PARANÓIA

Um Enfoque Fenomenológico e Antropológico

Gustavo Fernando Julião de Souza*

RESUMO:

Os Transtornos Delirantes, em especial a paranóia, sempre despertaram o interesse dos estudiosos devido às suas manifestações psicopatológicas tão peculiares e características. O Autor, através da apresentação de um interessante caso clínico, empreende uma análise da fenomenologia desse transtorno psiquiátrico a partir de contribuições teóricas da Antropologia Filosófica. Desse modo, procura compreender a relativa homogeneidade dos temas delirantes freqüentemente encontrados na clínica com base naquilo que denomina mito individual, expressão psíquica arcaica, universalmente humana e filogeneticamente enraizada. Simultaneamente, introduz os conceitos de desdiferenciação simbólico-afetiva e reificação psíquica para desenvolver e concluir a discussão teórica.

UNITERMOS: Transtorno Delirante, Paranóia, Fenomenologia, Antropologia, Mito, Reificação, Desdiferenciação Simbólico-Afetiva.

Uma das características mais marcantes e ao mesmo tempo sempre presente nas vivências subjetivas dos pacientes acometidos de transtornos delirantes ou de psicose esquizofrênica é a inabalável crença íntima que aqueles nutrem por suas experiências anômalas. É, sem dúvida, curioso que essas pessoas passem a acreditar com certeza íntima cada vez mais consolidada em enredos existenciais tão inverossímeis para um observador mais próximo. Os principais temas que alicerçam as poderosas tramas imaginárias nas quais o enfermo se encontra irremediavelmente imerso referem-se a enredos de conspirações, traições ou amores inverossímeis. Esses enredos dão lugar aos tradicionais delírios de prejuízo, de ciúmes e erotomaníacos, quadros clínicos que já foram extensamente descritos pelos autores clássicos(1,2,3,4,5). Entretanto, julgo importante empreender a análise do fator subjetivo mais importante que acomete progressivamente o transfundo temático desses casos, constituindo-se no elemento perpetuador das vivências subjetivas anômalas e que é a certeza íntima sólida e irrefutável.

A certeza íntima a respeito de qualquer tema genérico é um estado subjetivo que depende diretamente da qualidade e da inteireza da integração entre idéias (representações psíquicas), emoções e informações provenientes dos canais sensoriais relacionados, todos eles, ao assunto em questão. A memória verbal e a não verbal, contendo em seu reservatório todo um torvelinho de reminiscências, impressões, fragmentos sensoriais, conceitos e adjudicações, participa daquele processo de integração entre as vertentes representativa, emocional e sensorial fornecendo imagens verbais e não verbais para comparação automática diante de qualquer nova experiência subjetiva, seja ela relacionada a conteúdos oriundos predominantemente do mundo externo ou do interno.

Ninguém discute o cunho de veracidade encerrado em uma determinada informação sensorial. Da mesma maneira, ninguém reflete demoradamente ou presta demasiada atenção nos estímulos gestuais habituais ou no conteúdo banal do discurso cotidiano. Por exemplo, no ambiente de trabalho seria unusual e até surpreendente proceder-se o registro detalhado e constante das nuances fisionômicas dos colegas de serviço ou de determinadas palavras e termos utilizados na conversação diária, incluindo-se eventuais brincadeiras, risos e diversos tipos de expressão facial, sejam sérias, carrancudas, ranzinzas ou irônicas. É certo, entretanto, que determinadas personalidades dotadas de certos traços caracterológicos que as tornam pessoas naturalmente mais desconfiadas, facilmente ressentidas e suscetíveis, algo beligerantes e rigorosas para com os demais, tendem a ser, por isso mesmo, mais atentas ao meio ambiente, contabilizando, intimamente, com azedume e rispidez os infindáveis e incessantes estímulos que nascem no contato interpessoal. Limitam-se, somente, a formular juízos tendenciosos e parciais, carregados de mágoa e de sentimentos de humilhação e de prejuízo, impedindo, quase sempre, a continuidade prazerosa e o êxito de seus relacionamentos pessoais. No entanto, não constróem, intimamente, implacáveis e inverossímeis conspirações ou perseguições e nem se atribuem formidáveis dons ou capacidades extraordinárias. São consideradas, geralmente, pessoas ásperas, difíceis, reservadas, briguentas, e só. Nós mesmos, os ditos "normais", por vezes e, principalmente, se estamos de mau humor, costumamos cometer alguma indelicadeza ou grosseria para com algum de nossos semelhantes que, casualmente, emita alguma palavra ou gesto que nos soe provocador em dias e momentos tão aziagos. Todavia, a mobilização atenção – representação – emoção desencadeada nesses momentos, embora a princípio seja algo vulcânica, dissipa-se com certa rapidez à medida que questionamos nossas impulsivas e fluidas convicções e impressões esparsas, certamente orientadas erroneamente pelo passageiro e indesejável mau humor. A questão principal é seguramente esta, a importância da mobilização do binômio representação-emoção desencadeada por certos estímulos. Note-se que não aludimos à atenção, pois esta é, principalmente, o instrumento operativo-afetivo que a consciência utiliza para apreender, em maior ou menor grau, o gradiente extremamente diversificado e variado de estímulos oriundos do meio ambiente. Pois bem, qualquer um de nós possui alguns desejos, temores e conflitos que, naturalmente, ensejam toda a sorte de reflexões, devaneios e fantasias. Imaginamos diversas situações e construímos uma série de eventos fantasiosos enredados naqueles desejos e temores, uma série de cenas e de sucessos dotados de intensa nitidez acústico-verbal e, até, de certa pureza sensorial. Nesses atos pertencentes aos pequenos dramas, aspirações e temores cotidianos, vivemos como protagonistas, ora como vítimas, ora como heróis, de nossas próprias tramas íntimas alicerçadas em nossas tendências específicas de temperamento e integradas às nossas experiências pessoais. Costumamos, nesses momentos, projetar na imensidão do mundo essas singelas tragédias e epopéias e, felizmente ou infelizmente, na maioria das vezes não as levamos muito a sério quanto à veracidade de sua inclusão no grande encadeamento de acontecimentos objetivos que se move indiferentemente à nossa vontade. É verdade que, vez por outra, ficamos fixamente preocupados com algo, desconfiamos de alguém, não conseguimos deixar de imaginar, até com considerável força de convicção, supostos propósitos obscuros e inconfessáveis de algum eventual inimigo ou, mesmo, segundas intenções inerentes a algum gesto ambíguo ou alguma palavra ou comentário malicioso que nos soem desairosos. No entanto, na maior parte das vezes, essas fantasias e pensamentos desconfiados terminam da mesma maneira como começaram. Sejam as nossas suspeitas confirmadas ou desmascaradas, depois de algum tempo já não nos mobilizam emocionalmente como antes, a ponto de ocuparmo-nos delas cada vez menos e, por fim, caírem no terreno do mais completo esquecimento e indiferença, podendo persistir apenas como simples lembranças anedóticas ou desagradáveis de cores esmaecidas.

Ao contrário, naquele grupo de pacientes acometidos de um tipo de transtorno delirante(6) que corresponde à paranóia, as coisas, infelizmente, não se passam desse modo. Os enfermos portadores desse transtorno, em algum momento de suas vidas começam a se sentir implacavelmente perseguidos, prejudicados, traídos a até, em alguns casos, inacreditavelmente amados. Parece que em um determinado instante vivido, todo um enorme arquivo de desejos, suspeitas, ressentimentos, conflitos e esperanças catalogados de maneira esporádica e desarticulada, subitamente passa a se organizar de forma inteligível, configurando um conjunto de representações e emoções dotado de lógica inerente irrepreensível e inquestionável, pelo menos para aquele que o experimenta subjetivamente. A culminação dessa articulação lógica ocorre de modo fulminante no que se refere ao caráter de compreensão súbita para o sujeito que a vivencia, à semelhança de uma descoberta repentina de caráter vital. Assume a forma de uma surpreendente revelação à medida que os componentes ideativos e emocionais se vão concatenando perfeitamente na complexa engrenagem delirante. Um estímulo aqui, outro acolá, uma reminiscência fragmentada, uma imagem algo apagada, uma impressão duvidosa, tudo se reveste agora de um brilho especial, de uma significação geral peculiarmente concordante com o tema em relevo, tudo se torna agora muito vívido e nítido, animado por uma intencionalidade inquestionável que não é mais obscura e nem misteriosa. Paradoxalmente, a sombra indecifrável do mundo vivido pelo enfermo só é dissipada de modo transitório pois, passados os primeiros momentos de clarividente revelação, novos motivos enigmáticos se sucedem desafiando o sujeito a proceder, diligentemente, incessantes elucidações de outros acontecimentos representados por estímulos ambientais afins ao tema eleito. Tudo se torna objeto da mais cuidadosa e detalhada atenção, a torrente contínua de significações delirantes alimenta o processo de compreensão íntima e particular, consolidando cada vez mais a convicção inabalável do enfermo quanto à verossimilhança das vivências.

Em outro campo do conhecimento científico, postula-se que certos corpos astrais extraordinariamente compactos dotados de grande densidade atraem e são capazes de sugar matéria, como é o caso dos buracos negros. Considero este exemplo bastante oportuno porque consegue ilustrar de maneira eloqüente o modelo de sistema delirante . Pelo que se pode observar, parece que todos os estímulos ambientais aparentados com o tema ou motivo central do delírio vão sendo significados anomalamente e, assim, incorporados, dir-se-ia como que "sugados", ao núcleo central daquele que, progressivamente, vai ganhando mais "densidade" e, dessa maneira, maior capacidade de polarização dos conteúdos psíquicos mais ou menos livres, atraindo-os e absorvendo-os numa incessante operação de crescimento e de proliferação. Isso implica em que novos dados anômalos de significação serão sucessivamente incorporados ao núcleo central do delírio, contaminando e comprometendo cada vez mais a totalidade da vida psíquica. Parece que isto consiste em uma concepção razoável a respeito do modelo teórico dos sistemas delirantes. Pelo menos é o que um certo paciente inspirou-me escrever.

Tratava-se de um homem que chamarei de R., trinta e dois anos de idade, casado, jornalista de profissão e que trabalhava como redator em um Jornal de Belo Horizonte. Havia nascido no interior do Estado, proveniente de uma família pobre constituída de vários irmãos e veio para Belo Horizonte sozinho, quando ainda era adolescente, com planos de estudar e trabalhar. Disse-me que sempre fora muito exigente consigo mesmo e com os outros e que havia estudado e trabalhado arduamente, sempre com muita dificuldade mas também com grande empenho e dedicação. Enfim conseguira formar-se, tendo sido admitido em um emprego razoavelmente seguro e estável. Disse-me, também, que nunca fora pessoa de ter amigos íntimos, preferindo relacionar-se quase exclusivamente com os seus familiares. Tinha hábitos austeros, regulares e bem disciplinados. Não tinha vícios, detestava aglomerações humanas e não se entusiasmava ou se deixava contagiar por comemorações ruidosas e festas. Era cálido, severo e frugal. Entretanto, há uns quatro meses andava muito abalado e temeroso pois havia descoberto uma grande conspiração que se havia estabelecido contra ele em seu ambiente de trabalho. Disse-me que, de início, passou a notar que os seus colegas de serviço começaram a dispensar-lhe um tratamento que julgou um pouco estranho. Esperavam que saísse de sua mesa para, então, conversar em voz baixa ou cochichar certos comentários inaudíveis mas que, com certeza, diziam respeito à sua pessoa. Notou, também, que dirigiam-lhe sorrisos e olhares enigmaticamente maliciosos. O ambiente de trabalho para ele foi, gradualmente, adquirindo uma atmosfera pesada e provocativa, carregada de tons hostis. Sabia que alguma coisa muito grave estava acontecendo, tinha certeza de que era alvo de toda sorte de observações fortuitas e intenções misteriosas, mas não conseguia atinar precisamente com o propósito real de tais atitudes. Por vezes vinha-lhe à cabeça que o estavam condenando e criticando por algum motivo, talvez por algum fato constrangedor de seu passado, quiçá por sua origem social humilde. Essas impressões vagas de suspeita e de desconfiança foram se amiudando progressivamente até que começaram a comprometer o andamento de seu desempenho profissional e de sua vida conjugal. O final do expediente de trabalho passou a representar um verdadeiro alívio para ele, mas só por alguns momentos porque, ao chegar em casa, não conseguia pensar em outra coisa. Perscrutava seu passado, esquadrinhava meticulosamente os fatos distantes, até os mais remotos, pensava e refletia sobre os acontecimentos recentes, as circunstâncias que precederam sua admissão no emprego, o curso universitário, ponderava incessantemente a respeito do caráter, particularidades pessoais e das intenções de seus colegas de serviço, enfim, passou a ficar excessivamente atento e suscetível aos menores detalhes ambientais que o circundavam. Começou a perder apetite e peso, além de não conseguir dormir antes das duas horas da manhã com sono entremeado por pesadelos, acordando cansado e com leve sensação de sobressalto. Em um determinado dia resolveu ficar mais atento do que de costume para ver se conseguia, finalmente, elucidar o que estava acontecendo. E eis que nessa manhã, sentado em sua mesa de trabalho, quando observava de soslaio dois de seus colegas conversando em voz baixa, escutou, perceptivelmente, um deles emitir um termo chulo que designa homossexualidade, acompanhado de sorrisos maliciosos e um piscar de olho do outro. Subitamente, compreendeu tudo. Estavam-no acusando de ser homossexual e, pior, estavam fazendo uma verdadeira campanha difamatória contra ele. Acusavam-no pelas costas, riam-se dele, divulgavam as suas infames e ignominiosas opiniões sobre ele a todos os empregados da empresa. Estava finalmente convencido de que queriam destruí-lo, desmoralizá-lo a qualquer custo. Começou a concatenar os fatos, um determinado sorriso, uma brincadeira irônica, um gesto ambíguo, um intrigante comentário que não havia compreendido na ocasião. Agora, tudo se encaixava perfeitamente na lógica da suposta campanha difamatória movida contra ele. Alguns dias depois, veio-lhe, inopinadamente, uma certeza desconcertante. O telefone de sua mesa de trabalho estava "grampeado". Sim, tinha convicção de que o estavam espionando, queriam saber com quem falava e o que dizia, queriam saber se já estava desconfiado de tudo, se havia descoberto a conspiração. Então, compreendeu tristemente que aquele movimento difamatório não se limitava apenas à sua sala, era notório o envolvimento de outras pessoas, seus superiores hierárquicos, até a própria Direção do Jornal. Passou a observar, atentamente, as expressões fisionômicas, palavras soltas e gestos de outros empregados mais distantes. Sim, certamente tudo se ajustava e confirmava as suas suspeitas. Mais tarde, teve a convicção de que todo o movimento conspiratório era motivado por razões políticas. Na verdade, nutria algumas idéias políticas que , sem dúvida, poderiam ser consideradas algo subversivas, mas como haviam descoberto isso? Começou a desconfiar que poderiam ter instalado alguns minúsculos aparelhos de escuta em sua casa e quando saía do trabalho sentia-se seguido. Uma tarde, quando caminhava em um quarteirão próximo à sua casa, viu um carro da polícia estacionado. Foi tomado de um grande sobressalto e teve que se conter muito para não sair correndo desabaladamente. Estava imbuído de uma certeza irrefutável: os policiais estavam ali para vigiá-lo, para acompanhar todos os seus passos. Entrementes, começou a sentir um ódio surdo em relação a seus supostos perseguidores e passou a experimentar alguma mudança em seu estado de ânimo. Á medida que se sentia mais acuado e perseguido, iniciou a atribuir a si mesmo um papel de muita importância e relevo. Pensava que, se uma empresa tão importante e poderosa como era o Jornal onde trabalhava, mobilizava-se totalmente com o único e indisfarçável propósito de difamá-lo e de destruí-lo, isso significava que tinham medo dele, sim, medo de seu poder de liderança, do risco potencial que ele representava para a Direção. Naturalmente, já o tinham notado, já haviam percebido nele extraordinárias habilidades intelectuais e especial poder de persuasão. Não raro, nos momentos de devaneio, tão ricos em singularidade nos homens de vida solitária, ele se imaginava ocupando cargos de enorme influência e relevo, empreendendo mudanças sociais revolucionárias e marcantes. Normalmente, nutria uma grande revolta e um ressentimento constante em relação a pessoas influentes e poderosas, envergonhava-se de sua origem humilde ao mesmo tempo que censurava e abominava a hipocrisia mercantilista que reinava em seu meio profissional. Sim, decididamente, estavam temerosos de sua capacidade, de seu poder político latente. Estava, agora, firmemente convencido disso. Uma espécie de altivez auto-apiedada começou a se delinear entre os seus sentimentos, uma certa temeridade defensiva surgiu ao lado de uma decidida disposição de lutar contra o seu nefasto destino. Começou a dar-se a mesma importância que atribuía aos seus poderosos inimigos, sentiu-se tomado pela resignação grandiosa que antecede o suplício dos mártires. Certo dia, ao escutar novamente um termo grosseiro e chulo emitido por um colega de serviço e que, segundo a sua convicção, era insultuosamente dirigido a ele, teve ímpetos de agredi-lo seriamente. Resolveu comprar uma arma de fogo. Esta decisão o atordoou de tal modo que concordou em procurar um psicanalista indicado por sua esposa. Após algumas entrevistas, o profissional suspeitou da verossimilhança da trama relatada por ele e, imediatamente, o encaminhou aos meus cuidados médicos. Procurei, com muito tato, confrontar os conteúdos de suas vivências anômalas com a gritante inverossimilhança dos fatos apresentados. Mas, apesar de todo o cuidado nessa manobra de discussão, o paciente não arredou pé de suas convicções delirantes profundamente enraizadas e relutou bastante em usar qualquer medicamento. Disse-me que estava firmemente convencido de que ninguém poderia ajudá-lo a livrar-se de seus tormentos.

Em primeiro lugar, podemos dizer que na clássica paranóia os juízos delirantes florescem à sombra de um transfundo temático que, à semelhança de um vapor volátil e difuso, repentinamente se condensa de modo reificado na consciência, originando gotículas ou, mesmo, torrentes de vivências subjetivas impregnadas de convicção inabalável que irão, dessa maneira, confirmar cada vez mais a veracidade do tema escolhido e a verossimilhança das experiências vividas pelo enfermo.

A segunda consideração teórica prende-se à evolução clínica desses casos. Os exemplos clínicos presentes na literatura psiquiátrica sugerem uma evolução gradual, progressiva e insidiosa. Elaborei um diagrama esquemático que pode colaborar para a compreensão da evolução clínica desse tipo de transtorno delirante e que vem a seguir.

Juízos Normais Juízos Deliróides Juízo Delirantes Construção

Esparsos Delirante

  • Desconfiança, apreensão, medos

Vagos, impressões ligeiras e

Transitórias, suspeitas efêmeras

Passageiras

 

(Sistematização e ramificação)

Projeções catatímicas reificadas dotadas de rigidez e irreversibilidade

  • Projeções catatímicas dotadas de

Plasticidade e de caráter flexível

e reversível

 

Convicção íntima irrefutável e inabalável: convicção reificada de causalidade objetiva

  • Convicção íntima: convicção

Pessoal de causalidade subjetiva

 

Maciçamente mobilizantes em termos de integração

Idéia-emoção

  • Não são intensamente mobilizan-

Tes em termos de integração

Idéia-emoção

 

Dimensão simbólica comprometida, saturada de simbologia

Concreta

  • Dimensão simbólica intacta


Aumento progressivo do processo de reificação

Para compreender o diagrama anterior, teremos que dissertar rapidamente a respeito da essência do pensamento normal e dos processos dinâmicos e interativos que estão envolvidos em sua elaboração. Em uma pessoa normal, podemos dizer que o pensamento é constituído por idéias e representações carregadas de afetos e emoções em constante e contínua operação e integração de natureza indutiva e dedutiva. A enorme diversidade de idéias e representações está, por assim dizer, incrustada em dois eixos diretivos que correspondem, em conjunto, ao sistema total de juízos da realidade. O primeiro eixo eqüivale ao sistema de juízos da realidade subjetiva e o segundo ao sistema de juízos da realidade objetiva. Aquele afere a coerência inteligível da realidade sensível e/ou imaginada oriunda do espaço interno ou subjetivo do indivíduo, enquanto o último o efetua em relação aos conteúdos psíquicos interpretados, naturalmente, como vindos do mundo externo. De qualquer maneira, o indivíduo é dotado, através da ação diretiva desses dois grandes sistemas de juízos de realidade, da convicção de que uma determinada idéia é, em última instância, abstrata, imaginária ou simbólica e que um determinado dado sensorial, de forma semelhante, emana da realidade sensível. A convicção subjetiva, isto é, o sentimento de certeza consistente, permanente, irremovível e irrefutável de que se pode, espontânea e naturalmente, diferenciar uma idéia abstrata de um dado sensorial concreto é um atributo fundamental do psiquismo humano, mais precisamente do homem ocidental. Delineia-se, dessa forma, a convicção pessoal de causalidade subjetiva e de causalidade objetiva(7). Todos nós sabemos que somos os produtores de determinadas idéias, sentimentos e atos e que ocorrem alguns eventos conosco devido a ações produzidas por outrem, ou seja, devido a fatos engendrados no mundo externo. Nós formulamos juízos a respeito de nós mesmos e dos outros, interpretamos e avaliamos acontecimentos que ocorrem no mundo externo, conceituamos atitudes e objetos, procuramos relações de sentido na diversidade das coisas e dos sentimentos, enfim, situamo-nos no mundo solidamente.

De maneira resumida e simplificada, podemos dizer que o pensamento do homem normal possui essas características. Pois bem, em relação ao enfermo paranóico quais seriam as diferenças?

Em outros trabalhos(7,8) já postulamos que o pensamento psicótico, de modo geral, é essencialmente reificado, ou seja, saturado de uma simbologia concreta, de caráter mágico-anímico. Acreditamos que em decorrência de uma *desdiferenciação simbólico-afetiva (7) - termo por nós criado e que corresponde ao conceito de processo jasperiano - de natureza desconhecida, emergem algumas modalidades de simbolização filogeneticamente arcaicas que impregnam os processos de integração psíquica superiores do indelével caráter de reificação. Dessa maneira, o enfermo pode vir a vivenciar os seus desejos e temores mais íntimos e recônditos de modo concreto e reificado, ou seja, como verdadeiramente reais. O quadro esquemático anterior procura resumir e sintetizar, de forma sumária, tudo o que foi diiscutido antes e durante a apresentação do caso do paciente R. O esquema mostra a transição progressiva entre os juízos normais, alicerçados em uma convicção pessoal de causalidade subjetiva, e os juízos delirantes, reificados, calcados, por sua vez, em uma convicção reificada de causalidade objetiva. Os juízos delirantes são, ao meu ver, formulações ídeo-afetivas saturadas de simbologia concreta, ou seja, de caráter mágico-anímico(9,10). Provavelmente, o processo de desdiferenciação(7) patológica da vida afetiva do enfermo propicia a emergência de modalidades de simbolização fiologeneticamente mais arcaicas, dotando o seu psiquismo de uma espécie de concretude lógico-emocional própria do pensamento mágico-primitivo e funcionando, de certa maneira, como uma fonte perene de mitos(8,9,10) individuais. Estou chamando de mito individual o enredo mágico criado e que, de modo súbito, emoldura a vida do enfermo, convertendo-o em seu principal protagonista. Entretanto, tendo em vista objetivos práticos, creio que convém, ainda que não veja importantes diferenças, discriminar o mito individual do coletivo. Ambos remetem a conteúdos psíquicos arcaicos, mas o último é, sem dúvida, a manifestação universal e característica de todas as culturas humanas, constituindo-se em marcos nítidos de referência de seu senso-comum, cotidiano profano, sagrado e concepção do mundo(8,9,10), originando-se em algum ponto obscuro e nebuloso de seu desenvolvimento histórico. Certamente, a produção mitológica individual contém em sua matriz a mesma essência responsável pela produção dos mitos coletivos, mas difere destes porque encarcera o doente em seu interior e não apresenta nenhuma repercussão no mundo objetivo. De alguma maneira, a enorme mobilização emocional induzida por um arcaico conglomerado de representações e afetos que permeia o enredo mítico(9) restringe-se, ruidosa ou silenciosamente tão somente ao seu criador. Ao contrário, os mitos coletivos transcendem a existência pessoal, abrangendo nexos insuspeitados das aspirações inconscientes comuns e induzem importantes e duradouras repercussões no mundo objetivo. É evidente que os seus criadores foram ou são dotados de uma extraordinária capacidade de perceber e narrar os desejos e aspirações coletivamente inconscientes de um grupo humano em um determinado momento histórico, de tal forma que se tornam simples instrumentos dessas vontades e são como que absorvidos e tragados pela imensa vaga de conteúdos ídeo-emocionais impregnados de simbologia concreta. Esses indivíduos "míticos" convertem-se em simples alegorias humanas, em emblemas fisionômicos desprovidos de qualquer singularidade pessoal, transformam-se apenas no pequeno título do grande enredo mitológico, confundindo-se e amalgamando-se com sua própria obra de criação. Entretanto, parece que a diferença principal entre os mitos individuais e os coletivos repousa na menor ou maior repercussão da produção mitológica no mundo objetivo. Em outras palavras, há mitos que são levados a sério, outros não, uns causam revoluções científicas e religiosas, outros apenas condenam o seu inventor e narrador ao desprezo e indiferença ou, mesmo, a uma hospitalização psiquiátrica. De qualquer modo, os dois tipos de produção mitológica possuem importantes pontos de contato: o caráter misterioso e enigmático do mundo embebido em uma atmosfera arcaica, o cunho sagrado e religioso da existência do enfermo caracterizado pela submissão inescapável às suas convicções anômalas e a entrega dramática, exclusiva e quase predestinada de sua vida a um tema universal da natureza humana, seja de glória, amor ou traição, sempre tingida com cores trágicas.

No caso em questão, podemos conjecturar que R. , ou se debatia em meio a conflitos de natureza homossexual ou, por outro lado, encarnava o isolamento e a rejeição absoluta do ser, humilhado, abandonado e desprezado pelo seu grupo social, à semelhança daquilo que ocorre em sociedades primitivas em situações de violação do tabu, onde o indivíduo punido é 'tocado' pela força extraordinária e inexorável do Mana(10,11).Com efeito, do ponto de vista clínico, é notório que muitos pacientes que sofrem de Transtorno Delirante apresentam verdadeiros delírios de desmoralização e de execração, muitas vezes com tonalidade depressiva, o que sugere sua interseção com o círculo das doenças afetivas(12,13,14). De qualquer maneira, é provável que nos Transtornos Delirantes, aqueles mitos universais de amor, glória, traição, execração e morte sejam corporificados e vivenciados por inteiro às custas da deflagração de matrizes simbólicas arcaicas que, atingindo a consciência de modo concreto e reificado, projetam-se rigidamente no mundo externo. Desse modo, no caso de R. , é possível que ou o medo da homossexualidade ou a alcunha de seu próprio termo – genericamente insultuosa e estigmatizante, apenas tomada emprestada para efetivar a mortífera auto-execração _ emolduraram a saga de um trágico mito individual na qual ele era o seu principal protagonista.

Podemos perceber, neste caso, a diferença qualitativa entre as projeções catatímicas próprias dos indivíduos normais e dos neuróticos daquelas dos pacientes psicóticos. As projeções catatímicas dos primeiros são de caráter plástico, reversível e evanescente, correspondendo a suspeitas passageiras, impressões agudas e fugazes ou a conteúdos psíquicos intensamente conflituosos que podem induzir sofrimento íntimo duradouro mas que, de modo geral, costumam responder favoravelmente às intervenções psicoterápicas. Estão calcadas na convicção pessoal de causalidade subjetiva, o que indica a integridade do sistema de juízos da realidade e o não comprometimento da dimensão simbólica mais aprimorada. Ao contrário, aquelas dos pacientes psicóticos são rígidas, inflexíveis e irreversíveis, resistentes às intervenções psicoterápicas. Estão alicerçadas já na convicção reificada de causalidade objetiva, indicador de um comprometimento do sistema de juízos da realidade e que evidencia uma reificação da dimensão simbólica mais aprimorada. Parece-me, desse modo, correto intitular o resultado da alteração psíquica fundamental que ocorre nos transtornos delirantes com o termo catatimia reificada(7).

Finalizando, é necessário ressaltar a semelhança clínica dos Transtornos Delirantes com os quadros esquizofrênicos paranóides e enfatizar, também, algumas diferenças importantes(15). A semelhança se dá às custas da existência, em ambos, de juízos delirantes e a diferença é que, no caso da paranóia, há a ausência de alucinações e de vivências de influência, ao lado da preservação integral da personalidade dos enfermos. Além disso, os temas delirantes, em geral de prejuízo, ciúmes e erótico-amorosos, relacionam-se estreitamente com aspectos ambientais e circunstanciais perfeitamente cabíveis no universo cultural e existencial do indivíduo, isto é, são consoantes com o seu tempo, sua vida, seus hábitos e sua visão de mundo. Ao contrário, na esquizofrenia são comuns temas delirantes completamente desvinculados do patrimônio inteligível do senso comum, dotados que são de um caráter mágico-anímico atemporal e arquetípico. Enquanto na paranóia proliferam juízos delirantes embebidos de inteligibilidade temporal e biográfico-cultural, na esquizofrenia vicejam também juízos anômalos, porém imersos em uma atmosfera bem mais arcaica e longínqua, repleta de elementos cósmicos e ctônicos. A primeira remete ao mágico-anímico biográfico-individual e a segunda ao animismo coletivo. Aquela assemelha-se à concretização reificada de um mito individual bem engendrado e concatenado, enquanto a última representa um mergulho abissal e caótico na universalidade do mito coletivo. Uma carrega um conteúdo reificado predominantemente ontogenético e a outra uma representação reificada exclusivamente filogenética(15).

Após essas considerações, creio que talvez tenha se tornado patente a importância da dimensão antropológica para a compreensão de alguns fenômenos psicopatológicos do mundo paranóide, à primeira vista tão herméticos e incompreensíveis, mas que continuam pertencendo ao ãmbito do universo humano. Parece indiscutível, no entanto, que essas manifestações patológicas do psiquismo humano, mais cedo ou mais tarde, serão compreendidas e elucidadas à luz de pesquisas que procurem discriminar alterações de estruturas neurobiológicas envolvidas na gênese e manutenção da doença. Certamente, apenas com a participação de várias disciplinas do conhecimento humano, tais como Biologia Molecular, Genética, Sociobiologia e Antropologia, poder-se-á compreender, por inteiro, os mecanismos íntimos de um transtorno psíquico que tem se constituído em um dos maiores desafios da clínica psiquiátrica.

SUMMARY:

The Delusional Disorders, specially paranoia, always arise the interest of scholars due to its very peculiar and characteristic psychopathologic manifestations. The author, with the introduction of an interesting clinical case, undertakes an analysis of the phenomenology of this psychiatric disorder from the theoretical contributions of the Philosophical Anthropology. Considering that, he tries to understand the slight homogeneity of delusional themes, frequently found in clinic, based upon what he calls individual myth, archaic psychic expression, universally human and phylogeneticaly rooted. Simultaniously, he introduces the concepts of affective-symbolic disdifferentiation and psychic reification to develop and conclude the theoretical discussion.

KEYWORDS: Delusional Disorder, Paranoia, Phenomenology, Anthropology, Myth, Reification, Affective-Symbolic Disdifferentiation.

Endereço do autor:

Av. do Contorno,4852/304 – Belo Horizonte – Minas Gerais – Tel: (031)227-2631

CEP:

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS :

1- BUMKE, O. – Tratado de las Enfermedades Mentales. 2ª edição, Barcelona, Francisco Seix-Editor, 1925. 1246 p.

2- JASPERS, K. – Escritos Psicopatológicos. 7ª edição, Madrid, Editorial Gredos, 1977. 531p.

3- EY, H. ; BERNARD, P. ; BRISSET, CH. – Manuel de Psychiatrie. 2ª éd. , Paris, Masson et C. Éditeurs, 1963. 1015 p.

4- BLEULER, E. – Tratado de Psiquiatria. 3ª edição, Madrid, Espasa-Calpe, S.A., 1971. 764p.

5- VON GEBSATTEL, V.E.F. – Antropologia Médica. 1ª edição espanhola, Madrid, Ediciones Rialp, S.A. , 1966. 519p.

6- DSM-IV – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 4ª edição, Porto Alegre, Artes Médicas, 1995. 830p.

7- SOUZA, G.F.J. – The Endogenous Psychoses: A Phenomenological-Dynamic Approach. Belo Horizonte, 1990. 44p. – Biblioteca da Universidade de Heidelberg – Alemanha.

8- SOUZA, G.F.J. – Simbolização: Uma Síntese Sócio-Antropológica e Psicológica. Belo Horizonte, 1987. 83p. (inédito)

9- CASSIRER, E. – Linguagem e Mito. 2ª edição, São Paulo, Editora Perspectiva S.A. , 1985. 131p.

10- CASSIRER, E. – Antropologia Filosófica. 2ª edição, São Paulo, Editora Mestre Jou, 1977. 378p.

11- HOEBEL, E.A.; FROST, E.L. – Antropologia Cultural e Social. 1ª edição, São Paulo, Editora Cultrix, 1976. 470p.

12- TELLENBACH, H. – Phenomenology of the manic paranoid. Z. Klin. Psychol. Psychopathol. Psychother. , 32(1):4-9, 1984.

13- GABRIEL, E. – Dysphoric mood in paranoid psychoses. Psychopathology, 20(2):101-106, 1987.

14- RZEWUSKA, M. ; ANGST, J. – Aspects of the course of bipolar manic-depressive, schizo-affective, and paranoid schizophrenic psychoses. Arch. Psychiatr. Nervenkr. , 231(6): 487-501, 1982.

15- SOUZA, G.F.J. – Uma Visão Dimensional dos Transtornos Psicóticos: da Tipicidade à Atipicidade. Belo Horizonte, 1992. 76p. – Resumo publicado sob a forma de entrevista pela JANSSEN FARMACÊUTICA em junho de 1997.

16- WINOKUR, G. – Classification of chronic psychoses including delusional disorders and schizophrenias. Psychopathology, 19(1-2): 30-34, 1986.

17- MUNRO, A. ; MOK, H. – An overview of treatment in paranoia/ delusional disorder. Can. J. Psychiatry, 40/10(616-622), 1995.

18- SCHANDA, H. ; BERNER, P. ; GABRIEL, E. ; KRONBERGER, M.L. ; KUFFERLE, B. – The genetics of delusional psychoses. Schizophr. Bull. , 9(4):563-570 , 1983.

19- ROMNEY, D.M. – A simplex model of the paranoid process: implications for diagnosis and prognosis. Acta Psychiatr. Scand. , 75(6):651-655 , 1987.

20- KENDLER, K.S. ; MASTERSO