"A FENOMENOLOGIA DOS TRANSTORNOS PSICÓTICOS ATÍPICOS:
OS ESTADOS PSICÓIDES"

 

Souza, G.F.J.*

*Médico Psiquiatra

Preceptor da Residência de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da UFMG

UNITERMOS

Psicoses Atípicas

Transtornos da Personalidade

Estados Psicóides

Fenomenologia

RESUMO :

Os quadros psicóticos atípicos sempre se constituíram em um desafio diagnóstico e terapêutico para a clínica psiquiátrica. Em vista disso, há a necessidade de maiores estudos fenomenológicos desses quadros visando unificá-los e homogeneizá-los clinicamente, apesar da aparente diversidade psicopatológica apresentada. Com este objetivo, o Autor, utilizando um caso clínico como uma alavanca para movimentar a discussão teórica, empreende uma detalhada análise fenomenológica da atipia psicótica, estabelecendo um padrão fenomenológico uniforme para facilitar o diagnóstico e o tratamento desses quadros. Além disso, estabelece os conceitos de "morbus" primário e secundário e "filtro" caracterológico, tentando elucidar as estreitas relações psicopatológicas e clínicas entre os transtornos da personalidade e as psicoses atípicas. Por fim, propõe a utilização do termo estados psicóides para denominar esses quadros, objetivando sua unificação nosográfica.

INTRODUÇÃO :

O presente artigo procura, como principal objetivo, contribuir para o estabelecimento das fronteiras fenomenológicas daqueles quadros psicóticos atípicos e esclarecer sua relação com sintomatologia peculiar, que denominamos psicóide , manifestada por alguns pacientes portadores de transtornos da personalidade.Tais quadros clínicos não raro confundem os psiquiatras, em especial aqueles iniciantes, devido a uma enorme diversidade de expressão psicopatológica apresentada pelos pacientes, situando-se na divisa fenomenológica daquilo que tradicionalmente ora é classificado como "sintomas neuróticos" e ora como "sintomas psicóticos". Acreditamos que os DSM (1,2 ) são, de fato, valiosos instrumentos de classificação das doenças mentais com vistas a tornar o diagnóstico psiquiátrico mais preciso, específico e confiável.No entanto, no que se refere às psicoses de maneira geral, constata-se uma enumeração de sintomas psicopatológicos talvez demasiadamente concisa e até simplista, levando-se em conta a grande complexidade e o extremo polimorfismo clínico dessas vivências anômalas tão intrigantes. Com efeito, julgamos que termos psicopatológicos sumariamente abrangentes tais como "delírios", "alucinações" e "incoerência ou afrouxamento acentuado das associações", presentes nos DSM (1,2), revelam-se insuficientes e por demais genéricos para caracterizar vivências subjetivas psicóticas mais complexas e que sejam marcadas por algum polimorfismo clínico.No caso especial das psicoses que se apresentam em pacientes com transtornos de personalidade, os critérios diagnósticos ali citados(2) são vagos e imprecisos, induzindo uma tácita sobreposição das reações vivenciais anormais oriundas das disfunções caracterológicas com os sintomas psicóticos atípicos, o que ocasiona, naturalmente, dúvidas e controvérsias quanto ao diagnóstico.Esses sistemas classificatórios reservam poucos escaninhos diagnósticos para as psicoses atípicas que, também, mostram-se muito pouco sensíveis fenomenologicamente (Transtorno Psicótico Breve e Transtorno Psicótico sem Outra Especificação) (1). HATOTANI (3), revendo o desenvolvimento do conceito de psicoses "atípicas" na Europa e Estados Unidos, mostra as várias denominações utilizadas para o grupo de psicoses que não se encaixam, fenomenologicamente, no interior da tradicional dicotomia Kraepeliniana.Assim, enumera o "Bouffée délirante"(Escola Francesa), as "Psicoses Ciclóides" (Leonhard,Perris), as "Psicoses Reativas" (Escola Escandinava) e as "Psicoses Esquizoafetivas Agudas" (Kasanin) como os termos mais comuns empregados para aqueles quadros psicóticos de início agudo , sintomatologia polimórfica e bom prognóstico.JAREMA (4) apresenta o caso clínico de uma mulher de 38 anos que sofreu dois severos episódios mistos, com sintomatologia paranóide e afetiva de caráter agudo e bom prognóstico, em sua opinião um quadro de "Psicose Ciclóide".RIVET et all (5), selecionando 113 casos dentre cerca de 1.000 hospitalizações consecutivas, designaram-nos "estados paraesquizofrênicos" e os distribuíram , segundo os critérios do DSM-III-R da seguinte maneira :desordem de personalidade "borderline"(27 casos),esquizóide(40 casos) e esquizotípica(15 casos), transtorno esquizofreniforme e transtorno psicótico inespecificado(17 casos) e psicose reativa breve(14 casos). YEUNG et all(6) , pesquisando através de escalas traços e desordens de personalidade em parentes de primeiro grau de pacientes psicóticos, concluíram que aqueles relacionados a enfermos com "psicoses atípicas" poderiam formar um grupo separado. KENDLER et all(7), em um estudo de grandes proporções na Irlanda e que abrangeu 1544 familiares de primeiro grau de cinco grupos incluindo esquizofrenia, outras psicoses não afetivas, doença afetiva psicótica e não psicótica, além de controles não selecionados, concluíram que a esquizotipia é um constructo clínico multidimensional e complexo e cujas várias dimensões diferem amplamente tanto no que diz respeito ao grau, quanto à vulnerabilidade familiar à esquizofrenia.Desordem subpsicótica do pensamento, sinais de esquizotipia negativa tais como contato pobre e comportamento bizarro, desempenho ocupacional deficiente e esquiva ou isolamento sociais são mais proeminentes nos familiares dos esquizofrênicos do que nos controles.Outro estudo importante(8) realizado recentemente conclui que a vulnerabilidade familiar para esquizofrenia não é compartilhada por famílias de probandos com desordem afetiva. A desordem esquizoafetiva e as desordens de personalidade do Grupo "A", entretanto, ocorrem em famílias que possuem tanto probandos com esquizofrenia quanto com desordem afetiva.Além disso, a existência de desordens afetivas psicóticas não parecem consistir em uma expressão de vulnerabilidade à esquizofrenia. MAFFEI et all(9) pesquisaram a hipótese do DSM-III-R de que algumas desordens de personalidade corresponderiam a fatores de predisposição às Psicoses Reativas Breves, encontrando certo grau de concordância no estudo.Por outro lado, AKISKAL(10) vem teorizando que alguns quadros de transtorno "borderline" da personalidade parecem representar, na verdade, expressões sub-afetivas dos transtornos de humor, devendo, por este motivo, situar-se no interior do "spectrum" dos trantornos bipolares.O autor fala em "borderland", termo que, segundo ele, corresponde a um extenso território temperamental instável com uma prevalência em torno de 4-6% na população geral, superior à prevalência de 1% do transtorno bipolar clássico.Estabelece três tipos básicos de temperamento, quer sejam, o distímico, irritável e o ciclotímico e afirma que a "instabilidade estável" desses quadros é secundária à desregulação afetiva temperamental de base que teria se exacerbado durante tempestades emocionais protraídas ocorridas em períodos particularmente difíceis da biografia desses pacientes.Ainda , AKISKAL(11) desenvolve e conceitua o "spectrum" clínico das desordens bipolares, dedicando-se aos aspectos fenomenológicos dos estados afetivos mistos, ressaltando que muitos pacientes que apresentam formas clínicas de ciclagem ultra-rápida são taciturnos e melancólicos, com humor lábil e irritável, características que podem ser confundidas com a sua própria maneira de ser e, por isso mesmo, são erroneamente diagnosticados como portadores de desordens "borderline" da personalidade, privando-se, assim, dos potenciais benefícios terapêuticos dos agentes estabilizadores do humor.Em outro trabalho recente, AKISKAL et all(12) compararam 143 pacientes com estados mistos a cerca de 118 pacientes com quadro de mania e sub-dividiram posteriormente os primeiros em "mania mista disfórica"(54%), "estados depressivos psicóticos agitados" com humor irritável e fuga de idéias(17,5%) e "mania inibida improdutiva" com fadiga, indecisão e insegurança (26%) , concluindo que a fenomenologia dos quadros mistos não se resume a uma mera sobreposição de sintomas afetivos opostos, representando , em alguns casos, ou a intrusão de uma fase expansivo-excitável em um temperamento depressivo ou a eclosão de um episódio melancólico em um temperamento hipertímico. De qualquer maneira, apesar da grande diversidade dos objetivos e dos métodos das pesquisas realizadas, como vimos antes, parece que atualmente há consenso em um ponto: os quadros psicóticos atípicos , em geral , têm uma vinculação ainda desconhecida com os transtornos de personalidade.É esta, também, a nossa impressão a respeito do problema, depois de praticamente duas décadas de atendimento de quadros psicóticos incaracterísticos e atípicos.O termo atípico carrega o sentido de algo irregular, que não se encaixa em um padrão típico e uniforme.Entretanto, temos razões para acreditar que as expressões clínicas multiformes desses quadros podem, pelo menos em princípio, ser o resultado final de um encadeamento de eventos patológicos passíveis de entendimento.Dito de outro modo, contrastando com a aparente irregularidade e polimorfismo clínicos que se apresentam, talvez haja uma ordem subjacente na seqüência de processos fisiopatológicos que seja capaz de prever e delinear nitidamente tais manifestações fenomenológicas. Mais, caso isso seja plausível, seria razoável tentar-se conceituar, por mais paradoxal que possa parecer, um padrão fenomenológico de atipicidade psicótica(14) que possa facilitar o diagnóstico e o tratamento desses casos?

Apresentaremos, a seguir, um caso clínico que acompanhamos já há alguns anos e que pode se mostrar bastante útil e ilustrativo para a discussão teórica que empreenderemos depois.

RELATO DE CASO :

Conheci M. em setembro de 1992 , ocasião em que se encontrava hospitalizada em uma clínica psiquiátrica devido a mais uma de suas crises nervosas. Fôra chamado por seu marido, médico, para prestar-lhe assistência, desde que o colega que o fazia anteriormente resolvera afastar-se do caso. Tratava-se de uma mulher de trinta e seis anos, esguia, gestos delicados e com fala pausada e lenta. Estava muito magra e abatida, mostrando um olhar melancólico no semblante carregado e cansado. Eu tinha pleno conhecimento, através dos depoimentos prestados pelo seu marido e pelo seu próprio médico, da grave situação em que a paciente se encontrava. Já há alguns anos, vinha apresentando certas crises que comprometiam muito o seu relacionamento com o cônjugue e os cuidados em relação à filha de sete anos. Segundo o relato de seu marido, M., de forma periódica e aguda, passava a apresentar mudança repentina e radical em seu comportamento: de pessoa terna e cuidadosa que era com a família, tornava-se inopinadamente hostil, ríspida e irritável, demonstrava suspeitas e medos infundados e era sujeita a explosões de raiva e choro sem motivos aparentes. Tornava-se, também, singularmente desatenta e alheia em relação às responsabilidades de casa e esquecia-se de cumprir compromissos cotidianos básicos.Evidenciava insônia e inquietação, desconfiando constantemente que o marido pudesse prejudicá-la de algum modo e, nos momentos de atrito com ele, passava a apresentar atitudes surpreendentemente inabituais, como rompantes revestidos de uma teatralidade grosseira e vazia.O cônjugue percebia o tom de incoerência e inadequação que coloria o comportamento da esposa mas, apesar de também ser psiquiatra, ainda não conseguira caracterizar com certeza um quadro psicótico bem definido. Parece, contudo, que essas atitudes estavam mais próximas da clássica incongruência psicótica do que da conhecida bélle indiférènce. Ele relatava que, nesses momentos de crise, a mulher praticamente não parava em casa, multiplicando vertiginosamente os seus afazeres profissionais a ponto de seu comportamento ocupacional adquirir uma conotação nitidamente maniforme.Em casa, entretanto, ostentava ora estranha taciturnidade, ora verbosidade despropositada e ressentida, com extrema instabilidade emocional e mudanças bruscas e incompreensíveis do estado de ânimo. Em determinados momentos manifestava caprichos tolos e pueris ou, ainda, tornava-se enigmaticamente sorrateira e dissimulada até que, de modo súbito, acusava o marido por algum fato insignificante ocorrido anos atrás e que, aparentemente, já fôra esquecido. Por vezes viajava inesperadamente sem dinheiro e pertences, alegando compromissos profissionais e sem se preocupar em deixar avisos e explicações. A casa vivia descuidada e a menina mostrava-se emagrecida e abandonada.

M. permaneceu internada durante cerca de quinze dias e , nesse período, as inúmeras entrevistas que tivemos revelaram poucos dados psicopatológicos conclusivos. A fala da paciente, assim como os seus relatos e respostas a algumas questões mostravam-se, à primeira vista, aparentemente adequados e verossímeis como um todo, embora algumas assertivas não me convencessem definitivamente. Por exemplo, afirmava que trabalhava muito porque o casamento não estava bom e que tinha muitas ambições profissionais. É certo que a paciente estava procurando dissimular os sintomas através de explicações simples e singelas mas, por outro lado, tornava-se evidente que não era portadora de um delírio de grandes proporções que pudesse roubar-lhe completamente a autocrítica e comprometer irremediavelmente o seu juízo de realidade de forma duradoura. Tampouco vivenciava alucinações vívidas ou percepções delirantes típicas. Entretanto, à medida que M. habituava-se às minhas visitas hospitalares, sentia-se mais à vontade para descrever, com detalhes, suas peculiares vivências subjetivas anômalas. Depois que melhorou, disse que durante as crises tinha a impressão de que tudo se modificava. Notava que as pessoas começavam a olhá-la de maneira diferente, as fisionomias de algumas delas mudavam, colorindo-se de cores ameaçadoras e hostis. Entretanto, não conseguia identificar nisso uma intenção malévola bem determinada, limitando-se a vivenciar um verdadeiro turbilhão de sentimentos de temor e desconfiança que se dissipavam em seguida tão rapidamente quanto haviam surgido. Tudo lhe parecia distante e nebuloso, carregado de uma atmosfera opressiva e vagamente mágica. Por vezes surgia-lhe na mente, tal qual um relâmpago, a convicção súbita que sua vida corria perigo, que o marido poderia matá-la. Então, era tomada por um pavor intenso e saía de casa desabaladamente sem um destino certo. Parece que este tipo de pensamento consistia em uma espécie de juízo volátil e fugaz que se impunha à consciência mais pela sua própria intensidade do que pela solidez e consistência, até se converter em intuição débil e bruxuleante. Carecia, no entanto, da convicção ìntima irrefutável e duradoura, própria dos verdadeiros juízos delirantes, assemelhando-se mais a raios cognitivos ocasionais que, vez por outra, fulguravam no tormentoso céu subjetivo da paciente. Em uma outra ocasião, encontrando-se no interior de uma agência bancária, teve a forte impressão momentânea de que alguns avisos aos correntistas que se encontravam afixados nas paredes referiam-se a ela mesma, que haviam sido ali colocados à guisa de "sinais" para ela, "avisando-a" de algo inefável e incompreensível. Saiu precipitadamente do local e, chegando à rua, reconsiderou, ainda atordoada, que poderia estar enganada, que tal impressão poderia ser fruto do nervosismo e da tensão constante de que era presa nos últimos dias. Contudo, não parou mais de pensar no ocorrido, considerando e reconsiderando ininterruptamente a verossimilhança ou não de sua experiência. Vê-se, neste exemplo, que falta à vivência anômala descrita um significado delirante específico que sempre é vinculado à percepção íntegra e que possui um caráter de "revelação" quando se trata de autênticas percepções delirantes(13).Além disso, a crença íntima de M. em relação a ela mostrou-se volatilmente flutuante, dissipando-se após algum tempo.

Segundo a família da paciente, ela sempre denotou temperamento introvertido, sensível e delicado e, quando mais nova, fôra menina muito tímida, assustadiça e impressionável , sujeita a desmaios diante de situações que provocassem fortes emoções. No início da vida adulta, tornou-se uma jovem algo solitária , contemplativa e idealista , com especial gosto para ideologias utópicas e extravagantes, dedicando-se a elas com um frêmito de fanatismo.Havia relato de que seu pai, assim como seu avô paterno, sofriam de Transtorno Bipolar e sua irmã de Anorexia Nervosa. Os exames complementares solicitados (química sanguínea, inclusive tireoidograma e TC do encéfalo) estavam normais. Ela já havia se submetido a várias tentativas de tratamento psicoterápico de base analítica que, no entanto, não acarretaram nenhuma melhora de seus sintomas. A remissão dos sintomas agudos e o controle temporário da irrupção das crises somente ocorreram após receber uma série de ECT prescritas pelo seu médico um ano antes.

Evolução Clínica e Tratamento :

M. evoluiu clinicamente muito bem após a introdução de carbonato de lítio(900 mg/dia) associado ao haloperidol( 7 mg/dia, dose que posteriormente foi reduzida para 2 mg/dia) nâo só durante sua internação, mas também depois, durante o tratamento ambulatorial. Viragens depressivas esporádicas que ocorreram tempos depois foram controladas de início com amitriptilina e, depois, com fluoxetina. Há cerca de três anos, coincidindo com a piora do relacionamento conjugal, passou a apresentar, alternadamente, distúrbios impulsivos do comportamento alimentar (bulimia) e de gastos financeiros (tendência à dissipação através de compras exageradas), além de sofrer esboços de duas crises marcadas por vivências paranóides e auto-referenciais brandas. Estas foram facilmente tratadas com pequeno aumento da dosagem de haloperidol, enquanto os primeiros com a associação de clormipramina (50 mg/dia). A paciente , em nenhum momento de seu tratamento, teve que afastar-se do trabalho e, atualmente, está iniciando um mestrado, apesar de mostrar-se tristonha devido à iminente possibilidade de separação conjugal.

DISCUSSÃO :

Em primeiro lugar, acompanhando-se atentamente a evolução clínica de M., constata-se que a paciente havia sido, de certo modo, poupada pela doença, desde que nos períodos intercríticos os rendimentos profissional e social mostravam-se adequadamente normais. Entretanto, desde o primeiro momento, notava-se uma certa inexpressividade de sua mímica facial e gestual, uma vaga conotação mecânica na expressão do fluxo ininterrupto da afetividade cotidiana. Certamente, havia uma diminuição da modulação e da ressonância afetivas, além de uma insegurança constante que permeava sua fala titubeante e seu contato pessoal fugidio. Em seu dia a dia, M. mostrava-se algo distímica, passiva e hipobúlica e, às vezes, aparentemente fria e distante.A vida social era restrita, limitando-se a relacionar-se com os pais e irmãos e, no trabalho, costumava dedicar-se demasiadamente a certas tarefas que despertavam seu interesse.Por outro lado, era pessoa extremamente suscetível e vulnerável a situações de rejeição e de abandono, sendo que grande parte de suas crises aparentemente havia sido deflagrada por conflitos conjugais. Nesses momentos, era presa de enorme desespero e aflição e , algumas vezes, chegava a apresentar sintomatologia sugestiva de uma verdadeira pré-crise, tornando-se impulsiva, instável e irritável. Dessa maneira, analisando-se os antecedentes temperamentais de M. e levando-se em conta os dados colhidos durante o acompanhamento de sua evolução clínica em um período de cinco anos, podemos afirmar que ela possuía, senão um transtorno da personalidade acabado, traços importantes de caráter "borderline" e esquizotípico(1,2). Em contrapartida, as crises agudas de M. sucediam-se de modo periodicamente fásico e foram muito bem controladas pelo carbonato de lítio, um potente estabilizador de humor. Ela apresentava sintomas afetivos, próprios das fases maníacas e (ou) hipomaníacos, tais como crises de cólera, hipercinesia, explosividade e inquietação. Além disso, havia uma predisposição familiar bem nítida para as desordens bipolares, além da excelente resposta do quadro clínico ao ECT. Entretanto, quando analisamos minuciosamente a essência fenomenológica das vivências anômalas da paciente, o resultado é que nos deparamos com material clínico difusamente esquizomorfo(14). Não detectamos, em nenhum momento, sentimentos ou idéias de grandiosidade, onipotência e auto-suficiência , como seria de se esperar em um estado clássico de elação e expansão do humor. O que encontramos foi um turbilhão de sentimentos de suspeita, desconfiança e perplexidade diante de algo que se afigurava como uma profunda e inefável transformação do mundo e que vinham carregados de profundos juízos auto-referenciais. À primeira vista, essas vivências assemelhavam-se a ondas fugazes e breves que banhavam a consciência por um breve período de tempo e depois arrefeciam. Parece que, originariamente, correspondiam a ocorrências e percepções delirantes, no sentido de KURT SCHNEIDER(13), mas que não se configuravam por inteiro, limitando-se a surgir de forma abortada e malograda. Após esta espécie de "dissecação" fenomenológica que empreendemos a respeito do caso, creio que já é possível tentar estabelecer um modelo teórico-conceitual plausível que possa elucidar o aparecimento de sintomatologia psicótica atípica, de maneira geral. Voltemos, entretanto, a debater nosso caso clínico, que utilizaremos tal qual uma alavanca para fazer movimentar a discussão teórica. M. , em nossa opinião, sofria, basicamente, um transtorno bipolar do humor que se manifestava de forma periódica, notadamente após exposição ao "stress" psicossocial (conjugal). Podemos indagar, além disso, até que ponto os traços "borderline" de sua personalidade já corresponderiam a flutuações sub-afetivas (10) do humor instável, manifestando-se sob a forma de impulsividade e de reações emocionais intempestivas e exageradas à menor ameaça de separação. Por outro lado, como já dissemos antes, sua personalidade possuía características esquizotípicas, quais sejam, uma afetividade algo restrita e pouco expressiva, um temperamento contemplativo e com especial gosto para ideologias extravagantes às quais se dedicava com fervor , ansiedade social flutuante com tendência ao isolamento e "rapport" pobre (7). Partindo-se do princípio de que a esquizotipia deve ser considerada um constructo clínico multidimensional complexo e variável (7), pode-se concluir que, no caso em estudo, o comprometimento geral da personalidade não era por demais acentuado a ponto de acarretar um prejuízo social e ocupacional visivelmente inabilitantes. Entretanto, esses traços ou características esquizotípicas presentes na personalidade de M. poderiam, e é esse o nosso pensamento, imprimir um colorido esquizomorfo(14) amplificado na fachada clínica final do quadro atípico. Assim, nisto residiria a essência fenomenológico-dinâmica (15) do modelo teórico de produção dos quadros de psicoses atípicas, de maneira geral. No caso em pauta, a desordem afetiva bipolar e (ou) mista, o verdadeiro "morbus" primário, ao incidir sobre o "filtro" ou "prisma" caracterológico esquizotípico, acionaria uma seqüência de alterações fisiopatológicas secundárias, o "morbus" secundário, produzindo, desse modo, a morfologia clínica final, isto é, sintomas afetivos mesclados com sintomas esquizofreniformes frustros. Nossa intensa experiência clínica com o manejo desses quadros faz-nos pensar que sua sintomatologia clínica poderia originar-se da deflagração genética incompleta e malograda das duas entidades nosológicas que constituem os pilares da nosografia Kraepeliniana, ou seja, o grupo das "demências precoces" e o grupo da "insanidade maníaco-depressiva"(16). As recentes pesquisas e estudos clínicos e genéticos a respeito da esquizotipia (7,17,18) também induzem-nos o pensamento de que este transtorno abrange um amplo espectro de formas ou estados clínicos que poderíamos denominar "sub-processuais", considerando-se o termo "processo" no estrito sentido jasperiano (19,20 ). Assim, de um lado se situariam as formas clínicas sub-afetivas (10,21 ) e , de outro, as formas clínicas "sub-processuais". Na ocasião em que , na primeira dimensão fisiopatológica , houvesse uma ruptura do ponto de equilíbrio do "morbus" primário ( ex: ativação de uma desordem bipolar ), esta desencadearia uma ativação fisiopatológica extensa na segunda dimensão (disfunção caracterológica esquizotípica ), originando-se os sintomas clínicos entrelaçados, como já vimos. Caso a condição esquizotípica "sub-processual" fosse dotada de potencial genético equivalente à condição afetiva ou "sub-afetiva", então as manifestações clínicas finais, decorrentes da ruptura do ponto de equilíbrio simultâneo, provavelmente seriam de caráter esquizoafetivo clássico(1,2), ou seja, com uma distribuição mais ou menos equitativa dos sintomas psicopatológicos próprios das duas condições nosológicas e evolução clínica desfavorável. Em relação a este modelo teórico-conceitual que estamos desenvolvendo, é necessário que o leitor procure visualizar o extremo dinamismo e o contínuo movimento que permeiam as modificações fisiopatológicas ao lado das fenomenológicas e que ocorrem a cada momento. Só assim deixaremos de lado a visão nosológica estática e imobilizante que sempre anuvia e limita o senso clínico, desviando-nos da diversidade e das múltiplas possibilidades de visualizar algo psicopatologicamente novo. No que se refere às psicoses atípicas, cuja sintomatologia acabamos de analisar, o decurso clínico costuma ser favorável e benigno e as crises agudas, fugazes e passageiras. Podem ser consideradas, na verdade, formas clínicas psicóides, desde que se caracterizam por uma miscelânea psicopatológica frustra e malograda ( o sufixo "óide" carrega o sentido de"aspecto ou forma de", "semelhante" e "relativo a"). Desse modo, finda a discussão teórica de nosso caso clínico, parece que já há condições para estabelecermos um padrão fenomenológico de atipicidade psicótica(14) , tal como referido antes , e que se fundamenta nos seguintes critérios:

1- Os pacientes que apresentam quadros psicóticos atípicos geralmente possuem ou traços importantes ou transtornos completos de personalidade em um estágio pré-mórbido, com ênfase para o transtorno "borderline" e esquizotípico da personalidade.

2- As vivências subjetivas anômalas predominantes nos quadros psicóticos atípicos consistem, fenomenologicamente, em sintomas frustros, malogrados ou abortados de expressões psicopatológicas próprias e características de psicoses típicas e bem definidas, oriundas, por sua vez, de duas orientações endógenas básicas, seja esquizomorfa ou afetiva.

3- Os quadros psicóticos atípicos constituídos por vivências subjetivas anômalas que apresentam intensa e dinâmica migração sintomatológica temporal, à semelhança de um verdadeiro polimorfismo "pan-neurótico", devem ser considerados nosologicamente pertencentes ao círculo das doenças afetivas.

Temos a impressão de que os critérios enumerados anteriormente podem ajudar o clínico a estabelecer um diagnóstico psiquiátrico mais seguro e um tratamento mais efetivo desses quadros atípicos que, em nossa opinião,seriam melhor conceituados caso fossem denominados estados ou transtornos psicóides (14), considerando-se a sua natureza e características de acordo com o que foi discutido até aqui. Postulamos que esses quadros são o resultado da atividade de uma desordem afetiva bipolar("morbus" primário) que, intermediando o "filtro" caracterológico anômalo pré-existente("morbus" secundário), originaria a fachada clínico-fenomenológica final. Desse modo, essas entidades clínicas pertenceriam ao espectro das "psicoses do lítio"(14) ,ou seja, seriam quadros psicóticos que responderiam prioritariamente aos estabilizadores do humor. Longe de querer tumultuar a nomenclatura psiquiátrica com a adição desnecessária de mais um termo psicopatológico, temos certeza que tal denominação, ao contrário, poderia prestar-se a homogeneizar e unificar um vasto território nosológico ainda relativamente desconhecido e inexplorado. De qualquer maneira, parece útil qualquer iniciativa que se proponha a tentar elucidar os fenômenos psicóticos, especialmente aqueles mais complexos e intrincados, quadros clínicos que se constituem no verdadeiro desafio diagnóstico e terapêutico da clínica psiquiátrica.

SUMMARY :

The clinical pictures of atypical psychosis have always been a challenge in the diagnosis and treatment in clinical psychiatry. Even thus, phenomenological studies must be developed to try to unify and make homogeneous the features clinics although the phenomenological distinction. The author’s purpose is a theorical discussion through by a case report using in detail phenomenological standart to become easier the diagnosis and treatment of this clinical pictures. Beyond this, the concept of morbus, primary and secundary and caracteriological philtre were established try to elucidate the close relationship among psychological and clinical personality disorders and atypical psychosis. The concept of psychoid states is purposed to denominate this states, and emphasize a nosographical unification.

Key Words :

atypical psychosis, personality disorders, psychoid states, phenomenologia

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