir pelo menos algumas dessas etapas para que se consiga ter uma visão panorâmica elucidativa dos eventos importantes que se foram sucedendo.

Dissemos antes que as normas de tabu já correspondiam aos primeiros significados sociais que originariam os papéis sociais a serem cumpridos por atores típicos em uma reciprocidade contínua de ações habituais.

Pois bem, é razoável supor que as normas de tabu consistiram nos verdadeiros alicerces para a ascensão e aprimoramento progressivo do sistema social até a formação de estruturas mais complexas, como as instituições sociais.

Em um nível de organização social mais simples, é provável que as normas de tabu consistissem nas referências mais importantes e quase exclusivas que eram capazes de nortear e caracterizar a visão do mundo e do meio ambiente para os membros de um grupo social, regendo, desse modo, todas as suas atividades rotineiras e práticas. Contudo, a permanência desse código rígido por um período de tempo indeterminado e indefinido, apesar de ter sido ele o responsável pela estruturação de uma ordem social nascente, provocaria inevitavelmente um estado de imobilidade social, uma absoluta inércia de significação coletiva e uma inibição completa de exercício de ações inovadoras.

As normas de proibição já não eram qualitativamente eficientes e nem quantitativamente suficientes para mediar novos e mais complexos conteúdos simbólicos correspondentes a novas e múltiplas ações habituais bem sucedidas.

O princípio ou a potencialidade nominativa humana começava a querer compreender o meio externo e seus fenômenos mais simples, já esboçava interrogações sobre a sua própria origem e a do universo circundante, urgia aprender a dominar os meios de subsistência mais acessíveis e próximos de si, necessitava iniciar transformações no ambiente, precisava, enfim, agir e atuar no mundo.

As normas de tabu tolhiam as ações do homem, refreavam a sua vontade e curiosidade. Até então, ele era parte indissociável da natureza, imerso em uma irmandade totêmica, orgânica e abrangente, membro de uma verdadeira Sociedade da Vida (2). As normas de tabu impediam qualquer profanação dos elementos naturais que se revestiam de um caráter sagrado e lhe despertavam sentimentos de temor e respeito.

Á medida que, impulsionado por necessidades biológicas, foi obrigado a aumentar progressivamente o seu raio de ação no mundo externo, foram surgindo novas ações habituais que, por seu turno, correspondiam a novos conteúdos simbólicos mais complexos equivalentes a níveis de relações de poder e de organização econômica mais intrincados dentro de um sistema social em contínua diferenciação.

Isso forçou o aperfeiçoamento das relações formais entre os indivíduos como, por exemplo, o estabelecimento de ‘status’ e posições sociais e a regulamentação de graus de parentesco veiculados por significados sociais mais elaborados em termos de significação e compreensão coletivas. Os primeiros grupos de significados sociais integrados sob a égide da significação consensual e associados a equivalentes afetivos correspondentes a estados subjetivos expressos como ‘bom’ e ‘mau’ já constituíam esboços de sistemas éticos e morais, podendo ser chamados de paradigmas sociais.

Poderíamos dizer que os significados sociais, concatenados ‘em rede’, originaram os paradigmas sociais, tipos de sentenças ou leis sociais, isto é, complexos simbólicos que traduziam unidades denotativas de ação e de comportamento coletivo específico, oscilando entre os pólos de proibição e da permissão, ou seja, revestidos de um caráter negativo ou positivo, respectivamente.

Até então, as ações habituais coletivas e os significados sociais emanavam do pólo da proibição das normas de tabu, correspondentes ao núcleo visível e bem estabelecido da interdição social. O pólo oposto, o da permissão, ainda não se manifestara no sentido de incentivar e promover atitudes e ideais coletivos mais elevados e aprimorados, estando, de certa forma, à sombra do pólo de proibição, com os significados sociais produzindo-se sobre um fundo de verdadeira contração existencial.

No entanto, quando a relação bipolar linear converteu-se em uma relação bipolar espacial através de um giro angular, o pólo da permissão aflorou completamente e passou a produzir significados sociais sobre um fundo de expansão existencial plena.. A figura 02 pode ilustrar esta concepção através da seguinte representação diagramática:

a = Pólo de Proibição;
b = Pólo da Permissão apresentando uma forma de relação linear com o pólo de proibição;
a = Giro Angular;
b’ = Pólo de Permissão após o giro angular, dotado agora de um caráter de expansão e apresentando, nesse estágio, uma forma de relação espacial com o pólo de proibição.

À guisa de comparação, poder-se-ia dizer que, a um período de enchimento social lento, cuidadoso e vagaroso como numa verdadeira diástole, seguiu-se um outro de arrojo e vigor acentuados como numa poderosa sístole existencial, correspondendo ao avanço e domínio do homem sobre o meio ambiente e à necessidade simultânea e paralela de diversificação inovadora dos dispositivos sociais.

É provável que no estágio de predomínio do pólo de proibição fossem produzidas algumas ações inabituais de ‘escape’ relativamente aleatórias e ‘experimentais’ para a coletividade, porém ainda destituídas de verdadeira e autêntica legislação, isto é, isentas de sólida legitimidade consensual. Posteriormente, as que representassem maiores vantagens adaptativas para o grupo seriam selecionadas e sancionadas para uma futura legalização e ritualização coletivas, sendo assim inseridas dentro do âmbito do senso comum.

Podemos tentar compreender essas etapas de transição da seguinte maneira: o exercício de ações inabituais, de início esporádicas e depois persistentes, deveria ser observado pelo grupo primeiramente com surpresa, seguindo-se uma aceitação condescendente equivalente a uma permissão passiva e silenciosa até atingir o estágio de legalização e ritualização dessas ações (permissão ativa) que, então, se converteriam de inabituais para habituais sendo os seus significados sociais incluídos dentro do senso comum vigente.

A clara compreensão dessas etapas sugere que todas as instituições se foram erigindo durante a consecução desses passos fundamentais, ou seja, foram sendo construídas dentro de um processo de expansão e agregamento contínuo de significados sociais cada vez mais complexos porém sempre ligados e geneticamente derivados de uma base constituída por significados sociais mais simples emanados do pólo de proibição ou de tabu.

O nascimento e o desenvolvimento das instituições humanas caminhou lado a lado com a necessidade de se legislar o todo da ação social, ao mesmo tempo em que cada detalhe das relações interpessoais era cuidadosamente catalogado e codificado. À medida que, atendendo às necessidades crescentes do grupo, era formado sobre o princípio da ordem social um esboço de sociedade civil, foi imperativo o processo de legislação encerrando, em si mesma, o caráter de legitimidade e legalidade dessa sociedade em contínua expansão.

Coube e ainda cabe à tradição, isto é, a incessante transmissão dos caracteres inteligíveis e legitimados da ordem social estabelecida às sucessivas gerações, a tarefa de consolidar a legitimidade e a inteligibilidade das instituições humanas através dos tempos.

Podemos tentar explicar aqui, para ilustrar como exemplo do que foi dito, a norma universal da proibição do incesto.

A instituição do casamento obedece a esse paradigma social de caráter inflexível e severo. Sejam quais forem as origens e fins dessa lei que levou a espécie humana a rejeitar os casamentos consangüíneos, provavelmente ela teve o seu início e o seu desenvolvimento dentro dos estágios progressivos de evolução social conforme vimos antes, quer dizer, trata-se de um paradigma social que regula a instituição do casamento e que é emanado diretamente do pólo de proibição ou de tabu.

Podemos presumir que a interdição do casamento aos indivíduos do mesmo grupo cultural (endogamia), provavelmente calcada na proibição do incesto, naturalmente forçou a escolha de cônjugues em outros grupos diferentes, incentivando diretamente a legitimação dessas uniões em termos de exogamia. Nesse caso específico, vemos que a exogamia foi a solução encontrada para a proibição geral da endogamia e é muito possível que isso possa ter representado um fator muito importante para o incremento do intercâmbio entre clãs totêmicas diferentes, favorecendo a comunicação interpessoal e trazendo benefícios tão grandes para a espécie humana que ainda talvez estejamos longe de suspeitar. Esse fato serviria como exemplo oportuno da manifestação do pólo de permissão, advindo assim novas ações, hábitos e costumes, incitadas a surgirem devido ao estabelecimento da interdição, da proibição e da recusa, próprias do pólo de contração.

De maneira geral poderíamos afirmar também, com boa margem de segurança, que todos os sistemas de parentesco foram estabelecidos partindo das mesmas bases e apoiadas em necessidades específicas dos diversos grupos sociais.

No capítulo anterior vimos a relação dialética entre consciência individual e patrimônio simbólico e, agora, teremos a oportunidade de entender e tentar esclarecer ainda mais essas definições e conceitos com base no que dissemos há pouco. A figura 03 mostra a inter-relação esquemática entre o patrimônio simbólico, agora enriquecido com os seus constituintes, isto é, significados sociais, paradigmas sociais e instituições sociais e a consciência individual:

a = Pólo de Proibição;
w e w’ = Significados Sociais;
p, p’, p’’, q e q’ = Paradigmas Sociais;
Q = Consciência Individual;
b’ = Pólo de Permissão;
IS = Instituição Social;
PS = Patrimônio Social;
S = Campo de Consciência;
S’ = Significação;
MS = Matriz Simbólica;
Es = Simbolização = Exercício Lingüístico

Até aqui, atendendo ao nosso objetivo inicial, vimos os conceitos importantes e procuramos defini-los da maneira mais clara possível e agora é chegado o momento de partir para a apresentação do eixo central de nossa teoria que é constituída por três elementos conceituais fundamentais configurados em um nível de relações dialéticas e que são: conteúdos simbólicos, ações habituais e significados sociais.

Quanto ao primeiro elemento conceitual, poderíamos também chamá-lo de representação simbólica unitária ou neoformação simbólica original, partindo do pressuposto – de cunho eminentemente teórico-didático, com o objetivo de facilitar a exposição e a compreensão – de que um indivíduo ou um pequeno grupo de indivíduos (de qualquer modo uma unidade), em época remota e alhures, começaram a significar certas ações habituais, ou seja, iniciaram a ter entendimento pleno delas mesmas e compreenderam à sua maneira que era necessário continuar efetuando-as continuamente. E mais, talvez simultaneamente tivessem percebido que era também necessário transmitir essa aprendizagem para os seus descendentes tal o êxito imediato que se lhes afigurou diante da funcionalidade positiva de tais ações. É bastante provável que a matriz simbólica, possivelmente em fase final de maturação evolutiva, já tivesse condições de funcionar como uma espécie de matriz potencial de conceitos ou noções, isto é, de significados, em correlação direta e recíproca com o sistema mecânico de fonação, este também em um estágio bem avançado de aperfeiçoamento evolutivo e sendo fisiologicamente o setor mais apropriado e natural para a materialização sonora e locução de alguns enunciados com estrutura fonética simples.

Agora consideremos, estamos empregando os termos noção, conceito e significado como sinônimos que denominam um fenômeno chave hipoteticamente produzido pela matriz simbólica. Estas denominações podem se revestir de um caráter de dubiedade, ingenuidade e até de otimismo, quando se considera que é nesta necessidade de precisão conceitual que carrega em si um afã que atinge um grande esforço reflexivo, é exatamente neste ponto que reside a dificuldade de se falar a respeito não do abismo transposto pelo homem, mas sobre o grande salto que foi dado para transpô-lo. Sim, pois a mediação do sensível pelo simbólico, investindo-o de um sentido (2), representou uma nova aquisição apoiada na qual a espécie humana se transmutou para efetuar o salto que a levou ao outro lado do abismo da evolução, à outra extremidade do grande fosso que a separou definitivamente das outras espécies animais, lançando-a definitivamente no universo dos sonhos, das fantasias e dos desejos.

Pois nada mais resta a fazer senão tentar conceituar conceitos e procurar definir definições, em suma, empilhar palavras sobre palavras à procura da narrativa vã e perdida daquilo que aconteceu do outro lado na vasta noite dos tempos e que agora se nos assoma como inefável em seu âmago de total realidade apreendida, acostumados que estamos a vislumbrar e tentar compreender esse longo momento com os olhos acomodados e embebidos de simbolismo.

No entanto, apesar de todas as dificuldades, esse longo momento de transição consumou-se, não obstante as imprecisões das definições e as distorções da lente simbólica empenhada em perscrutar e decifrar o início do processo no espaço perdido, na dimensão não simbólica.

Isso posto, somos levados a considerar que foi na linguagem que o simbólico constituiu-se a si mesmo e conseguiu preencher de sentido o sensível, estabelecendo-se como unidade visível e inteligível do processo de comunicação humana. A matriz simbólica, desempenhando o papel de matriz potencial de significados, de conceitos e de acepções, só conseguiu firmar-se como tal à medida em aqueles significados eram continuamente realimentados pela parte fônica, pela imagem acústica de um fonema ou seqüência de fonemas, ou seja, de significantes, provendo-se assim do caráter de significação.

Então podemos inferir que as primeiras neoformações simbólicas originais ou representações simbólicas unitárias certamente corresponderam ao estabelecimento da inscrição lingüística original interna, com elas mesmas equivalentes à ação, então, já habitual da fala. Isto mostra mais uma vez a universalidade da natureza dialética das relações entre conteúdos simbólicos e ações habituais, neste caso representada pela relação delineada entre significado e significante, quer dizer, entre o entendimento pleno, a significação e a própria ação habitual da fala. O ato de falar, ação fonética, tornou-se desse modo a maior ação habitual dentre todas as outras e passou a promover a estruturação progressiva do léxico coletivo, catalogando e legitimando lingüisticamente as outras ações habituais e impulsionando simultaneamente a formação do sistema de inteligibilidade coletiva. É bem provável que o desenvolvimento da institucionalização da linguagem e o processo de institucionalização humana foram ocorrências de tal maneira sobrepostas em suas origens primevas, que passaram a confundir-se em seus contornos e em seu curso, constituindo-se em um todo fenomênico único.


Dentro dessa visão é que agora iremos retomar a análise dos três elementos conceituais há pouco enunciados:

1-Conteúdos simbólicos que se referem às representações simbólicas unitárias ou neoformações simbólicas originais relativas a significados ou conceitos que em alguma época foram legitimados por alguns indivíduos através do exercício lingüístico e da práxis social, passando para o domínio público e consensual sob a forma de significados sociais e tendo sido transmitidos aos descendentes por meio da tradição, assim sedimentando-se e estabelecendo a visão cognitiva do mundo que cada membro do grupo partilha com os demais no âmbito da plenitude do entendimento cotidiano completo.

2-Ações habituais, referentes à práxis rotineira do grupo social, isto é, ao conjunto de atividades humanas tendentes a criar as condições indispensáveis à existência da sociedade. À medida que as ações habituais foram ocorrendo, passaram a contribuir cada vez mais para a sedimentação das neoformações simbólicas originais, tendo sido isso possibilitado pelo exercício lingüístico. Novas ações habituais vantajosas para o grupo se foram produzindo e, gradualmente, legalizaram-se e inscreveram-se no código social vigente.

3-Significados sociais, correspondendo às representações simbólicas coletivas ou de domínio público consensual e que irão oferecer à consciência individual, em seu nascedouro, um modo harmonicamente ordenado e justificado em si mesmo, induzindo, desse modo, a formação de conteúdos simbólicos individuais que trarão a certeza do conhecimento e do entendimento daquilo que é familiar e corriqueiro.

Conseguiremos o alargamento da visão digramática representada na figura anterior pela adição do terceiro elemento conceitual ao quadro e que é a práxis social (ações habituais), resultando a configuração da relação final na seguinte forma (Figura 04):

B1 ... Bn = Ações habituais (práxis social);
A1 ... An = Neo-formações simbólicos originais;
ES = Exercício simbólico (EL= Exercício Lingüístico).

É importante considerar, como vimos antes, que o exercício lingüístico, ou seja, a integração contínua entre os significados e os significantes foi a ação habitual (ação fonética) que tornou possível a viabilização e a estruturação completa de um todo simbólico, mediando e veiculando, de um lado, as transformações efetuadas no ambiente sócio-cultural e, do outro, naquele que as efetuou, isto é, no próprio homem.

Cabe ainda dizer que, considerando-se a práxis social como o conjunto de atividades humanas tendentes a criar as condições materiais indispensáveis à existência da sociedade, vislumbramos as representações simbólicas coletivas (significados sociais e paradigmas sociais) – além dos dispositivos reguladores sociais erigidos através desses elementos, as instituições sociais - como verdadeiros correlatos e sustentáculos simbólicos daquela em um verdadeiro intercâmbio recíproco de legalização, tipificação e de predisposição à continuidade indeterminada das ações habituais. A práxis social é legalizada juridicamente por intermédio das instituições sociais, dispositivos reguladores da homeostase social do grupo e que estão situados dentro de uma instituição maior com poderes de atuação direta sobre os intercâmbios interpessoais e que é a instituição da lei. Esta tem poderes de sanção e de punição sobre os indivíduos e irá legalizar juridicamente todas as outras instituições estabelecidas. É evidente que os grupos humanos que representem os poderes dominantes em uma sociedade irão de uma forma ou de outra tentar perpetuar as características das instituições sociais para que estas continuem trazendo benefícios para si mesmos, servindo-se da instituição da lei como indispensável aliada para as suas ações setorizadas.

Por último, em relação à consciência individual, podemos firmar que a acumulação de vivências diversas a proverá do conhecimento necessário do mundo externo para que haja a promoção de um maior exercício da função simbólica, evento que influirá decisivamente na sua progressiva maturação.

Em resumo, podemos dizer que as representações simbólicas coletivas acionam a função simbólica (matriz simbólica) o que leva ao exercício simbólico e daí à diferenciação da consciência de si mesmo.

Este processo pode ser expresso sob a forma da seguinte representação, onde Q designa a consciência de si mesmo:

Vemos que o desenvolvimento da consciência de si mesmo é função do exercício simbólico, por sua vez aproximadamente igual às derivadas de dois parâmetros cujos valores podem ser modificados de acordo com flutuações quantitativas em um ou no outro, designados pelas representações simbólicas coletivas e pela matriz simbólica, sendo esta caracterizada pela capacidade de produzir significados e também pelo número e especificidade dos próprios significados produzidos.

Pensamos que foram essas as etapas aproximadas que o homem teve que percorrer para adquirir a sua identidade institucional, para poder chamar-se a si mesmo de humano, agarrando-se ao sagrado do nome e jactando-se de ser filho do Verbo.

Acreditamos também que à criança não resta outro caminho senão o de trilhar a vereda da humanização, da simbolização, da ordenação institucional de sua consciência de significação do mundo, da legalização de si mesma entre os outros. Pois que no futuro talvez ela também se orgulhe de fazer parte do todo humano, de suas vicissitudes, de suas contradições e de seus enigmas. Tal como os primeiros homens, sentirá a ingênua e iluminada alegria da significação da Palavra, da compreensão do mundo misterioso e mágico, sofrerá a mesma saga engendrada pelos seus semelhantes e antepassados.

Sim, pois um dia o balbucio obscuro e impreciso evoluiu para promulgação clara e determinada de sentença.

O drama pictórico transformou-se em Arte.

A adoração coletiva e extática dos heróis responsáveis pela viabilidade biológica humana personalizou-se nos Nomes dos Deuses.

As neoformações simbólicas já podiam corresponder a sons precisos.

A semântica já podia equivaler à expressão ruidosa da fonética.

Os sons, antes inarticulados, já podiam ser articulados, já significavam coisas e eventos, já provocavam a significação espontânea e natural nos outros. Estava nascendo a comunicação humana.

Estava surgindo a linguagem, a significação dinâmica, viva, expansiva e por outro lado o encarceramento, o isolamento do homem em relação às outras espécies, ao Todo e à natureza. Mais tarde ele inventaria o Logos ...

Extinguia-se então, pouco a pouco, a irmandade com o Cosmo, a solidariedade com a grande Sociedade da Vida. O homem já não era irmão da semente, das estrelas e das árvores. Ele era apenas somente ele. E absolutamente sozinho.

O drama da sobrevivência estava terminado e começava então o ato interminável da angústia humana.

...

III - CONSCIÊNCIA COLETIVA E CONSCIÊNCIA INDIVIDUAL:


Na parte que se segue procuraremos estabelecer alguns vínculos e conexões entre o que chamamos consciência individual e consciência coletiva, além de tentar relacionar esses dois fenômenos com a sua verdadeira infra-estrutura que é a cultura. Procuraremos também, de forma subjacente, iniciar o estudo da evolução do símbolo lingüístico de maneira tal que este esboço sirva como preparação para o que virá no capítulo subseqüente.

Temos convicção de que não podemos deixar de ignorar os pressupostos biológicos de adaptação na teorização da gênese da cultura humana em geral.

É certo que os dispositivos reguladores culturais tiveram, no início, como objetivo básico, a manutenção e a preservação das finalidades biológicas do homem, tendo como princípio que a própria organização cultural emergiu das necessidades de sua adaptação ao ambiente inóspito.

Através da cultura, o homem operou sobre o meio ambiente modificando as suas condições para melhor se adaptar a ele.

Há sempre uma relação direta entre a forma, o aspecto dos dispositivos culturais e os tipos específicos de dificuldades que a espécie humana encontrou para superá-las. As resoluções culturais apropriadas seriam como, por exemplo, um líquido, que ao ser colocado no interior de um determinado recipiente, toma a sua forma ao adquirir suas sinuosidades e angulosidades, não sendo incorreto dizer que os ‘conteúdos culturais’são semelhantes em sua forma aos ‘continentes’ correspondentes às dificuldades de adaptação do homem.

A constatação de uma grande diversificação das formas culturais provavelmente deve-se ao fato de que o aparelho instintual humano é desprovido de especialização e direcionamento, carregando em si um enorme grau de plasticidade. Disso resulta, então, a formação de dispositivos culturais extremamente diferentes assentados em possibilidades potenciais de simbolização muito variadas.

Desse modo, percebemos que o homem transformou o meio ambiente à sua maneira, produziu os seus dispositivos culturais e desde então vive tão indissoluvelmente ligado a eles que a sua natureza confunde-se com a natureza desses dispositivos. O homem é igual àquilo que produz e, em termos de produção humana, a forja parece ser dotada de uma capacidade de fluxo inesgotável. Ele produz a cultura e é também, simultaneamente, o produto dela mesma.

Nos primórdios do processo de humanização, quando o vão entre a realidade externa e o ser ainda não estava inteiramente mediado e preenchido pelo simbólico, ele ainda se defrontava com a realidade sensível quase face a face, sem total tradução, apaziguamento ou reflexão. As soluções de problemas concretos equivaliam a criações e engenhos também concretos. Estes, no entanto, à medida que eram produzidos pelo homem, viriam a adquirir sua alma simbólica que se foi inscrevendo lentamente em sua consciência coletiva. O caráter de concretude das coisas do mundo externo gradualmente foi deixando de pertencer ao primado da realidade sensível para situar-se, convenientemente mediado pelo símbolo lingüístico, no âmbito de sua consciência simbólica coletiva, tornando-se assim um todo real cognitivo.

Esse caráter de concretude, essa tangível materialidade do sensível foi progressivamente se convertendo em simbólico, inscrevendo-se e vivificando-se na consciência coletiva através do símbolo lingüístico que encerra em si mesmo o significado.

A ação fonética simultânea deu ares de concreto ao arremedo da verdade sensível e lançou o homem cada vez mais ao sentimento de real ilusão de que estava vivendo a realidade não ilusória.

Entretanto, o caminho já estava aberto e o homem começou a construir o seu próprio mundo sustentado em suas necessidades, interesses e desejos, edificando um universo simbólico complexo na multiplicidade da aparência, porém regido sempre pelas mesmas leis comuns. Criou a sua realidade, isto é, forjou nexos de sentido inteligíveis dentro desse universo simbólico para viver em seu interior e para utilizá-los na convivência com os outros.

Falamos da consciência simbólica coletiva e agora seria oportuno indagar que tipo de relações ela mantém com a consciência individual. De modo idêntico em que há uma relação dialética entre homem e cultura, também encontramo-la na inter-relação entre consciência individual e consciência coletiva.

O sistema de inteligibilidade coletiva ou senso-comum é, como já vimos, um conjunto de referenciais lingüísticos coletivos, ou seja, um reservatório de sentido, de denotação comum de ações, atitudes e, é evidente, do pensar comum. É alguma coisa, digamos, inorgânica e que se encontra fora da consciência individual, consistindo no verdadeiro manancial de referência para significação à consciência individual nascente e em desenvolvimento.

Esse sistema de referenciais lingüísticos consensuais servirá ao conjunto de consciência individuais para a geração de uma consciência maior, viva, expansiva e abrangente, orgânica, por assim dizer, e que é a consciência coletiva. É viva e orgânica porque vem carregada de sentimentos e emoções, de matizes afetivas que a animam e a iluminam, que lhe doam plenitude e calor, perenizando-a com o sopro de humanidade.

A consciência individual produz a consciência coletiva e vice-versa, a consciência coletiva produz, molda e forja a consciência individual.

Deparamo-nos, pois, com duas formas de consciência igualmente ativas e vívidas, igualmente responsáveis e imbricadas pela faculdade de síntese do fator humano, do universo simbólico. Um universo povoado por uma miríade de sentimentos coletivos, de paixões e de êxtases, de ódios e de lutos, de euforias e de tristezas. A consciência coletiva é a palavra estrangulada e o discurso apregoado, a virtude decantada e o pecado desterrado. É um emaranhado dinâmico de sentimentos antagônicos e de ideais coletivos que pairam sobre a consciência individual e que a absorvem mais como num furioso tropel do que como em águas plácidas de um mar calmo. Ou melhor, como nos dois tipos de alegoria referidos, simultaneamente: efervescência e calmaria, turbulência e arrefecimento, imobilidade e movimento

Os grandes movimentos coletivos, as explosivas revoluções, as ruidosas insurreições, as maciças manifestações de solidariedade ou de repúdio surgem-nos como acontecimentos em que as consciências individuais fundem-se em enormes aglomerados de pensar e de sentir comum, ora seguindo a consciência coletiva vigente e estabelecida, ora atropelando-a e se chocando violentamente com ela, procurando incessantemente atingir novas ordens de transcendência.

Os movimentos revolucionários sociais acompanham-se sempre de uma grande expansão da nova consciência coletiva inicialmente em fase de neoformação até que posteriormente atinge e abrange todo o ser social vivo, o âmago da organicidade das instituições, prevalecendo-se e sobrepondo-se a elas, substituindo-as e transformando-as, provocando dessa forma o surgimento de uma nova ordem social. As instituições sociais renovam-se, os significados sociais transmutam-se e vão induzindo, por seu turno, o amadurecimento da nova consciência coletiva. Novos hábitos, novos valores e novos ideais convergirão para a estruturação de uma nova organização coletiva, para a nova institucionalização consensual da nova práxis social. Assim, mais uma vez, repetir-se-á o movimento dialeticamente conjugado entre a conservação estática, a imobilidade proibitiva e a expansão permissiva, o avanço evolutivo dinâmico. Seguir-se-á um período em que a nova consciência coletiva predominará à sombra de um novo senso-comum até que ela mesma se tornará antiga e deficitária, sendo então substituída por uma outra consciência que virá acompanhada de novos significados sociais, de novos ideais coletivos, de uma nova visão do mundo e de uma nova ordem social em uma eterna reprodução do ciclo vital da evolução humana.

...

IV - O SÍMBOLO LINGUÍSTICO E SUA DIFERENCIAÇÃO:


Considerando-se o que foi dito no capítulo anterior, poderíamos, como uma primeira indagação, perguntar como tudo aquilo ocorre, não sem antes ficarmos tentados a admitir que aqueles movimentos cíclicos e periódicos são reflexos da estrutura íntima do fator humano qual destino inevitável e incontornável, tal como uma sentença infalível e inadiável que repousa dentro dele mesmo acompanhada de momentos de calmaria e de efervescência.

Pois bem, para atingir as respostas que procuramos, teremos que seguir algumas pistas e evidências que, se por um lado não podem pretender constituir-se em provas de veracidade do que iremos falar adiante, também de outro não invalidam as hipóteses que formularemos. Temos consciência de que o que vamos dizer agora faz parte de uma tentativa de investigação apoiada em bases puramente especulativas devido à escassez e insuficiência de elementos de certeza estabelecidos por uma pesquisa rigorosamente científica, não nos restando, desse modo, outro caminho a trilhar que não seja o das suposições.

Em primeiro lugar, e não sabemos exatamente por que e nem como, a espécie humana foi favorecida por um processo que denominamos hominização, fruto, pelo que conhecemos, de aquisições filogenéticas progressivas correspondentes ao fenômeno de telencefalização. A evidência mais direta e visível que podemos detectar desse fato já estabelecido é o desenvolvimento simbólico humano e as mudanças ocorridas no percurso desse desenvolvimento.

Então temos seguramente a nosso dispor e de modo inequívoco, embora por vezes de maneira pouco clara, o fato de que o surgimento do símbolo lingüístico representou o início da história do homem tal como o conhecemos, e mais, que as mudanças ocorridas em sua estrutura refletiram exatamente todas fases do desenvolvimento sócio-cultural humano.

Tentar elucidar isso da melhor maneira possível, estabelecer correlações entre os diversos elementos envolvidos na questão e daí tentar formular algumas hipóteses viáveis, eis o que poderíamos caracterizar como o propósito central do nosso trabalho.

Pensamos que poderíamos traçar um determinado roteiro segundo o qual a nossa compreensão sobre a evolução sócio-cultural humana se apoiasse sobre o que entendemos abranger os passos fundamentais da formação, estruturação e diferenciação do fenômeno simbólico, isto é, o símbolo lingüístico, eventos esses que propiciaram o surgimento e o assentamento pleno do fator humano.

Quanto à sua formação e estruturação, no Capítulo II já discorremos o bastante e achamos desnecessário repeti-lo aqui, motivo pelo qual empreendemos agora um estudo somente a respeito das etapas de diferenciação do símbolo lingüístico. Infelizmente, não teremos condições de inter-relacionar essas etapas de diferenciação do símbolo lingüístico como os outros dois elementos conceituais importantes para a compreensão do fenômeno como um todo e que foram estabelecidos no Capítulo II: ações habituais e significados sociais. Tal inter-relação, apesar de ser sob o nosso ponto de vista, bastante frutífera e esclarecedora, faria com que ultrapassássemos em muito as dimensões limitadas do presente ensaio. Ainda, torna-se imperioso revelar que estamos trabalhando em condições que estão distantes daquelas consideradas ideais, sem contar com tempo suficiente para a concretização dessa tarefa e privados de uma bibliografia especializada tão extensa como a que se faria necessária para levar a cabo esse intento. Em vista disso, não nos resta outra alternativa senão contentarmo-nos em lançar as idéias gerais e limitarmo-nos a esperar que, no futuro, tenhamos oportunidade de fazê-lo. Por enquanto, o nosso estudo incidirá diretamente sobre o símbolo lingüístico e procuraremos estabelecer algumas correlações axiais entre ele e uma série de exigências empíricas importantes que se nos apresentam.

No capítulo II dissemos que foi na linguagem que o simbólico se constituiu a si mesmo e conseguiu preencher de sentido o sensível, estabelecendo-se como unidade visível e inteligível do processo de comunicação humana. Pois bem, pensamos também que isso ocorreu de maneira muito lenta e gradual e que no início o simbólico só conseguia mediar uma parte do sensível deixando o restante sem tradução e intermediação.

Presumimos que, quando ainda não havia o simbólico, o material oriundo da senso-percepção direta chegava à consciência de uma determinada maneira a induzir, talvez, esboços de imagem e de representações ‘mudas’ capazes se desencadear ações motoras predominantemente automáticas e reflexas. A coisa ou o objeto do mundo externo chegava desse modo à consciência investida de inteira concretude material, com alto ruído e clamor sensorial, porém destituída de significado e de noção, ou seja, em completo silêncio de linguagem. Podemos dizer que, talvez nessa etapa primeva, onde a realidade era vista face a face, tudo era inteiramente ‘consciente’, sem subterfúgios para as emoções e sem lugar para qualquer mera reflexão. A senso-percepção embebia e saturava completamente a consciência, fazia desta um vívido espelho onde eram refletidas diretamente as suas imagens sensoriais.

Com o advento do processo de simbolização, o sensível começou a ser mediado e traduzido lentamente, resultando que o símbolo lingüístico começou a cumprir a sua trajetória desde a senso-percepção rumo à intelectualidade.

Em um primeiro momento, a vertente senso-perceptiva direta ainda não estava totalmente mediada pelo símbolo lingüístico, fazendo com o que o mesmo ficasse envolvido, desse modo, por uma forte aura sensorial que ainda não tinha tradução simbólica, isto é, o objeto percebido se apresentava à consciência carregado de sensorialidade concreta.

Progressivamente, houve um gradual desgarramento dessa aura sensorial concreta ligada ao símbolo lingüístico e ele passou a carregar, em si mesmo, apenas um ligeiro vestígio dessa concretude sensível, passando para o domínio exclusivo do intelectivo, da representação chamada abstrata. Vemos que há uma correlação estreita e direta entre a ascensão telencefálica ou hominização e o caminho percorrido durante o processo de diferenciação e de depuração do símbolo do componente sensorial.

As manifestações psíquicas dos homens primitivos e das crianças fornecem-nos uma série de evidências excepcionalmente claras e que podem servir como exemplos oportunos para ilustrar o que estamos afirmando. O material que vem a seguir foi retirado do livro "Totem e Tabu" (págs. 101 a 105) de S. FREUD (10) que, por sua vez o recolheu de outros autores, principalmente FRAZER. Transcreveremos parcialmente os exemplos que nos interessam e depois partiremos para sua discussão:

"Quando uma aldeia diak sai para caçar porcos selvagens na selva, as pessoas que ficam em casa não podem tocar em óleo nem em água com as mãos durante a ausência de seus amigos, porque, se os fizerem, os caçadores ficarão todos com os dedos escorregadios e a presa se lhes escapará das mãos. Ou ainda, enquanto um caçador gilyak está perseguindo a caça na floresta, seus filhos que ficaram em casa são proibidos de fazer desenhos sobre madeira ou areia, porque temem que se os filhos assim procederem, os caminhos da floresta ficarão tão confusos quanto as linhas dos desenhos e assim o caçador poderia perder-se e nunca retornar ...Um dos procedimentos mágicos mais difundidos para prejudicar um inimigo é fazer uma efígie dele com qualquer material adequado. Que a efígie se lhe assemelhe tem pouca importância: qualquer objeto pode ser transformado numa efígie sua. O que se fizer então à efígie acontecerá também ao original detestado; se alguma parte do corpo da primeira for danificada, a mesma parte do corpo do último ficará enferma. A mesma técnica mágica pode ser utilizada, não apenas com intuitos de inimizade pessoal, mas também com fins piedosos e para auxiliar os deuses contra os demônios malignos". E ainda: "...Da mesma maneira, a fertilidade é magicamente promovida através de uma representação dramática da relação sexual humana. Assim, para tomar apenas um só de um número incontável de exemplos, em algumas partes de Java, na estação em que o arroz logo começará a florescer, o lavrador e sua esposa visitarão seus campos à noite e lá efetuarão a relação sexual a fim de incentivar a festividade do arroz com o seu exemplo..." FREUD considerava em seguida: "...Não pode haver dúvida quanto ao que deve ser encarado como fator operativo em todos esses exemplos. Trata-se da semelhança entre o ato executado e o resultado esperado...".

Se para FREUD, tratava-se da semelhança entre o ato executado e o resultado esperado, para nós trata-se da confusão, da sobreposição entre o significado da coisa e a coisa em si mesma, comum em estágios de desenvolvimento psíquico mais primitivo. É evidente que não podemos ignorar e nem subestimar a importância do desejo como o elemento impulsionador para a obtenção do resultado esperado através de uma ação que se lhe assemelhe, porém temos que considerar que eram esses os recursos disponíveis ao homem primitivo para que procurasse agir efetivamente no mundo externo, modificar o seu curso, proteger-se ou prejudicar os seus inimigos e tentar dominar a natureza a seu modo. Trata-se de concepções mágicas investidas de uma convicção subjetivas de certeza quanto aos resultados desejados, de se poder, por exemplo, agir à distância, telepaticamente , sem obstáculo ou impedimento de qualquer ordem, sem solução de continuidade entre a representação simbólica da coisa e a coisa em si mesma. Há uma espécie de nivelamento entre as duas categorias fenomênicas referidas, desde que o desnivelamento, isto é, o desgarramento senso-perceptivo do simbólico, irá propiciar a separação dessas duas dimensões e o surgimento da verdadeira dualidade configurada entre o senso-percepção e a intelectualidade.

No Capítulo II vimos como, através de um giro angular, a relação bipolar linear entre o pólo de proibição e o de permissão converteu-se em uma relação espacial (ver figura 02, página ) propiciando o avanço e inteiro domínio do homem sobre meio ambiente e a diversificação inovadora dos dispositivos sociais. Pois bem, agora temos condições de compreender exatamente esse acontecimento com base no que acabamos de dizer: O giro angular que postulamos antes significaria o desnivelamento das duas dimensões fenomênicas citadas antes, ou seja, a dimensão senso-perceptiva e a dimensão simbólica. A relação bipolar linear corresponderia a uma etapa primitiva equivalente à mediação apenas parcial do sensível pelo simbólico, enquanto a relação bipolar espacial equivaleria àquela mediação realizada de maneira completa, isto é, com o símbolo lingüístico encerrando em si mesmo, inteiramente, a antiga materialidade sensível agora fazendo parte de um todo real cognitivo. Essa transformação teria sido responsável, e isso aliado a outros fatores materiais ligados à práxis social, pelo notável progresso humano visível em sua diferenciação evolutiva sócio-cultural.

Quanto ao psiquismo da criança, são bastante acentuados os traços de similitude com o do homem primitivo, bastando para isso observar suas brincadeiras, devaneios e fantasias. O ato de imaginar é ele mesmo igual ao de conseguir o desejado sem qualquer interposição ou dificuldade. Há, da mesma forma, a convicção de se poder atuar à distância, ou seja, tudo isso evidencia que o símbolo lingüístico ainda carrega em si mesmo uma forte aura de materialidade sensível que irá gradualmente se dissipando à medida que for ocorrendo o processo de institucionalização, paralelamente à maturação de certos setores nervosos implicados nesse desenvolvimento. É importante ressaltar, entretanto, que o paralelo traçado entre o psiquismo infantil e o do homem primitivo tem como base algumas analogias observáveis, porém nunca supondo processos completamente idênticos em campos também idênticos, mas sim, no máximo e com certeza, semelhantes. É aqui que poderemos pensar na validade do aforismo a ontogênese repete a filogênese de forma parcial e discutível, sem, no entanto, negá-lo inteiramente.

Para o prosseguimento desta discussão, no sentido de inter-relacionar as etapas de diferenciação do símbolo lingüístico com as fases sucessivas do desenvolvimento sócio-cultural humano, escolheremos apenas um tipo de manifestação cultural que julgamos suficiente para ilustrar esse paralelo, e que é a religião.

Não é tarefa simples tentar definir o fenômeno religioso em toda a sua extensão, complexidade e importância no âmbito da cultura humana como um todo, porém acreditamos que talvez fosse mais produtivo procurar tecer algumas considerações a respeito, empreendimento que é de certa forma facilitado pela disponibilidade de alguma literatura específica.

Parece que há concordância praticamente geral entre os diversos autores quanto ao aspecto das primeiras expressões culturais de caráter mágico-sobrenatural manifestadas pelo homem primitivo (2-4,8,13).

A observação, comparação e análise de matéria etnográfica colhida em diversas tribos considerada como estando situadas em estágios bastante arcaicos de desenvolvimento sócio-cultural, revelou que as primeiras concepções mágico-sobrenaturais do homem primitivo talvez não tenham possuído, ainda, uma forma definida e uma identidade determinada. Ao contrário, os sentimentos de medo, respeito e admiração dos homens primitivos dirigiam-se a qualquer classe de objetos ou de pessoas que, segundo a sua crença, pudesse estar saturada por uma espécie de força e poder extraordinários capazes de proteger o indivíduo e a coletividade de modo geral, mas da qual também tinham que se proteger através de rituais de evitação bastante complicados e específicos, tamanhos eram os riscos de se defrontarem com poderes de tal intensidade sem contar com uma proteção eficaz em relação a eles. Assim, acreditavam que esses poderes e essas forças localizavam-se em determinadas pessoas-chave como, por exemplo, grandes chefes, feiticeiros, guerreiros, etc. e podiam se deslocar e ‘contaminar’ alguns objetos ou outras pessoas, causando enormes danos àqueles que não estivessem protegidos ou avisados do suposto perigo. O mesmo se aplicava a crianças recém-nascidas e a defuntos, além de guerreiros que se empenhavam em uma batalha e matavam inimigos, sendo, neste caso, considerados indivíduos-tabu e tendo que se isolar dos outros membros da tribo até o término dos rituais de purificação próprios para cada caso.

Esse tipo de concepção foi originariamente observada entre os melanésios da Oceania através de sua crença na Mana como um poder universal e essencialmente indiferenciado, porém, posteriormente, características importantes dele foram observadas também em outras conceituações míticas primitivas em numerosas tribos indígenas da América, África e Austrália como, por exemplo, no Manitu dos algonguinos, noWakanda dos Sioux, no Orenda dos iroqueses e no Mulungu dos bantos (2).Todas essas crenças têm em comum o fato de que a noção de um poder universal pode ser utilizada para adjetivar vários estados de significação mutável, assim como: "...notável, muito forte, muito grande, muito velho, perigoso, poderoso em magia, sábio em magia, sobrenatural, divino; ou, com acepção substantiva, como: poder, magia, sortilégio, fortuna, êxito, divindade, prazer"*. Em suma, um nome divino de cunho impessoal e difuso servia para designar múltiplos estados emocionais do homem primitivo tais como surpresa, admiração e temor deflagrados pela defrontação com o desconhecido e ininteligível aos quais atribuía um caráter extraordinário e sobrenatural. Sim, porque foi exatamente nesse estágio de início do processo de simbolização que o homem começou a se confrontar com um mundo inteiramente novo para ele, o mundo simbólico. O mundo anterior, a perdida realidade sensível e concreta, já tinha sido muito bem conhecida por ele, isso se pudermos considerar como conhecimento todo um empreendimento motor, automático e reflexo dirigido para o mundo externo à procura de objetivação e sendo desencadeado por imagens sensoriais diretas, completando, assim, o ciclo compreendido entre instinto e ação. Mas, agora, alguma coisa muito importante se interpunha entre ele e a realidade sensível, transfigurando-a, investindo-a de um sentido inteiramente peculiar e novo. E nesse novo mundo, vagamente intelectivo e abstrato, as mesmas coisas de antes começavam a ser vistas com novos olhos, com o ‘olhar simbólico’. Entre a vertente instintiva e a ação começava a configurar-se a imagem simbólica, substituindo a imagem puramente sensorial e induzindo a construção de um novo tipo de organização social calcada nela mesma, ou seja, à nova ordem social já subjazia, latente, o nascente fluxo da cultura humana. Estavam nascendo, desse modo, a Religião e a Arte como frutos legítimos da então recente escalada simbólica, como um verdadeiro e sólido patrimônio do novo Ser. Nada mais natural, portanto, que o homem primitivo, no seu balbucio de surpresa e assombro, designasse todas as coisas que lhe pareciam inusitadas com um nome divino impessoal e indeterminado que as pudesse abranger completamente em sua totalidade de perplexa incompreensão.Seria proveitoso repetir aqui uma afirmação feita no Capítulo II onde dizíamos que foi através da linguagem que o simbólico constituiu-se a si mesmo e conseguiu preencher de sentido o sensível, isto com o objetivo de reiterar a enorme importância da linguagem dentro de todo esse processo de re-descoberta do antigo mundo pelo novo Ser simbólico. Vemos que nessa etapa primeva, correspondente à mais arcaica categoria mítico-religiosa de que se tem conhecimento, um só nome divino abrigava em si mesmo os vários estados emocionais do espírito humano diante de um mundo apenas parcialmente mediado pelo simbólico e que ainda era percebido com um alto clamor sensorial. Começava, nesse ponto, a lenta ascensão do símbolo lingüístico partindo da dimensão senso-perceptiva a caminho da plena intelectualidade e, quando falamos desse fato, estamos supondo a aquisição pelo homem de diversas categorias sucessivas de conceituação mítico-religiosa através dos tempos, cada qual dotada de maior diferenciação e evolução intelectiva em relação às anteriores, até chegar à conceituação de um deus como Espírito Absoluto. É claro que essas categorias conceituais mantiveram sempre uma inter-relação dialética incessante com as ações habituais e os significados sociais, completando e estruturando, desse modo, o sistema de compreensão dinâmica equivalente à totalidade de integração entre o homem e o meio externo mediado pelos dispositivos sócio-culturais, conforme vimos no Capítulo II. Podemos supor, ainda, que essas categorias de conceituação mítico-religiosa tenham correspondido à diferenciação progressiva de potencialidades funcionais capacitativas de operar simbolicamente, isto é, da função simbólica, potencialidades essas talvez correlativas a camadas ou estruturas psíquicas que se foram sobrepondo lentamente umas às outras no decorrer do longo percurso evolutivo sócio-cultural humano. Disso poderiam ter resultado as mudanças de certas características importantes do símbolo lingüístico emanado diretamente desses prováveis estratos, principalmente no que se refere ao desgarramento progressivo da aura sensorial concreta originariamente ligada a ele, tal como já dissemos.Seja como for, o certo é que, gradualmente, aquelas categorias de conceituação mítico-religiosa foram obtendo novos tipos de capacidade de simbolização, partindo de uma concepção de um Todo difuso e indeterminado, passando por etapas nas quais se elegeu um Animal ou Semente-Totem, um deus ou deuses antropomórficos até finamente à crença na Entidade e Espírito Supremos. Mana e Tabu, Zoolatria, Politeísmo e Monoteísmo, eis como poderíamos resumir de maneira aproximada as etapas sucessivas do pensamento religioso. Em todas essas etapas, entretanto, subsistiu de um modo tanto mais ou menos acentuado e de acordo com o estágio evolutivo simbólico adquirido, o caráter mágico e sobrenatural ligado ao Nome Sagrado. Para o pensamento primitivo, a palavra e a coisa que ela representa, o nome do deus e o próprio deus são fenômenos intimamente interligados e sobrepostos. A evocação de um deus pelo seu nome equivale a conseguir a sua presença de forma imediata e concreta, crença que demonstra inequivocamente o caráter arcaico da mediação do sensível pelo simbólico.

Parece provável que as mudanças das características do símbolo lingüístico aliadas ao aumento do número de vocábulos utilizados enriquecendo progressivamente o léxico coletivo foram, em nossa opinião, responsáveis pelas distinções nítidas entre as concepções mítico-religiosas que se sucederam, caminhando lado a lado com as novas visões que o homem passou a ter de si mesmo e, como conseqüência, de seus deuses. Ora, como já postulamos antes em relação à etapa primitiva onde havia apenas uma mediação parcial do sensível pelo simbólico, o recém formado homem ainda não deveria ter, como nós temos, uma noção exata de si mesmo como ser indivisível e singular, e muito menos de seu esquema corporal. Via a si mesmo e se sentia provavelmente como algo indeterminado à mercê de poderosas e extraordinárias forças, naturalmente também indeterminadas. Projetava para o mundo externo os seus sentimentos de perplexidade e assombro motivados pela sua incompreensão de si mesmo e do próprio meio que o cercava ao qual deveria se sentir, com toda certeza, como uma parte indissociavelmente ligada. Esse sentimento e visão de indiferenciação em relação ao meio ambiente foram modificados, de alguma forma, no momento em que ele elegeu um animal, semente ou outro elemento qualquer da natureza como deidade que iria coletivamente adorar e temer. Isso significou que iniciava então a discriminar as coisas do mundo externo através de noções e conceitos e que também começava a conceituar-se a si mesmo e a perceber-se como um ser parcialmente diferenciado e individualizado perante a ampla diversidade e multiplicidade do Todo. Diferenciava-se, desse modo, a consciência de significação do mundo calcada na consolidação do processo de socialização. Porém, foi somente quando começou a conceber deidades antropomórficas é que podemos dizer que estava inteiramente concluída a consciência simbólica humana no sentido de se perceber como um ser totalmente individualizado, separado das outras espécies animais e dotado de uma característica única e especial, isto é, a capacidade de simbolizar.

Consumava-se, assim, sua elevação completa do plano da Natureza e começava a sua ascensão em direção ao Cosmo.

...

V - O PROBLEMA DO INCONSCIENTE:


Pensamos que seria muito conveniente e proveitoso discorrer, nesta última parte, sobre um assunto que vem despertando o interesse de todos aqueles que se ocupam do estudo do psiquismo humano de maneira geral e, também, daquelas outras áreas do conhecimento relacionadas às Ciências Humanas. Esse assunto se refere ao inconsciente que tem sido objeto de muitas pesquisas, debates e questionamentos desde a postulação de sua existência e de sua importância para a vida mental por S. FREUD (10), havendo, no momento atual, uma quase total unanimidade de todos os autores pelo menos no que se refere à aceitação de sua realidade plena como uma instância psíquica. Devido a isso, consideramo-nos também com o direito de tentar contribuir, embora de maneira muito modesta, para o enriquecimento dos vários enfoques pelos quais essa instância psíquica tem sido vista e concebida ao longo de toda uma incessante discussão efetuada pelas várias escolas e tendências daqueles que se dedicam ao seu estudo. Sabemos, de antemão, de todas as dificuldades naturais que cercam tal empreendimento, além de estarmos conscientes de suas deficiências, principalmente no que diz respeito ao rigor científico e aspectos metodológicos importantes. Não obstante, procuraremos traçar um esboço de nossa concepção relativa ao inconsciente a partir de conceitos e idéias estabelecidos nos capítulos anteriores e reforçado por material clínico que freqüentemente observamos em nossa prática cotidiana de medicina psiquiátrica.

Em primeiro lugar, e isto parece uma afirmação indiscutível, há em nosso psiquismo uma região de sombra com mecanismos próprios e que denominamos inconsciente. Pois bem, com base no que dissemos anteriormente e como uma primeira pergunta, poderíamos indagar se essa instância psíquica mantém relações importantes com o processo de institucionalização humana e com o fenômeno de depuração sensível do simbólico. E caso as mantenha, quais serão elas? Tentaremos responder a essas perguntas procurando estabelecer uma hipótese a respeito da origem e também delinear uma definição aproximada dessa região, estrutura ou função psíquica que chamamos de inconsciente.

Como já dissemos, e sublinhamos essa afirmação com bastante insistência no Capítulo II, o estabelecimento e a manutenção de uma ordem social para o homem em suas origens primevas tornou-se uma necessidade imperativa e urgente. As aquisições filogenéticas que lhe couberam haviam permitido que esboçasse uma ordem social primitiva alicerçada na comunicação interpessoal a qual, por sua vez, originou-se de sua capacidade nascente de simbolizar, fruto daquelas aquisições. Nos primeiros tempos, quando ainda não havia a mediação simbólica do sensível, podemos dizer que tudo o que se passava com o homem era de certo modo ‘consciente’. Não no sentido de uma consciência simbólica que iria começar a se formar lentamente muito tempo depois, mas sim no que se refere à senso-percepção e ao reflexo das imagens recolhidas por ela e refletidas no campo de uma consciência sensorial ou ‘fisiológica’, caso pudermos chamá-la dessa maneira. À medida que o símbolo lingüístico começou a mediar a vertente senso-perceptiva investindo-a de um sentido próprio, de um esboço de acepção e de significado, encerrando em si mesmo esses atributos, a antiga consciência fisiológica começou a ser suplantada pela nova consciência simbólica que gradualmente se estruturava e ascendia premida pela necessidade de organização social indispensável para a sobrevivência humana. As ações instintuais humanas, anteriormente rígidas e reflexas, desencadeadas pelas imagens sensoriais absorvidas pela consciência fisiológica, pouco a pouco passaram a institucionalizar-se e a arrefecer-se na vereda contínua do processo de simbolização. Entre a vertente senso-perceptiva e a resposta instintual direta interpôs-se o símbolo, moldando à sua maneira aquela resposta - de acordo com as necessidades sociais - assim como se interpôs entre o puro sensível da realidade concreta e a consciência fisiológica anônima do hominídeo. É claro que a carga instintual independe de estímulos externos para que ocorram as suas manifestações, tendo ela mesma uma capacidade intrínseca de emitir impulsos correspondentes às necessidades biológicas do organismo, porém no ser simbólico a forma de suas exteriorizações sempre está moldada de acordo com as necessidades e exigências do ambiente sócio-cultural, como veremos adiante. A mediação da senso-percepção pelo simbólico certamente caminhou lado a lado com uma espécie de diferenciação da carga instintual no sentido desta adquirir um maior grau de plasticidade, isto é, as suas manifestações de descarga adequarem-se parcialmente às exigências e necessidades do ambiente social específico. Teria havido, de algum modo, uma transformação da direção rígida do caminho percorrido pelo instinto biológico de tal maneira que chegasse a adquirir um curso plástico e maleável, adequando-se às necessidades objetivas e mutáveis do meio sócio-cultural. Isso teria ocorrido devido à operação simbólica da própria carga instintual, silente em suas origens, porém depois verbalizada e tendo o seu propósito lançado no cenário das paixões institucionalizadas, ou seja, inserindo-se dentro dos modelos de integração simbólica oferecidos e legitimados pelos dispositivos sócio-culturais vigentes. E é esse estágio que podemos demarcar como sendo o sítio do surgimento de uma idéia e emoção designados pelo nome desejo, correspondente ao clamor instintual já simbolizado e institucionalizado, porém ressentindo-se da perda de uma aparente liberdade que assim lhe parecia pela força de sua explosão original e do seu reto destino traçado previamente e sem nenhum logro. Pois o que passava a ser sentido como logro equivalia a um artifício incluído no mecanismo de um sistema homeostático destinado ao êxito de uma economia de trocas entre o homem e o seu meio social. Tudo isso correspondeu a uma etapa caracterizada pelo não poder realizar, da necessidade de se renunciar às exigências instintuais originais pelo bem coletivo e pelo equilíbrio harmônico das relações interpessoais, base de manutenção da ordem social nascente. Esse processo de operação simbólica da carga instintual biológica naturalmente foi realizado de modo lento pelo meio ambiente sócio-cultural através da introjeção gradual pelos indivíduos dos significados e paradigmas sociais, moldando e ajustando as descargas instintuais e direcionando-as de acordo com os seus parâmetros normativos simbólicos.

Pensamos também, e isso é muito importante, que a operação simbólica da carga instintual biológica nunca consegue ser completamente levada a termo pelo meio ambiente social, restando sempre alguma ‘sobra’ ou ‘resíduo’sob a forma de equivalentes instintuais amorfos, livres, anárquicos e destrutivos cuja intensidade depende da eficácia do processo de institucionalização harmônica realizada pelo meio social simbólico sobre o indivíduo além de certos fatores inerentes ao próprio psiquismo pessoal capazes de facilitar ou dificultar esse processo. Como dizíamos antes, fazia-se necessária uma proteção à sociedade ‘domesticando-se’ as descargas instintuais naturais, institucionalizando-se o instinto, moldando as suas manifestações e exigências de acordo com as necessidades sociais de maneira a procurar promover incessantemente uma harmonia entre o indivíduo como ‘si mesmo’, íntegro e estruturado, em intercâmbio dinâmico com os demais membros do seu grupo. Estaria, então, formado um sistema destinado a atingir um nível de economia de trocas bastante razoável em termos de homeostase individual, bastando para isso que a manifestação de certas descargas instintuais indesejáveis para o bem coletivo permanecessem silenciosas e restritas a alguma região de sombra e de obscuridade no interior de seu psiquismo. A ordem social passava, assim, a dar segurança e organização ao homem e este, em contrapartida, passava a abdicar da execução de atos potencialmente perigosos para a estabilidade daquela. É fácil perceber que o verdadeiro ponto de equilíbrio da viabilidade desse sistema residiu na necessidade de se garantir biologicamente que tais ações deletérias para a ordem social não se efetuassem, garantia essa que foi materializada pelo surgimento da consciência simbólica equivalente à ordem social subjetiva arrefecendo esses ímpetos instintuais originais e tentando apaziguá-los de uma forma própria e bastante peculiar. A ascensão progressiva da nova consciência simbólica em contínua diferenciação fez com que aquelas estruturas arcaicas que emitiam impulsos para a concretização das ações de risco social fossem sobrepujadas e inibidas por novos estratos psíquicos de conformação exclusivamente simbólica, frutos do incessante intercâmbio entre o psiquismo e o meio social também simbólico. Os estratos psíquicos mais antigos que foram sendo deixados para trás, por assim dizer, continuaram a emitir impulsos sempre na tentativa de concretização daquelas ações de alto risco social, porém esses estímulos já foram chegando à consciência simbólica dotados de alta plasticidade e tendo, desse modo, os seus objetivos biológicos iniciais deslocados e substituídos por outros objetivos institucionalizados, revestindo-se de um caráter construtivo sob o ponto de vista social. Configurava-se, desse modo, um sistema homeostático capaz de assegurar proteção à ordem social estabelecida e também ao próprio homem visto que o seu neo-psiquismo simbólico agora estava apto para suportar as enormes torrentes anárquicas oriundas de sua carga instintual biológica com grande valência energética, transformando-as em impulsos simbólicos e institucionalizados, além de propiciar a criação do espaço volátil do sentimento desejo que, seguramente, se constituiu na fonte das grandes realizações sociais humanas.

É indispensável ressaltar que esse sistema homeostático fundou-se nas interações dialéticas entre os três elementos conceituais estabelecidos no Capítulo II e que são: Conteúdos Simbólicos, Ações Habituais e Significados Sociais (ver figura 04, página ). Agora vejamos, para que consigamos completar a visão integral de todo o processo de hominização conforme essas interações, teremos que voltar os olhos para algo que, se até aqui não abordamos por força de um determinado intuito didático-expositivo, torna-se necessário que o façamos a partir deste momento e que consiste naquilo que se refere ao complexo problema da afetividade humana. Na verdade, a afetividade humana se constituiria no quarto elemento conceitual ativamente presente no quadro daquelas dinâmicas e vivas interações, desembocando no ser simbólico Homem.

Seria natural supor que a afetividade humana tenha se diferenciado juntamente com o aprimoramento da linguagem e dos dispositivos sócio-culturais, de maneira geral. O surgimento de complexos simbólicos correspondentes aos paradigmas sociais, isto é, significados sociais concatenados ‘em rede’, teria que caminhar lado a lado e simultaneamente com o nascimento de novas formas de sentir, de novas matizes afetivas capazes de catalisar e viabilizar novas e mais complicadas modalidades de intercâmbio interpessoal. Às novas normas éticas e morais teria sido essencial um respaldo afetivo do sentir coletivo para a sua consolidação e legalização nos códigos sociais nascentes e em formação. Em termos simplistas poderíamos conceber um modelo binário psíquico constituído por uma idéia, noção ou conceito ligado a um equivalente afetivo em constante diferenciação e aperfeiçoamento. À medida que o símbolo lingüístico era despojado da aura sensorial concreta, começava em contrapartida a adquirir um revestimento afetivo dotado de um caráter lábil e evanescente.

Em outra parte (26) já argumentamos, naturalmente com base nos autores clássicos, como, por exemplo, MAX SCHELER (9), que seria útil a postulação de três tipos básicos de sentimento, quais sejam:

1 - Sensação: É o sentimento que participa dos elementos de significação estritamente corporais com as ressonâncias fisiológicas mais palpáveis e dramáticas, sendo o que está mais ligado aos planos vitais e com um enraizamento biológico mais profundo. Exemplos: fome, sede, estímulo sexual.

2 – Emoção: É o tipo de sentimento que acompanha a integração psíquica mais completa e aprimorada, disso resultando uma maior capacidade de participar desse tipo de significação, apresentando-se com maior autonomia em relação aos fatores intrínsecos biológicos, embora permaneça uma ligação a eles sob a forma de um vínculo flutuante, ora rarefeito e ora denso. Exemplos: medo, raiva, tristeza.

3 – Afeto: É o mais elaborado e complexo sentimento, estando associado a estratos superiores de significação psíquica, mas continuando, no entanto, a manter um vínculo com os planos biológicos vitais, porém com muito maior autonomia em relação aos anteriores. Exemplos: sentimentos religiosos, estéticos e éticos.

Postulamos, também, naquela ocasião, que quanto menor fosse o grau de ligação de cada categoria de sentimento aos planos vitais maior seria a sua capacidade intrínseca de associar-se a complexos simbólicos mais elaborados e diferenciados, equivalentes a processos de integração psíquica mais elevada. Isso corresponderia exatamente ao substrato que tornaria exeqüível intercâmbios humanos bem aperfeiçoados no sentido de uma grande apuração e sofisticação dos sentimentos envolvidos neles. Pois bem, pensamos que todos os sentimentos, isto é, as sensações, emoções e afetos, consistiram nas manifestações da carga instintual simbolizada desde que vieram a adquirir a centelha da humanização em caráter ascendente e progressivo, vindo a se constituir nas verdadeiras expressões e enunciações daquela. A operação de simbolização transformou o bloco monolítico e sólido do instinto biológico em algo fluido e corredio, desdobrando-se em um leque de sentimentos capazes de esculpir o encontro interpessoal sob a forma caracteristicamente humana.

Simultaneamente, ocorria a lenta depuração sensível do simbólico, com o símbolo lingüístico ascendendo rumo à plena intelectualidade, ao Logos. Nas camadas anteriores, mais arcaicas, sobrepujadas e inibidas pelas mais recentes ainda ocorria, com o seu significado, um parcial nivelamento entre a coisa em si mesma e a sua noção ou conceito. Essas estruturas foram, e o seriam para sempre, o primado do Mythos por excelência, um estranho território povoado de magia e de névoa, onde tudo é possível e verossímil, assim como também pode ser engodo, sonho e ilusão; reino da perdida união do homem com a natureza, memória viva das experiências de seus longínquos ancestrais, região de sua vívida herança atávica e de seu eterno retorno.

A ascensão completa do símbolo lingüístico, aliado ao processo de operação simbólica da carga biológica instintual original, representou o divórcio definitivo do homem com a natureza e expressou-se em termos de uma dualidade e ambigüidade existencial que sempre o perseguiu e o angustiou.

Em linguajar metafórico poderíamos dizer que certos temas filosóficos tais como Determinismo e Liberdade, Sensível e Inteligível, Corpo e Alma, Materialismo e Idealismo, Vontade e Aparência, consistiram em algumas formas de expressão literária por meio das quais ele pôde, através dos tempos, manifestar em seus cânticos o seu nostálgico lamento.

Será de muita valia, neste ponto, passarmos a fazer uma recapitulação do que foi visto até agora, objetivando tornar mais claras as soluções teóricas relativas ao problema que estamos estudando:

Como já vimos, aquilo que denominamos inconsciente teria surgido naturalmente como um modo de assegurar proteção à ordem social, tendo sido o seu nascimento gradual resultado de inter-relações e intercâmbios contínuos e incessantes entre o psiquismo humano e o meio ambiente social.

Equivaleria, em termos de substrato orgânico ou neurobiológico, às camadas ou estruturas psíquicas mais antigas sob o ponto de vista filogenético e onde a operação de simbolização da carga instintual seria ainda incompleta. Isso propiciaria a emissão de impulsos potencialmente nocivos para a manutenção da ordem social, sendo, porém, sua materialização sob a forma original impedida e transformada em outras descargas deslocadas e substituídas por outros tipos de expressão instintual de natureza essencialmente simbólica e de acordo com os modelos de integração, também simbólicos, oferecidos e legitimados pelos dispositivos sócio-culturais. Nisso consistiria a proteção à ordem social estabelecida.

No que se refere ao indivíduo, a consciência simbólica passou a exercer um papel de proteção psíquica evitando que as enormes torrentes anárquicas oriundas de sua carga instintual biológica com grande valência energética causassem dano ao seu neopsiquismo simbólico. Isso teria sido realizado através da operação simbólica da carga instintual biológica efetuada pelo ambiente social, também simbólico, maleabilizando-a e dotando-a de acentuado grau de plasticidade, diminuindo assim a sua valência energética absoluta. Além disso, as camadas ou estruturas psíquicas mais recentes filogeneticamente teriam passado a exercer uma inibição sobre aquelas mais antigas. Nisso consistiria a proteção ao neopsiquismo simbólico humano.

As estruturas psíquicas mais antigas corresponderiam às etapas mais primitiva da experiência coletiva humana, sendo que as mais arcaicas ainda apresentariam um caráter pré-verbal e seriam seguidas por estruturas mais recentes equivalentes a estágios mais avançados da experiência coletiva humana com o processo de simbolização da carga instintual biológica em fase mais diferenciada, assim como em relação à depuração sensível do símbolo lingüístico. O mesmo se aplicaria ao amplo espectro dos sentimentos humanos, partindo da sensação, passando pela emoção e culminando no afeto. É claro que concebemos essas camadas ou estruturas não como compartimentos estanques e isolados entre si, mas sim como um conjunto de instâncias psíquicas com substratos neurobiológicos determinados envolvidos em um complexo e dinâmico inter-relacionamento contínuo. Ainda, que essas estruturas corresponderiam às potencialidades funcionais capacitativas de operar simbolicamente – como já vimos antes no Cap. I - de acordo com a especificidade inerente a cada uma delas e dependendo de estímulos de natureza simbólica oriundos dos dispositivos sócio-culturais. Seria como algo ainda silente e oculto em sua latência, mas que contivesse em si mesmo todas as potencialidades para se tornar visível e inteligível, bastando que para isso fosse ativado por complexos simbólicos, sendo deflagrada assim toda uma seqüência de imagens e conteúdos atávicos também de natureza simbólica. Conforme vimos, portanto, o inconsciente corresponderia à região psíquica que abrigaria os mitos e os impulsos e desejos que devem ser amortecidos e deslocados de seus objetivos iniciais, enquanto que o consciente equivaleria ao lugar da inteligibilidade, da coerência e da lei. A consciência fisiológica foi sendo deixada para trás e suplantada pela nova consciência simbólica que se foi impondo lentamente até firmar-se como o primado da razão e da inabalável ordem social.

Dentro de todos nós, através desse dualismo, estaria assim se repetindo o drama e a saga vivida pelos nossos anônimos antepassados, residindo em nosso psiquismo através do testemunho vivo do inconsciente. E esse constante embate entre as forças da ordem e do arranjo e as da desordem, do desvario e da loucura estaria presente não somente em nosso psiquismo, mas também, projetando-se para fora dele, impulsionando e alimentando a necessidade concreta da manutenção da ordem social. Repetir-se-ia, dessa forma, em um nível social, o embate contínuo e sem trégua entre a claridade do poder legitimado e a obscuridade do não institucionalizado, do não legalizado, do espúrio.

Acreditamos que tudo o que dissemos até aqui possua tal conformação teórica, não tanto por intuição e dedução especulativas, mas principalmente pelo fato de estarmos apoiados em farto material clínico resultante da observação atenta e constante de pacientes psiquiátricos, especialmente os psicóticos, assim como de pacientes neuróticos e mesmo de pessoas normais.

Em pessoas normais, e isso não é nenhuma novidade, o conteúdo simbólico dos sonhos e dos ‘atos falhos’, freqüentes e corriqueiros, denuncia sempre a intenção oculta e o propósito camuflado por desejos inconscientes de algum modo censurados pelo indivíduo.Como sabemos, as razões de tal censura consistem no fato de que a pessoa sente que não poderá efetuar uma determinada ação, ou porque ela possui verdadeiramente um caráter hostil, destrutivo ou erótico, por exemplo, ou porque a pessoa imagina que assim seja, abstendo-se da sua execução e limitando-se a exprimir o desejo de sua realização através de meios indiretos e deslocados. Sabemos, ainda, que a pessoa geralmente não sabe que deseja e que também tem medo de saber o que deseja e, além disso, que os sintomas neuróticos geralmente podem ser interpretados, isto é, podem ser traduzidos, decodificados em sua linguagem e verbalizados em sua total inteireza de nexo e de propósito real. Isso parece evidenciar claramente a existência de um inconsciente pessoal, individual, perfeitamente distinto em cada um de nós. Porém, como conciliar a existência de um inconsciente pessoal com a de um inconsciente que poderíamos chamar de coletivo com as características que descrevemos antes?

No capítulo anterior falamos rapidamente a respeito da validade discutível do aforismo a ontogênese repete a filogênese e agora teremos a oportunidade de analisar melhor alguns aspectos desse problema:

Pensamos que a diferenciação do psiquismo infantil repete, de certo modo, o caminho evolutivo percorrido pelo homem para transformar-se em um ser simbólico e já tivemos oportunidade de falar parcialmente sobre isso nas partes anteriores deste trabalho. O que ainda não confrontamos diz respeito a certas analogias em termos de inserção no eixo social no que se refere ao homem primitivo neo-simbólico e à criança.

Parece que seria razoável admitir a idéia de que na criança, assim como o foi no remoto hominídeo, o inconsciente pessoal começa a se formar nos primeiros estágios de simbolização e institucionalização efetuados pelo seu grupo social, especialmente pelos seus pais. O núcleo familiar equivaleria para a criança, em termos sócio-culturais, ao que a ordem social nascente representou para o hominídeo recém-simbolizado, inclusive se supusermos uma imaturidade psíquica relativamente análoga a ambos. Começaria, então, a ser traçada toda uma história e uma saga, não da espécie mas do próprio indivíduo. Durante o desenrolar dessa história individual, acreditamos que ocorreriam fenômenos semelhantes à da pré-história da espécie humana tais como a depuração sensível do símbolo lingüístico e a operação simbólica da carga instintual biológica original. Isso, é claro, e fazemos questão de sublinhar novamente, dentro de um campo de analogias relativas e questionáveis. De qualquer maneira, teríamos que aceitar a hipótese de que o inconsciente individual é da mesma natureza daquilo que estamos denominando – e certamente sem nenhum intuito inovador – inconsciente coletivo. E admitida essa hipótese, chegar à conclusão de que o inconsciente individual é uma categoria particular do inconsciente coletivo, porém mantendo com este uma inter-relação contínua e dinâmica. Aquelas camadas ou estruturas mais arcaicas até as mais recentes adquiririam vida própria de acordo com as experiências e vivências pessoais. Seria como um grande fator comum abrigando, moldando e delineando um outro fator da mesma natureza, porém individualizado e particularizado, resultando, como conseqüência, na existência simultânea de elementos pessoais e coletivos em cada camada ou estrutura psíquica do indivíduo. As vivências pessoais induziriam algo como um povoamento do psiquismo individual, deflagrando conteúdos atávicos coletivos encerrados potencialmente em espécies de matrizes simbólicas correspondentes àquelas estruturas ou camadas psíquicas. A história pessoal seria, então, lentamente aí inscrita tomando uma forma particular, porém sempre dentro de diretrizes gerais pré-determinadas. Dito de outro modo, a história pessoal investe de sentido próprio as tendências e latências coletivas do humano, constituindo-se ela mesma no único fenômeno vivo, presente e autêntico do psiquismo individual. É como se determinados moldes pudessem ser preenchidos por incalculáveis tipos de substâncias, resultando em infindáveis modelos com formas semelhantes, porém extremamente diferentes e contrastantes entre si mesmos em sua essência. Isso representaria, ao nosso ver, o assentamento da singularidade de cada indivíduo como um ser único no meio de outros indivíduos também únicos e integrantes de um determinado grupo social. Essa singularidade também carregaria em si um caráter de liberdade no que diz respeito ao direito de cada indivíduo forjar, em constante relação de trocas com o seu ambiente social, a sua própria história pessoal dentro do universo simbólico humano, normativo e institucionalizado.

Dois tipos de exemplo podem constituir-se em argumentos bastante persuasivos no que se refere ao que foi dito até aqui e consistem no material clínico encontrado comumente nos sonhos e nas manifestações psicopatológicas de pacientes psicóticos. Cabe lembrar, no entanto, que, no primeiro caso, sabemos tratar-se de manifestações do inconsciente em condições normais, enquanto o segundo tipo de manifestação emana de uma condição psicopatológica e nosológica determinada, havendo, porém, uma característica comum a ambas e que é a invasão do campo da consciência por conteúdos psíquicos considerados até então como inconscientes.

O conteúdo onírico individual põe à mostra - isso para quem se disponha e saiba realizar a sua leitura - os aspectos mais importantes e pertinazes de uma história pessoal, caracterizando-se por um cortejo dos mais variados sentimentos, imagens, cenas e lembranças pertencentes aos estratos mais recônditos da vida psíquica. Os desejos mais ocultos, os temores ignorados, os lutos e ódios aparentemente esquecidos vêm, geralmente de maneira súbita e imprevisível, impor a sua vívida presença à consciência daquele que sonha, deixando na maior parte das vezes um vago sentimento de mal estar, angústia, ansiedade, tensão ou, mesmo, de indefinido apaziguamento.Para quem sonha e para o leigo os conteúdos oníricos quase sempre apresentam-se como uma seqüência de imagens e eventos aparentemente de forma desordenada e caótica, sobrepondo-se vários elementos factuais, pessoais e crono-espaciais de maneira distorcida e com aspecto de absoluta incoerência, deixando uma impressão de estranheza e de perplexidade. Por outro lado, para quem pratica (e sabe praticar) a técnica psicanalítica, esse aspecto de aparente desordem e de incoerência é substituído por outro de total inteligibilidade quanto à compreensão do nexo histórico-existencial daquele que está se submetendo ao referido tratamento, isto é, por trás da aparente confusão do material onírico o psicanalista percebe o verdadeiro sentido implícito nele. Percebe o seu verdadeiro sentido de acordo com associações livres verbalizadas ou mesmo silêncios que se referem a fatos, vivências ou sentimentos experimentados pelo seu cliente dentro ou fora do espaço analítico e o verbaliza para ele no momento que julgar apropriado, esperando que ocorra alguma elaboração e resolução dos conflitos psíquicos subjacentes. Ele o faz assim porque crê que tenha decifrado a linguagem peculiar dos sonhos e, desse modo, desvendado grande parte da demanda interna de seu cliente até então oculta e inacessível para ele mesmo. Ora, se refletirmos melhor sobre as estranhas formas através das quais o material onírico se nos apresenta, detectaremos nelas algumas características importantes sobre as quais já tivemos oportunidade de falar. Em todos os sonhos há um clima mágico, um ambiente fantasmagórico e irreal associado à convicção íntima e plena por parte de quem está sonhando de que, naquele momento, está realmente vivenciando todos aqueles eventos. Tudo pode acontecer, o imaginário reveste-se das cores do real, o tempo e o espaço não importam, dois fatos opostos podem ocorrer simultaneamente, as figuras humanas desdobram-se ou condensam-se, etc. Pois bem, já vimos antes que o símbolo lingüístico no início de seu desenvolvimento era capaz de mediar somente uma porção do sensível carregando em si uma intensa aura da vertente senso-perceptiva, de tal maneira que o significado ou o conceito de um objeto geralmente se nivelaria à percepção direta ainda não simbolizada dele mesmo. Vimos, também, que, muito provavelmente, essa disposição incompleta de simbolização ainda estaria presente nas camadas ou estruturas psíquicas mais arcaicas dentro de todos nós correspondendo às etapas mais antigas de nossa vida mental. Além disso, chegamos à conclusão de que nessas camadas ou estruturas psíquicas mais arcaicas a carga instintual biológica original ainda não teria sido completamente submetida ao processo de operação simbólica institucionalizada, estando, dessa maneira, silenciosa em termos de linguagem e muito ruidosa no que se refere às suas exigências naturais e rígidas de satisfação. Por último, vimos como as vivências pessoais poderiam induzir o povoamento da vida psíquica individual desencadeando a produção de conteúdos psíquicos vivos naquelas estruturas ou camadas com potencialidades específicas de operar simbolicamente desde as mais arcaicas até as mais recentes, estruturando uma história singularmente pessoal através de seus dramas, conflitos e desejos. Estão alinhados, desse modo, os três ingredientes capazes de explicar o aspecto estranho e aparentemente incoerente do material onírico que freqüentemente temos oportunidade de observar.

Tomemos como exemplo, para ilustrar o que estamos dizendo, o material retirado do sonho de uma paciente que se submeteu a tratamento psicoterápico comigo. É digno de nota o fato de que esse sonho tenha ocorrido em uma época do tratamento onde a paciente mostrava-se especialmente resistente e hostil a ele e à minha pessoa.

Em sua vida cotidiana essa paciente – uma jovem mulher, solteira, com bom nível sócio-pedagógico e que residia com os pais mais uma irmã e dois irmãos mais novos que ela – era constantemente assaltada pelo medo de ser homossexual, achava que todas as pessoas assim a consideravam e envergonhava-se de sair à rua. Apesar de inteligente e fisicamente bonita, considerava-se muito feia e tendo o corpo de um ‘travesti’ (sic). Esse pensamento acompanhava-a incessantemente, aguilhoando-a e torturando-a por todos os lugares onde ia, chegando a se caracterizar, clinicamente, como uma verdadeira idéia obsessiva. Do ponto de vista clínico-fenomenológico, no entanto, essa paciente não apresentava nenhuma vivência delirante primária, percepções delirantes ou alucinações auditivas, sendo os seus sintomas compatíveis com um quadro de neurose grave.

A sua família (tive oportunidade de conversar com os pais antes do início do tratamento) podia ser caracterizada como possuindo uma estrutura francamente psicótica, com a mãe agressiva e moralmente muito rígida, autoritária, distante afetivamente dos filhos e com o pai omisso, extremamente dependente da esposa, inseguro e com uma personalidade muito frágil. Os relacionamentos inter-pessoais dentro da família eram turbulentos, tumultuados e ambivalentes, sobressaindo-se a figura da mãe sempre ditando ordens e estabelecendo a lei doméstica além de demonstrar claramente a sua predileção pela irmã mais nova da paciente.

O seu relacionamento comigo durante a psicoterapia analítica oscilava bruscamente entre manifestações de hostilidade e desconfiança e expressões de afetuosidade e carinho como, por exemplo, quando me enviava cartões em datas especiais onde falava de seu agradecimento e confiança em relação a mim e ao tratamento.

O sonho que ela me relatou, aliás bastante significativo, pode ser descrito da forma que se segue, levando-se em conta todo o cuidado que tive para manter intacta sua trama central : "Estava com a sua irmã passando alguns dias de férias em um apartamento que não conhecia e do qual era proprietária uma certa mulher que também lhe era estranha. Havia outras pessoas lá hospedadas, o ambiente lhe parecia confuso, sombrio e ameaçador. Em determinado momento ficou sabendo que a proprietária do apartamento era homossexual e que naquela noite iria atacar as hóspedes e forçá-las a manter, consigo, relações homossexuais. Tão logo soube disso entrou em estado de pânico e resolveu fugir imediatamente daquele lugar. Quando conseguiu, após muitos momentos de angústia e de ansiedade, sair do apartamento e chegar à rua sã e salva com sua irmã, viu-se em uma sorveteria na companhia de seu pai parecendo ser mais jovem e bonito do que o é na realidade, além de estar muito bem trajado com um elegante terno de executivo. Enquanto o seu pai a abraçava protetoramente, do outro lado do balcão da sorveteria um rapaz flertava com ela através de troca de olhares. Nesse momento sentiu-se, apesar do constrangimento, segura e calma."

Um bom número de interpretações possíveis poderiam ser cogitadas em relação a esse sonho, porém tanto a teoria como a prática clínica nos vêm ensinando que a interpretação prioritária, isto é, aquela que possui o nexo mais direto com os sentimentos e conteúdos psíquicos inconscientes mais emergentes do paciente, é a que necessariamente contém elementos verbais comuns com os relatos de lembranças, experiências ou fatos feitos por ele sob a forma de associações livres.

Essa paciente vinha constantemente se queixando do modo indiferente, seco e às vezes agressivo pelo qual sua mãe geralmente a tratava, falava muito a respeito do grande ciúme que sentia de sua irmã mais nova devido às preferências e privilégios maternos concedidos à ela. Além disso, valorizava sobremaneira o fato de sua irmã ser mais bonita que ela, sentia-se humilhada e fracassada diante dela no que se refere à sua aparência pessoal e a determinados gostos e cuidados femininos, os quais acreditava firmemente não ter capacidade de desenvolver em si mesma. Quando se encontrava a sós com a mãe, procurava falar de seus problemas e de seus medos tentando ser acolhida e compreendida por ela, porém quase sempre os seus sentimentos e queixas eram desqualificados como sendo coisas sem importância e inconvenientes. Não obstante, a mãe exercia inteiro domínio sobre ela procurando controlar a sua vida e os seus atos, além de se colocar como vítima da doença da filha. Insinuava ou costumava dizer claramente que a filha deveria ser como ela se avaliava a si mesma, uma pessoa muito forte e vitoriosa.

A paciente era assediada por rapazes que desejavam namorá-la, mas demonstrava acentuada timidez nos contatos com os homens em geral o que, entretanto, não impedia que elaborasse fantasias heterossexuais e se sentisse atraída fisicamente por alguns deles. Essa inibição era motivada pelo sentimento e certeza de que era muito feia e repulsiva, passando então a ter medo e desconfiança que os rapazes pudessem rejeitá-la e humilhá-la.

Vemos então, de maneira nítida, que essa paciente estava vivendo um drama em um cenário composto exclusivamente por mulheres, com muita necessidade de ser amada e reconhecida pela mãe e de vencer a disputa com a irmã mais nova pelo amor materno. A sua mãe demonstrava que somente a aceitaria se fosse igual a ela mesma e manifestava isso de modo dominador e agressivo. A paciente não confiava em seu pai e o menosprezava de maneira compungida, lamentando o fato de que ele era constantemente humilhado e acusado pela esposa de ser um homem derrotado e fracassado.

Dividiremos esse sonho, visando maior facilidade de exposição e de análise, em duas partes distintas: na primeira os eventos oníricos se passam dentro do apartamento citado e, quando a paciente consegue de lá sair, inicia-se a segunda parte.

O primeiro problema de interpretação do sonho surge da necessidade de se eleger uma diretriz teórica apoiada na qual se possa efetuar, com segurança, a leitura decifradora dos conteúdos oníricos.

O segundo problema consiste na indagação que diz respeito a se essa diretriz teórica escolhida será suficientemente ampla e versátil para abranger uma escala extensa de questões não resolvidas e, ao mesmo tempo, minuciosa o bastante para conseguir visualizar cada uma delas em toda a sua inteireza de detalhes e pormenores.

Então, a diretriz teórica escolhida para a interpretação terá que transitar com bastante desenvoltura, no que se refere à sua capacidade de elucidação, nas regiões psíquicas correspondentes ao inconsciente coletivo e ao inconsciente pessoal conforme as concepções que estabelecemos há pouco. Ora, a melhor que nos parece para esse caso e que também temos imediatamente à mão é a diretriz junguiana de análise psicológica porque consegue harmonizar os fatores gerais de predisposição coletiva com os de cunho pessoal e isso se enquadra exatamente dentro do teor genérico de nossas concepções. Assim, de acordo com essas considerações, passaremos em seguida a expor a interpretação que julgamos ser a mais plausível para o caso:

O conteúdo onírico em sua primeira parte colocava à mostra, claramente, a ligação afetiva muito intensa e de nível bastante arcaico que ela mantinha com a sua mãe e que poderíamos caracterizar como estando situada em um estágio matriarcal. Usando a terminologia junguiana, poderíamos dizer que essa paciente estava vivenciando um indizível medo da face negativa e mais terrível do arquétipo da Grande Mãe, isto é, daquilo que significa abismo e treva e que também seduz, envenena, domina e devora (25). Em seu desenvolvimento pessoal ainda não havia ingressado na fase patriarcal (o complexo de Édipo freudiano) porque a figura de seu pai tinha sido introjetada por ela como algo desprezível, pequeno e insuficiente. Era a intensa ligação afetiva com sua mãe que dominava e ocupava a sua vida psíquica em seus estratos mais antigos e remotos, mas nem por isso menos vívidos e atormentadores. E é exatamente isso que é representado na primeira parte desse sonho: a mãe abissal que persegue, que seduz e que devora, procurando uma fusão completa com a filha através de uma relação homossexual e o imenso pavor desta, debatendo-se desesperadamente para evitar que seja tragada por ela. Além disso, a paciente manifestava profundo ódio pela mãe, o que denotava a grande intensidade de impulsos destrutivos que existiam em seu psiquismo em relação àquela como uma forma de libertar-se e individuar-se

Tão logo essa paciente ingressou no tratamento analítico comigo, provavelmente começou a projetar maciçamente em mim os equivalentes instintuais ainda não simbolizados referentes ao seu incompleto e frustrado romance familiar, ora manifestando a sua desconfiança e hostilidade, ora as suas esperanças e expectativas promissoras. Ás vezes sentia que eu a desprezava e rejeitava como sua mãe sempre o fez e em outras ocasiões mostrava-se desesperançada com o tratamento, dizendo com muita raiva que eu não seria capaz de ajudá-la, identificando-me assim com a figura pusilânime e fraca de seu pai, que não a havia ajudado a sair da etapa arcaica e aprisionadora em que se encontrava.

A segunda parte do sonho mostra a realização de um desejo central correspondente à verdadeira necessidade de sair da fase matriarcal e entrar na etapa patriarcal, isso sendo representado pelo pai abraçando-a protetoramente e com ares de homem forte, capaz e bem sucedido(um "executivo"). Além disso, parece mostrar a importância de alcançar a diferenciação evolutiva de sua sexualidade através da aquisição da heterossexualidade representada pelo namoro comigo (o rapaz que flertava com ela) apesar dos impedimentos ético-morais (balcão).

Após essas explicações, podemos dizer que efetuamos a elucidação do conteúdo simbólico do material onírico estudado de modo satisfatório.

Pois bem, agora como explicar a forma de explicitação simbólica contida nesse material onírico de acordo com as três hipóteses teóricas que estabelecemos há pouco?

Em primeiro lugar, vemos nitidamente como as vivências pessoais dessa paciente povoaram e deram forma própria às potencialidades capacitativas de operar simbolicamente inerentes às estruturas psíquicas mais arcaicas de sua vida mental. As etapas de predisposição natural ao matriarcado e ao patriarcado que existem latentes em todos nós tornaram-se visíveis, vivas e inteligíveis nesse caso particular, ou seja, foram cunhadas e materializadas unicamente a partir de sua trajetória existencial, própria e individualizada.

Em segundo lugar, notamos como o núcleo familiar é responsável pela maleabilização da carga instintual biológica original, propiciando a sua institucionalização através do processo de operação simbólica.

Para que não reste nenhuma dúvida a respeito de como esse processo é efetuado em sua totalidade, tornam-se necessárias algumas considerações teóricas complementares a respeito:

Podemos supor, com bastante segurança, que nas sucessivas estruturas ou camadas psíquicas existiria uma transição gradual no que se refere ao caráter de simbolização da carga instintual biológica. Desde as mais arcaicas até as mais recentes, essa carga instintual apresentaria vários aspectos de simbolização, da sua total ausência, passando por estágios de simbolização parcial até chegar à etapa de simbolização completa. Pois bem, podemos supor, além disso, que alguns equivalentes instintuais parcialmente simbolizados e potencialmente verbalizáveis seriam impedidos de chegar ao campo da consciência por força de uma incompatibilidade representada pela sua realidade nociva, legítima ou imaginada, e as exigências dos dispositivos sociais. Poderíamos dizer que esses equivalentes instintuais começaram a tomar forma simbólica, configurando-se como bem delineados e completamente direcionados em sua intenção, mas a sua descarga foi de algum modo foi proibida e interditada voltando a residir, então, nas camadas ou estruturas mais antigas e sempre inibidas pelas mais recentes. Dessa maneira, continuariam a permanecer ocultas naquelas estruturas, porém em regime de constante tensão com as outras camadas inibidoras, aguardando sempre uma oportunidade de manifestar a sua descarga como, por exemplo, na atividade onírica. Desse modo, teríamos no inconsciente dois tipos básicos de equivalentes instintuais que guardariam grande tensão com as estruturas psíquicas recentes: os equivalentes instintuais amorfos, porém predispostos a uma simbolização específica que não foi realizada a contento na ocasião apropriada e adequada para tal e os equivalentes instintuais parcialmente simbolizados e impedidos de chegar à consciência devido a uma suposta nocividade social.Devido a esse caráter de interdição e proibição, aliado ao fato da simbolização ser incompleta, as manifestações oníricas desses equivalentes instintuais se fariam através da composição com elementos perceptivos retirados da vida cotidiana e armazenados na memória, resultando que a forma definitiva do sonho seria predominantemente arcaica, obedecendo assim as características próprias das estruturas onde estivessem situados. Estaria, desse modo, elucidado o mecanismo de ‘censura’ dos equivalentes instintuais inconscientes interditados e que se manifestam sob uma forma bastante peculiar no material onírico, de maneira geral. O mesmo mecanismo se aplicaria aos equivalentes instintuais amorfos inconscientes, os quais, em uma tentativa de adquirir simbolização e direcionamento para diminuir a sua valência energética absoluta, tomariam emprestados também alguns elementos senso-perceptivos mnêmicos da experiência comum e se manifestariam daquela forma já descrita no material onírico.Muitas vezes, no entanto, o sonho revela um aspecto bastante preciso e detalhado assemelhando-se às nossas vivências cotidianas de vigília, o que se poderia explicar pelo fato de que os equivalentes instintuais interditados o serem apenas em um grau muito pequeno, estando situados desse modo em estruturas psíquicas bastante próximas da consciência, isto é, em camadas filogeneticamente mais recentes. A forma do sonho seria, então, tanto mais arcaica quanto os equivalentes instintuais inconscientes que estaria representando fossem mais proibidos e interditados, estando situado em camadas ou estruturas psíquicas também mais antigas. Isto posto, vamos passar a analisar como o processo de operação simbólica da carga instintual biológica se deu com essa paciente.

Nesse caso específico, o pai não foi capaz de fazê-lo, impedindo que a paciente ingressasse em uma fase mais diferenciada em termos de evolução do seu desenvolvimento psíquico, ocasionando a sobra de uma carga instintual forte, livre e à procura de uma satisfação ainda não totalmente simbolizada, institucionalizada, não direcionada e muito menos legitimada. Ela freqüentemente dizia: "- Eu não tenho direito de sair, de namorar e de viver a minha vida; não tenho direito a nada, sou uma pessoa horrível..." (sic). A figura paterna teria que efetuar e simbolização da carga instintual originariamente amorfa e lhe dar a expressão e direção institucionalizadas, pois somente desse modo ela se sentiria com o direito de vivenciar livremente a sua próxima etapa evolutiva psíquica. Isso teria sido possível através de um relacionamento afetuoso e próximo com a filha, além da necessidade de se firmar verdadeiramente como seu pai por meio da distinção e separação bem definidas dos papéis parentais, cabendo-lhe a atribuição de ordenar, organizar e administrar as leis e normas domésticas. Com relação a essa paciente, podemos dizer que ela mesma procurava, juntamente com vivências institucionalizadoras cotidianas experimentadas com outras pessoas e em outras situações extra-familiares, efetuar, até certo ponto em vão, o processo de operação simbólica daquelas cargas instintuais biológicas ainda amorfas, livres e com grande valência energética. O fato dela ter conseguido expressar os motivos de suas angústias e temores claramente através desse sonho, ocorrido durante o seu tratamento psicoterápico, significava alguns fatos.

Primeiramente, talvez ela sentisse que poderia, através de seu relacionamento terapêutico comigo, chegar a se separar da mãe, ou seja, elaborar e resolver os seus medos relacionados a uma ligação afetiva muito densa e conflituosa com a figura materna internalizada. A minha figura masculina quiçá pudesse efetuar o processo de operação simbólica em sua carga instintual ainda não institucionalizada, desempenhando, dessa forma, o papel que seu pai não havia conseguido exercer em relação a ela. Entretanto, para que isso tivesse êxito, para que esse procedimento possuísse eficácia, ela teria que projetar em mim as suas expectativas e desejos para que tal acontecesse, o que efetivamente sucedeu. O material onírico com o qual me deparava já expressava uma certa simbolização da carga instintual livre, silente e amorfa, já manifestava alguns sinais de verbalização, direcionamento e organização. A minha tarefa consistia, portanto, em interpretar para ela o sentido implícito do sonho, ou seja, através da verbalização daqueles propósitos ocultos, acabar de efetuar a operação simbólica da carga instintual, tornando-a inteligível, direcionada e legitimada e com possibilidade de satisfação dentro dos complexos de integração simbólica ofertados pelo ambiente sócio-cultural. E isso teria que ser feito por mim de uma forma afetuosamente próxima e compreensiva, porém sempre de um modo firme e seguro. A observação do acompanhamento do caso mostrou uma evolução clínica razoavelmente satisfatória dessa paciente – pelo menos a curto prazo - com atenuação gradual dos seus sintomas mais agudos, ocorrendo paralelamente com a restauração temporária do seu processo de socialização.

Por último, percebemos na forma da manifestação onírica, para começar pelo próprio ambiente do sonho, sombrio, indefinido e fantasmagórico, elementos arcaicos sugestivos de uma fase bastante primitiva de uma mediação apenas parcial da vertente senso-perceptiva pela dimensão simbólica. A representação da mulher homossexual agressiva, hostil e ameaçadora equivaleria a uma percepção de parte da figura materna pela paciente em um nível antigo e dotado de um caráter de concretude próprio desse estágio de desenvolvimento psíquico. Falando de outra maneira, a materialização de parte do arquétipo materno em termos de representação psíquica da paciente como uma imagem feminina com aquelas características correspondia a uma percepção real, porém denunciando, pela sua forma, a falta de uma integração simbólica completa e mais atual. Quanto a isso, pensamos ser muito provável que todas as nossas vivências, naquilo que se refere à senso-percepção, sejam abrangidas pelas várias estruturas psíquicas, desde as mais arcaicas até as mais recentes, com a ressalva de que o registro e as manifestações dessas vivências em nível arcaico são normalmente inibidas por outras potencialidades capacitativas de simbolização mais atuais e equivalentes àquelas estruturas filogeneticamente mais recentes. Desse modo, chegava ao campo da consciência da paciente não o seu conceito ou significado pessoal de mãe com um caráter essencialmente simbólico, mas um material cênico que expressava concretamente as intenções ameaçadoras daquela. Poder-se-ia dizer, para se compreender melhor o que estamos dizendo, que seria como se a sua acepção ou conceito pessoal simbólico de mãe (que ela ainda não possuía integralmente) percorresse um caminho inverso, do nível intelectivo até o senso-perceptivo, e a meio caminho se desmembrasse colocando à mostra o conteúdo perceptivo real que originariamente deveria estar totalmente encerrado no núcleo daquela noção ou conceito. É necessário esclarecer, contudo, que essa possibilidade em relação à expressão onírica consiste apenas em um artifício didático-expositivo para ajudar na compreensão do que estamos explicando, com o fenômeno ocorrendo, na realidade, no sentido da senso-percepção em direção ao nível intelectivo. Ainda, durante o sonho, desprovido de frases ou palavras claras e completas, ela sabe que a terrível mulher irá atacar os hóspedes do apartamento, isso como se fosse por algum método telepático ou mágico, como se os conteúdos cênicos transmitissem alguma sonorização acústico-verbal indefinidos quanto à sua forma (o que, aliás, é comum em todos os sonhos), porém bastante precisos quanto à sua capacidade de comunicação. E mais, a seqüência temporal e espacial de imagens e de eventos está como que truncada, interrompida e fragmentada, configurando-se como um conteúdo psíquico intemporal e fantástico, próprio daquelas etapas mais arcaicas de mediação do sensível pelo simbólico, como já vimos antes. As mesmas comparações e analogias podem ser feitas na segunda parte do sonho, tarefa que nos parece perfeitamente dispensável.

Finalizando esta parte, vale ressaltar ainda que essas três perspectivas teóricas, apoiadas nas quais tentamos compreender a forma geral de explicitação onírica e, quiçá, do mecanismo do inconsciente, não podem ser concebidas como subentendendo fenômenos díspares, separados e isolados, mas, sim, como acontecimentos aparentados, dinâmicos e contíguos convergindo para a estruturação de um todo fenomênico único.

Não podemos, neste ponto, deixar de notar as extraordinárias semelhanças entre a forma de manifestação dos conteúdos oníricos em geral e os dois tipos mais importantes de expressão cultural enformados pelo ser simbólico em todas as sociedades e em todos os tempos, quais sejam, a Arte e o Mito.

A análise, à luz de tudo o que vimos anteriormente, do material simbólico correspondente a essas duas formas de expressão humana universal seria um empreendimento que suplantaria em muito as nossas forças e ultrapassaria enormemente as modestas pretensões e dimensões do presente ensaio. No entanto, essa idéia parece-nos bastante interessante e poderia incitar reflexões importantes sobre o problema, sendo que talvez, no futuro, tenhamos disponibilidade de tempo e de material de pesquisa específica que possam viabilizar esse trabalho. Por enquanto, limitar-nos-emos a dizer que, certamente, essas duas formas universais de expressão cultural poderão ser amplamente compreendidas através da aplicação, em seus campos de estudo, dos conceitos anteriormente estabelecidos e desenvolvidos e que se referem aos fenômenos de depuração sensível do simbólico e da simbolização da carga instintual biológica humana.

Dito isso, passaremos agora a tentar elaborar um elo compreensivo sobre outro tipo de manifestação do inconsciente e que consiste nas alterações psicopatológicas apresentadas pelos pacientes psicóticos.

Desde há muito, as interessantes e enigmáticas manifestações psicopatológicas dos psicóticos vêm chamando a atenção dos estudiosos e pesquisadores devido às suas características peculiarmente singulares, porém somente a partir do século passado é que essas manifestações foram institucionalizadas em termos de campo científico de estudo legitimado e determinado, passando a ser objeto de observação e análise por parte da Psiquiatria.

Os métodos descritivos de observação da Psiquiatria kraepeliniana foram enriquecidos posteriormente pela diretriz fenomenológica da Psiquiatria jasperiana, obtendo-se uma classificação dos sintomas e das vivências psicopatológicas de uma maneira mais ordenada e clara. Não obstante, permanecem em total desconhecimento e incompreensão a gênese e as estranhas formas clínicas assumidas por essas manifestações psicopatológicas, detectadas especialmente naqueles pacientes que padecem de uma entidade clínica bem caracterizada e denominada psicose esquizofrênica.

Os pacientes acometidos por essa doença costumam apresentar quase invariavelmente alguns sintomas que podem ser considerados como patognomônicos do distúrbio, ou seja, sua completa caracterização e identificação associadas a uma evolução clínica desfavorável ao longo do tempo costumam firmar o diagnóstico definitivo de psicose esquizofrênica.

De início, o enfermo manifesta extrema ansiedade acompanhada por pressentimentos vagos e suspeitas obscuras, nutrindo a convicção de que todas as coisas percebidas referem-se a ele mesmo, porém sem conseguir precisar o seu exato sentido. Esse pródromo, que é denominado ‘humor delirante difuso’, é seguido por um estado no qual podem-se detectar outros sintomas, tais como vivências de influência, percepções delirantes, difusão do pensamento, sonorização e ‘roubo’do pensamento, alucinações auditivas, vivências de inspiração delirante, etc.

No caso das percepções delirantes, o paciente apresenta juízos anômalos vinculados ao material oriundo de sua senso-percepção do dia a dia. Assim, um olhar e um gesto de outra pessoa ou um simples ruído passam a significar para ele uma ameaça, um insulto, uma revelação ou o presságio de uma catástrofe.

Nas vivências de influência, o paciente se sente controlado e dominado por uma suposta força, poder ou entidade que é capaz de influenciá-lo e comandar diretamente seus atos e pensamentos, caracterizando-se como verdadeiros fenômenos de intervenção alheia.

Outros sintomas importantes são: 1 – A difusão do pensamento, em que o paciente está convencido de que os demais conhecem o conteúdo do seu pensamento, podendo ‘ler’o que ele está pensando; 2 - A sonorização do pensamento, onde o paciente sente que o seu pensamento está audível, fenômeno que pode evoluir para: 3- Alucinações auditivas, em que o enfermo escuta ’vozes’ que formulam ordens, ameaças, conselhos e comentários sobre os seus atos; 4- ‘Roubo’ do pensamento, onde o paciente crê estarem roubando aquilo que pensa; 5- As inspirações delirantes, nas quais o doente relata que não pensa os seus próprios pensamentos, mas sim que estes lhe são ’inspirados’ e ‘impostos’ em sua mente por um poder ou força extraordinários, estranhos a ele mesmo.

Pois bem, como podemos perceber pela natureza desses sintomas psicopatológicos, o aspecto da doença que mais chama a atenção do observador refere-se à radical mudança do caráter de integração simbólica verificada em quase todos os exemplos citados.O pensamento pode ser ‘lido’, divulgado ou mesmo ‘roubado, pode tornar-se ‘sonoro’até o ponto de se concretizar sob a forma de ‘vozes’que fazem ameaças, insultam ou ordenam.O símbolo passa a ter, para o enfermo, uma significação privada e pessoal com um caráter real e concreto. Como poderíamos buscar uma compreensão para esses fenômenos, à primeira vista tão inacessíveis a qualquer entendimento?

Tentaremos, para responder a essa pergunta, elaborar algumas hipóteses elucidadoras com base naqueles conceitos teóricos que estabelecemos anteriormente e que se referem aos prováveis substratos psíquicos neurobiológicos que corresponderiam ao inconsciente.

Em primeiro lugar, já vimos como o símbolo lingüístico teria ascendido do nível senso-perceptivo ao intelectivo, constituindo-se no elemento essencial para a formação do universo sócio-cultural humano. Nessa trajetória, teria havido a perda progressiva da aura sensorial originariamente ligada a ele nos primeiros tempos, ocasião na qual o processo de simbolização conseguia mediar apenas parte da vertente senso-perceptiva oriunda do mundo externo. Isso teria propiciado a criação de um mundo de valores éticos e morais, de leis, de significados e paradigmas sociais, de religiões, enfim de toda uma vasta seqüência de instâncias abstratas caracteristicamente humanas.

Em contraste, vemos como o mundo psicótico é um mundo reificado, concreto e que no indivíduo enfermo há uma ruptura abrupta ou insidiosa de seus liames histórico-existenciais, passando a vivenciar estranhos e atormentadores fenômenos subjetivos que sente como novos e que objetivamente provocam a sua desvinculação completa do meio social do qual faz parte. E é exatamente esse caráter de irrupção súbita e maciça de vivências anômalas novas, presentes em todos os relatos de sintomas descritos por esses pacientes, que nos faz pensar em algumas hipóteses teóricas.

Parece bastante razoável supor que, no caso das psicoses esquizofrênicas, - e isso poderia ser causado por um ou mais fatores de morbidez que abolissem de algum modo a inibição natural e fisiológica que as estruturas psíquicas filogeneticamente mais recentes exercem sempre sobre as mais arcaicas – sucedesse um processo de desestruturação e de desdiferenciação da dimensão simbólica no que se refere à sua capacidade, inerente a si mesmo, de mediar totalmente a vertente senso-perceptiva oriunda do mundo externo. Ocorreria, então, um fenômeno em certo sentido inverso ao usual, com o símbolo lingüístico perdendo a sua aptidão para viabilizar uma integração simbólica completa tal como a conhecemos e passando a mediar apenas parcialmente a vertente senso-perceptiva, ou seja, voltando a adquirir características próprias daquelas estruturas psíquicas mais arcaicas. Se esse pensamento for correto, estariam explicados tanto a forma peculiar desses sintomas, assim como o seu aspecto de vivências subjetivas essencialmente novas, quer dizer, na verdade tratam-se de novas vivências pessoais e inteiramente diferentes das anteriores porque agora estão sendo deflagradas e produzidas exclusivamente em regiões psíquicas até então ocultas e silenciosas, invadindo o campo da consciência estritamente inalteradas quanto a sua forma original. Seria como se o enfermo passasse a conviver subitamente com os dois lados de uma vivência arcaica e remota, testemunhando uma etapa de transição entre a pura concretude sensorial externa percebida e a sua mediação apenas parcial pelo símbolo lingüístico. Sentir-se-ia, assim, invadido pela torrente maciça do material senso-perceptivo oriunda do mundo externo que seria mediada e traduzida de um modo tênue e insatisfatório pelo símbolo, ocasionando sentimentos de insegurança, pavor e perplexidade. Passaria, então, a se sentir indissoluvelmente ligado à totalidade das coisas e ao âmago dos fenômenos do mundo externo, advindo daí uma inabalável certeza de ser o centro do mundo, com a convicção de que tudo se referiria somente a ele mesmo. É bom ressaltar, no entanto, que nos primórdios do processo de simbolização, o homem neo-simbólico muito provavelmente atravessou essa fase, porém com a diferença crucial de que o seu então recente psiquismo simbólico estava completamente adaptado a essa situação específica, configurando-se como algo em constante evolução e com expressivos ganhos e aquisições filogenéticas. No caso da psicose esquizofrênica, ao contrário, ocorreria ao nosso ver uma desdiferenciação e uma desestruturação daquelas aquisições, com o enfermo sendo lançado em estágios arcaicos de simbolização, aos quais estaria inteiramente desadaptado.

Em segundo lugar, ocorreria também uma desdiferenciação da carga instintual já simbolizada e institucionalizada, passando a apresentar um caráter desordenado, caótico e fragmentário, provocando a desadaptação imediata do sujeito enfermo aos complexos simbólicos legitimados pelos dispositivos sócio-culturais vigentes.

Com relação àqueles dois tipos de equivalentes instintuais inconscientes já mencionados e que existem normalmente em todos os indivíduos, ou seja, os equivalentes instintuais amorfos e os equivalentes instintuais proibidos, haveria a possibilidade de compreensão teórica que vem a seguir.

No que se refere aos equivalentes instintuais proibidos, como conseqüência à liberação das estruturas psíquicas mais antigas, o paciente ver-se-ia subitamente diante deles em seu campo da consciência, o que se caracterizaria como situação intolerável devido à grande intensidade de suas valências energéticas absolutas. Em decorrência desse fato, o doente, através de um mecanismo natural de defesa, começaria então a projetá-los no mundo à sua volta, na tentativa de viabilizar as suas exigências originais de satisfação para diminuir as suas grandes valências energéticas. Aqueles desejos mais ocultos e íntimos, os temores inacessíveis, os ressentimentos e as decepções consigo mesmo seriam projetados pelo sujeito enfermo nas pessoas e nas coisas do mundo, atribuindo-lhes uma conotação maligna e hostil e identificando-os como seus perseguidores e algozes, enfim, como as verdadeiras fontes de seu infortúnio. O enfermo passaria, desse modo, a criar e enformar a sua nova realidade subjetiva através de seus próprios moldes, impregnando o mundo externo com as partes de si mesmo mais espúrias, desejadas e temidas. E mais, essa nova realidade subjetiva seria essencialmente reificada, pois agora o doente lutaria e se defenderia de seus desejos e temores de forma concreta, desde que os reificou projetivamente nas pessoas e nas coisas do mundo externo.

Quanto aos equivalentes instintuais amorfos e anárquicos, nesse nível tão profundamente comprometidos devido ao processo de desdiferenciação simbólica, chegariam ao ponto de tornar-se refratários a qualquer tentativa de operação simbólica, podendo, inclusive, produzir a materialização de ações desordenadas, destrutivas e imprevisíveis. Em alguns casos de psicose esquizofrênica, especialmente na forma clínica que se denomina catatônica, não é incomum observarmos a ocorrência de ‘raptus’homicida ou suicida, aparentemente sem motivos desencadeadores externos, um acentuado grau de hetero ou auto-destrutividade.

De acordo com a gravidade do caso e dependendo, além disso, do tempo de evolução da doença, podemos visualizar com clareza os dramáticos resultados da desdiferenciação da carga instintual biológica já simbolizada e institucionalizada. Em fases avançadas de cronificação do quadro psicótico esquizofrênico, ocorreria algo como um processo de desestruturação caótica dessa carga instintual simbolizada, com os enfermos apresentando características de uma etapa de rigidez instintual incompleta e fragmentária, causando a impressão de algo bizarro e extravagante aos olhos do observador.

O mesmo se aplicaria ao amplo espectro dos sentimentos humanos, os quais, como já vimos, se constituiriam na verdadeira expressão e enunciação dessa carga instintual simbolizada. O processo de desdiferenciação os atingiria de tal maneira, a ponto de ocasionar uma total desestruturação e descaracterização daquelas matizes afetivas mais complexas e aprimoradas. Daí, a impressão que temos, freqüentemente, em casos avançados, de ‘esvaziamento’ou de ‘rigidez’ afetiva, isto é, o enfermo perde a capacidade de expressar as nuances mais diferenciadas e aprimoradas da manifestação afetiva humana, transformando-se esta em um conjunto de sentimentos rígidos, empobrecidos, fragmentários e incongruentes.

Podemos notar também, e isso desde o início da doença, que os complexos simbólicos de caráter oposto, formados por uma idéia ligada a um determinado equivalente afetivo, expressam-se sem tensão entre si no campo da consciência, causando a impressão no observador institucionalizado de incoerência. A concepção e o conceito de coerência pressupõem a exclusão de um dos opostos dos pares de símbolos antagônicos do campo da consciência, a adequação e a inteligibilidade fazem presumir uma tensão muda entre os contrários e nunca a sua convivência simultânea e ruidosa. Um deles deve estar oculto, afirmando e legalizando o outro, um deve predominar sobre o outro no campo da consciência lançando-o para a região da sombra, legitimando-se assim pela sua exposição na claridade da consciência e também pela exclusão do contrário. Isso explicaria o fato da ambivalência e da ambitendência serem dois fenômenos costumeiramente observados e constatados nos enfermos esquizofrênicos, ou seja, há a coexistência de dois sentimentos ou de duas tendências opostas e contrastantes no indivíduo.

Para tentar consolidar tudo o que dissemos, vamos tomar como exemplo ilustrativo um caso clínico de psicose esquizofrênica, forma paranóide, que tivemos oportunidade de analisar detalhadamente.

Há algum tempo, foi internada na enfermaria do hospital onde trabalho uma paciente ainda relativamente jovem, separada do marido, com dois filhos pequenos e que havia trabalhado como empregada doméstica.

A referida paciente estivera internada há cerca de um ano em outro hospital psiquiátrico, tendo obtido na ocasião melhora satisfatória. Há alguns dias, entretanto, ela voltara a apresentar comportamento bastante agressivo, insônia, atitudes incoerentes, imprevisíveis e inadequadas, e como não tivesse aceitado a internação voluntariamente, sua irmã foi obrigada a interná-la à força, com a ajuda de policiais.

Quando a examinei na enfermaria do hospital, a paciente mostrou-se cooperativa à entrevista, orientada em relação ao tempo e espaço e com o campo da consciência claro. Contou-me, então, a seguinte história.

Há mais ou menos dois anos e seis meses sentiu que o mundo em seu redor estava se transformando completamente e que alguma coisa extraordinária começava a acontecer com ela. Progressivamente, foi compreendendo a nova realidade: "Tinha ficado muito famosa, o meu nome passou a aparecer em todos os jornais do mundo inteiro, me convidavam para ir à Roma e a outras cidades estrangeiras, eu era fotografada em todos os lugares onde ia. Os jornalistas me filmavam sem parar, eu comecei a conseguir tudo o que queria pelo pensamento, principalmente riqueza. Hoje sou rica,famosa e acho que também me transformei em uma santa. A minha irmã só quer me prejudicar.Tenho a impressão que ela tem muita inveja disso tudo que e por isso me internou aqui"(sic).

Além disso, a paciente relatou que não conseguia ter tranquilidade e paz porque, apesar da riqueza e da fama, havia algumas pessoas que possuíam uma espécie de ‘máquina’(sic), através da qual a controlavam, impunham-lhe pensamentos, davam-lhe ordens, faziam comentários insultuosos a seu respeito e às vezes roubavam o que ela pensava. Sentia-se, desse modo, intranqüila, perseguida e ameaçada.

Ora, para começar, essa paciente era uma pessoa oriunda de um meio sócio-pedagógico precário, evidenciava alfabetização incompleta e exercia uma profissão humilde e mal remunerada. O fato de apresentar um delírio primário preenchido com o conteúdo descrito acima é bastante significativo.

Os seus equivalentes instintivos proibidos e até então inconscientes encontravam agora uma oportunidade de conseguir a satisfação almejada através da sua projeção maciça e reificada nas coisas e pessoas do mundo externo. Essa moça pobre e humilde, que certamente já havia sofrido muitas privações e dificuldades em sua vida, agora tornava-se rica e famosa. Entretanto, não só esses desejos eram projetados no mundo à sua volta, mas também aqueles bastante hostis, agressivos e sombrios, resultando que a paciente se sentia predominantemente ameaçada, insegura e perseguida em sua nova realidade subjetiva. Pode-se observar, com clareza, o caráter mágico e concreto dessas realizações internas através da consecução dos objetivos materiais desejados como, por exemplo, riqueza e fama através do poder de seu pensamento. Vê-se, nitidamente, como os desejos e as aspirações pessoais, anteriormente sob uma forma parcial ou inteiramente simbolizada,isto é, abstrata, adquirem agora um cunho concreto, desdiferenciado e reificado, apresentando analogias substanciais e notáveis com o pensamento primitivo. Os seus anseios e ambições se fazem sonoros, adquirem um caráter de concretude e de plena materialidade sensível percebida, transmutando-se em ‘vozes’que a elogiam e lisonjeiam. Por outro lado, os seus inconformismos, frustrações e ódios também se materializam por intermédio das ‘vozes’que tecem comentários insultuosos e torpes a seu respeito, além de lhe fazer uma série de ameaças. Não raro, ela ouvia ‘vozes’ que a comandavam através de ordens imperiosas, as quais teria que cumprir de qualquer maneira. Isso demonstra como o enfermo, de modo geral, se encontra completamente à mercê de seus próprios equivalentes instintuais reificados, exigentes e desordenados. Pode-se notar também que, com a derrocada das estruturas psíquicas mais recentes e que equivalem à própria ordem social subjetiva, há a prevalência das estruturas mais arcaicas de modo desdiferenciado e anárquico e que passam a controlar a totalidade da vida psíquica. A dissolução da consciência de regência do ’eu’ traz, como conseqüência imediata, a desagregação da certeza subjetiva de se possuir uma atividade própria e independente em toda ação executada, ou seja, compromete profundamente o complexo simbólico correspondente a idéia e sentimento de ‘si mesmo’. Assim, o paciente sente-se controlado, comandado e influenciado por poderosas forças ou entidades estranhas e desconhecidas sem que nada possa fazer para evitá-lo, submetendo-se passivamente ao seu terrível domínio. Em casos mais graves e avançados, há também sério comprometimento da certeza subjetiva relativa à própria identidade de ‘si mesmo’, tendo o enfermo forte convicção de que já não é a mesma pessoa na nova realidade subjetiva que se lhe impõe. Por vezes, acontece crer ser várias pessoas, simultaneamente, ou alterna a identidade de ‘si mesmo’de acordo com vivências específicas, o que mostra a labilidade e o acentuado desordenamento da capacidade simbólica das estruturas psíquicas arcaicas e agora dominantes em um avançado estágio de desdiferenciação.

Pois bem, na tentativa de recapitular sumariamente o que foi visto, podemos dizer que:

1-A forma peculiar do delírio primário esquizofrênico – incompreensível sob o ponto de vista jasperiano - é resultante da desdiferenciação da capacidade do símbolo em mediar o material senso-perceptivo oriundo do mundo externo, apresentando desse modo um caráter arcaico e próprio daquelas estruturas psíquicas mais arcaicas.

2- O conteúdo extremamente variável e inverossímil do delírio deve-se ao povoamento de um mundo interno – recém desprovido de mediação simbólica do sensível – pelos equivalentes instintuais, inconscientes até antes da eclosão da doença, e que agora moldam e forjam um novo drama pessoal encenado em uma nova realidade subjetiva, fantasmática e totalmente imaginária.

Quanto ao terceiro aspecto de nossa discussão, vale a pena fazer alguns comentários a respeito de certos elementos psicopatológicos, por vezes intrigantes, que se nos apresentam na prática clínica rotineira.

Há pouco tempo, tive a oportunidade de atender uma paciente que me foi encaminhada por outro colega para diagnóstico e tratamento. Era uma mulher de meia idade, casada, com dois filhos, professora primária e que possuía muito boa situação financeira, pois o marido era um próspero fazendeiro, residindo em uma cidade do interior do Estado. Compareceu à consulta acompanhada por ele e relatou o seguinte:Há cerca de aproximadamente dois meses começou a sentir "que tudo estava diferente...os meus vizinhos fazem comentários maldosos sobre mim durante dia e noite, insultam-me e me ameaçam...um padre da minha cidade lê o meu pensamento, tem muito poder sobre mim, me controla e me influencia, ele é o único que me defende e procura me proteger dos outros..."(sic).

O marido da paciente, quando ficou a sós comigo, confirmou que a esposa há algum tempo estava manifestando um comportamento estranho, quase não dormia, afirmava ouvir muitas ‘vozes’ que a insultavam e ameaçavam, ficava constantemente sobressaltada e tinha muitas ‘cismas’(sic) em relação às quais ele estava tentando convencê-la de que eram infundadas e desprovidas de sentido, mas que de nada adiantara a sua tentativa de dissuadi-la de tais preocupações e suspeitas.

Em relação à forma e ao conteúdo geral do delírio dessa paciente, pouco temos a comentar devido às suas estreitas semelhanças com o caso anterior, exceto quanto a um elemento psicopatológico que nos chamou bastante atenção e que se refere à profunda convicção demonstrada por ela de que o padre de sua cidade ‘lia’os seus pensamentos e exercia intenso controle e domínio sobre si mesma. Um outro fato importante e que serviu para reforçar a nossa atenção e interesse sobre esse dado psicopatológico consistiu em que a paciente não conhecia o referido padre pessoalmente e sabia somente o seu nome, tendo apenas ouvido de algumas pessoas umas poucas referências a seu respeito, já que ele era recém-chegado a cidade.Ela se dizia muito religiosa e fazia questão de cumprir os seus deveres católicos com muita assiduidade, indo à missa todas as semanas e fazendo as suas orações diariamente. Como explicar, então, a presença da figura desse sacerdote desconhecido no conteúdo de seu delírio e de uma forma tão importante, desempenhando o papel de seu dominador e ao mesmo tempo de seu defensor e protetor?

Para começar, sabemos quão importante é a figura do xamã ou feiticeiro nas sociedades tribais mais primitivas, tendo ele atribuições muito importantes e decisórias no que diz respeito à vida cotidiana dos membros da tribo, desde as suas escolhas conjugais até os seus negócios particulares e também nas deliberações importantes do grupo, tais como expedições guerreiras e de caça, plantio e colheita, etc. Pois bem, sabendo disso, ficamos tentados a explicar a natureza do conteúdo delirante dessa paciente com base na hipótese de que, naquelas estruturas psíquicas mais arcaicas, muito provavelmente existiriam potencialidades capacitativas de operar simbolicamente correspondentes a categorias mítico-religiosas também bastante arcaicas e que seriam acionadas de modo explícito, dominante e autônomo no momento em que sucumbisse a inibição natural e fisiológica das estruturas psíquicas mais recentes sobre elas. Dessa maneira, no caso em questão, seria exteriorizado diretamente um tipo de manifestação mítico-religiosa antiga e de caráter coletivo, porém agora povoada por elementos senso-perceptivos mnêmicos provenientes das vivências pessoais e cotidianas da paciente. O poder sobrenatural desse padre que ‘lia’ o seu pensamento magicamente, que a dominava e que também procurava protegê-la das ameaças de seus inimigos, tudo isso nos faz pensar na ativação de uma categoria psíquica mítico-religiosa arcaica e também bastante poderosa porque encerraria, em si mesma, uma tendência coletiva humana. O nome do sacerdote desconhecido teria sido, desse modo, identificado com a imagem atávica do xamã tribal, tornando-se possuidor de poderes mágicos e sobrenaturais. O fato da paciente identificar o nome do padre desconhecido à imagem de um xamã tribal, não o fazendo com a figura do padre conhecido e que celebrava as missas na igreja que ela freqüentava, também nos parece bastante intrigante. A circunstância do sacerdote ser desconhecido, com exceção de seu nome, alude a um caráter de mistério e de enigma, evoca o poder mágico do nome sagrado e da palavra de modo geral, crença universalmente encontrada no pensamento primitivo. Podemos dizer que essa paciente estava vivenciando um contato direto com o numinoso, inerente à latência de uma categoria coletiva mítico-religiosa e que se manifestou enformada pelos elementos pessoais de suas experiências cotidianas.

Com relação a isso, freqüentemente temos a oportunidade de constatar e identificar a presença desses elementos de conceituação mítico-religiosa em muitos outros quadros psicóticos e em outras formas clínicas de psicose esquizofrênica.

Algumas vezes, o material plástico relativo à pintura, desenho ou escultura realizado por pacientes esquizofrênicos na Terapia Ocupacional em uma fase posterior à crise revela conteúdos psíquicos bastante primitivos e arcaicos, sobressaindo-se, por vezes, elementos telúricos e cósmicos sob a forma de imagens que lembram os conhecidos rituais sagrados de sacrifício e adoração das grandes Deusas-Terra (25). Isso remete o nosso pensamento imediatamente àquelas etapas onde o homem recém-simbólico estava emergindo da sua união indissolúvel com a Terra e com a Natureza, agora simbolizada em termos de conceituação mítico-religiosa como a sua Deusa-Mãe, da qual nasceu como fruto legítimo (25).

Em outros casos, verificamos a provável manifestação de certas estruturas psíquicas ainda mais primitivas e arcaicas, talvez situadas em um estágio quase pré-verbal e proto-simbólico, correspondentes àquelas fases primevas e remotas de uma mediação do sensível pelo simbólico em grau muito pequeno. Nesse estágio,o doente se veria imerso em um mundo inundado pela materialidade sensorial bruta, maciça e em quase completo silêncio de linguagem, limitando-se a vivenciar passivamente uma estranha e longínqua realidade visualizada agora face a face, e que se lhe tornaria subitamente presentificada.

Com efeito, em uma forma clínica da doença denominada esquizofrenia catatônica, o enfermo amiúde se mantém absolutamente alheio ao meio ambiente, rechaçando qualquer tipo de contato verbal e recusando inclusive água e alimentos, ingressando, desse modo, em um estado clínico que é chamado de estupor catatônico.Eu mesmo tive a oportunidade de tratar de um caso no qual, além de haver um total negativismo, a paciente apresentava paralisia de suas funções orgânicas excretoras. Depois da remissão da crise, ela descreveu-me sua terrível experiência durante a qual havia vivenciado alucinações visuais de cunho apocalíptico referentes à ‘destruição e ao fim do mundo’, alucinações essas que ela qualificou como indescritíveis, dado o seu caráter de assombrosa estranheza.

Após esses exemplos clínicos acompanhados de seus respectivos comentários, esperamos que – à semelhança com o estudo anterior que fizemos a respeito da forma e do conteúdo das manifestações oníricas em geral – tenha ficado suficientemente clara a compreensão dos sintomas psicopatológicos dos enfermos esquizofrênicos à luz das três perspectivas teóricas que estabelecemos e desenvolvemos antes e que são:


Processo de operação simbólica da carga instintual biológica.


Mediação do sensível pelo simbólico.

Vários estágios de potencialidades funcionais capacitativas de operar simbolicamente correspondentes a matrizes simbólicas dotadas de sucessivos graus evolutivos filogenéticos.

Entretanto, ainda há muito o que compreender e o que desvendar, desde que o homem, esse manancial inesgotável de produções e expressões culturais, também o é de enigmas, surpresas e enganos.

Teríamos, talvez, que apelar para a divina sabedoria do sátiro SILENO o qual, com a sua carga instintual semi-simbolizada tal como convém a um ser que é meio homem e meio animal, sorri maliciosamente de nossa ignorância e se entrega ao seu orgiástico destino traçado previamente, certo de que encarna e expressa a pungente e risível epopéia humana.


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