NARCOLEPSIA:

RELATO DE UM CASO DE HIPERSONOLÊNCIA DIURNA

Dr. Fabiano Gonçalves Nery (*)

Dr. Gustavo Fernando Julião de Souza (**)

(*)Especialista em Medicina Interna

Residente de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da UFMG

(**)Preceptor da Residência Médica em Psiquiatria do Hospital das Clínicas da UFMG

RESUMO: Os Autores apresentam o caso clínico de um homem de trinta e seis anos de idade que recebeu o diagnóstico de narcolepsia após longa propedêutica inconclusiva e tentativas terapêuticas infrutíferas. O paciente teve os seus sintomas melhorados com o tratamento adequado para a referida doença.. Após o relato do caso, os AA. empreendem discussão teórica sobre o diagnóstico diferencial da narcolepsia com outras condições clínicas caracterizadas por hipersonolência diurna, tais como a síndrome da apnéia obstrutiva do sono e depressão atípica, considerando-se que têm fisiopatologia, evolução, prognóstico e tratamento diferentes.

ABSTRACT: The Authors present a clinical case of a thirty-six years old man that has received the diagnosis of narcolepsy after an extensive and inconclusive investigation and unsuccesfull therapeutic trials. He has had yours symptoms improved with the adequate treatment for that disease. After the case report, the Authors develop a theoretical discussion about the differential diagnosis between narcolepsy and other conditions characterized by excessive daytime sleepiness, such as sleep apnea syndrome and atypical depression, considering that they have different physiopathology, outcome and treatment.

KEY WORDS: narcolepsy, sleep apnea syndrome, atypical depression, excessive daytime sleepiness.

RELATO DE CASO CLÍNICO:

Trata-se de um paciente que chamaremos de G.S., com trinta e seis anos de idade, sexo masculino, faioderma, casado, pai de uma filha e que tem como profissão a atividade de servente de pedreiro. É natural da cidade de Bom Despacho (MG), onde reside e, atualmente, está afastado do trabalho, em gozo de auxílio-doença, em tratamento médico e investigação diagnóstica. Procurou o serviço de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da UFMG em 15/06/98, encaminhado pela clínica de Neurologia do referido hospital com a hipótese diagnóstica de "hipersonia psicogênica".

Naquela ocasião, relatou que desde meados de 1987 passou a sentir crises frequentes de sonolência diurna, súbitas, sem pródromos e que somente melhoravam quando lavava a cabeça com água fria. Caso não o fizesse, dormia o dia inteiro até que fosse acordado por alguém. Os acessos de sonolência eram diários, aproximadamente cerca de cinco por dia, principalmente após o almoço. Em 1990 começou a apresentar episódios de dispnéia noturna, acordando várias vezes à noite. A partir de então o sono durante a noite alterou-se, ficando conturbado, com pesadelos, movimentando-se muito no leito, conversando e fazendo caretas enquanto dormia, segundo a esposa.

A partir de 1992 surgiram episódios momentâneos de fraqueza nas pernas ou braços quando tinha emoções fortes ou "concentrava-se muito"(sic). Passou a sentir-se mais ansioso e irritado, relatando sofrer muito com a ociosidade e a falta de emprego. Há cerca de três meses, passou a apresentar nervosismo, crises de choro, medos infundados e "cismas" inexplicáveis (conferia a tranca das portas, achava que iria ser atacado pelas costas sem saber dizer por que ou por quem e chegou a dormir com um facão debaixo da cama). Achava difícil acordar pela manhã, sentia dores generalizadas pelo corpo e uma "sensação ruim" nos olhos e na cabeça. Ouvia ruídos estranhos, como se fosse alguém mexendo nas portas da casa mas, após investigar, nada constatava . Dormia às oito horas da noite e acordava às seis e meia da manhã. A partir de 1996 foi afastado do serviço após cair de um andaime de dois metros de altura, enquanto estava trabalhando, devido a súbita sonolência, sendo então encaminhado a tratamento médico.

Há cerca de dois anos vinha sendo acompanhado pelo serviço de Neurologia do Hospital das Clínicas, tendo sido estabelecidas, ao longo do tratamento, as hipóteses diagnósticas de fibromialgia, narcolepsia e epilepsia e receitados, em diversas ocasiões, nortriptilina, amitriptilina, fluoxetina e carbamazepina sem nenhum sucesso terapêutico, sempre com piora da sonolência. Foi, então, encaminhado à Psiquiatria com hipótese de "hipersonia psicogênica". O motivo central do encaminhamento foi a suspeita de que poderia tratar-se de um caso de simulação de doença com o suposto objetivo de ganho secundário através de aposentadoria por invalidez

O paciente é tabagista (um maço por dia) e nega etilismo. Como patologias orgânicas apresentava apenas doença hemorroidária, otalgia e faringites frequentes. Não evidenciava história pregressa significativa de doenças anteriores. Na história familiar constava, apenas, o registro de uma irmã com quadro sugestivo de depressão e relatou que a esposa e a filha mostravam-se bastante perturbadas com sua doença.

Ao exame, mostra-se com apresentação adequada, vestes em ordem, higienizado, atento e cooperativo. Trata-se de homem simples e de maneiras um pouco rudes, dotado de baixa escolaridade (4ª série do 1º grau), com respostas algo lacônicas às perguntas formuladas e evidenciando dificuldades semânticas para exprimir com precisão os seus sintomas. Biotipo mesomorfo (altura: 1,65m e peso: 65 kg). Facies atípica. Consciência clara, normovigil, normotenaz, normobúlico. Memória recente e remota preservadas. Orientado no tempo e espaço. Ausência de distúrbios da consciência do eu ou da sensopercepção. Pensamento sem alterações de forma e conteúdo. Ausência de alterações do sistema de juízos da realidade, apesar da presença de certas idéias e pressentimentos de colorido paranóide, inconsistentes e mal estruturados. Crítica presente. Ressonância e coerência afetivas normais. Afeto congruente com humor. Eutímico.

PROPEDÊUTICA REALIZADA E TRATAMENTO:

A primeira hipótese diagnóstica que propusemos para o caso, considerando-se a sua sintomatologia e evolução clínica, foi aquela correspondente a um quadro provável de narcolepsia. Os ataques ou acessos de sono diurnos do paciente associados a uma possível perda de tônus muscular súbita, motivos que talvez o fizeram sofrer queda de um andaime enquanto trabalhava, forçosamente faziam-nos pensar na real possibilidade de G.S. estar sofrendo do referido transtorno. Além do mais, o nítido relato, de que a partir de 1992 iniciaram-se episódios súbitos de fraqueza muscular após emoções fortes, veio reforçar ainda mais as nossas suspeitas clínicas a favor desse raro distúrbio do sono. Por outro lado, sabemos que um bom número de casos de sonolência diurna excessiva corresponde àquela condição clínica denominada apnéia obstrutiva noturna, transtorno do sono significativamente mais frequente nessa população de pacientes, principalmente do sexo masculino.

G.S. já havia realizado uma polissonografia em 1995 e o exame havia revelado, de acordo com o laudo médico que o acompanhava, "redução de sono REM e de sono lento (fases 3 e 4) com aumento de sono superficial (fases 1 e 2)e múltiplos microdespertares durante a noite. A saturação média de oxigênio basal foi de 94 a 95%. Em curtos trechos de sono, havia um padrão alfa-delta, o que sugeria a possibilidade de fibromialgia".

Desse modo, considerando-se que o laudo da Polissonografia era relativamente inconclusivo e, ainda, que o Teste de Latência Múltipla do Sono (TLMS) é o exame mais indicado para a confirmação do diagnóstico diante da suspeita de narcolepsia (REIMÃO e LEMMI,1996), solicitamos essa propedêutica, além das avaliações pneumológica e otorrinolaringológica. Estas duas últimas propedêuticas destinavam-se a investigar variáveis importantes na gênese de uma possível apnéia obstrutiva noturna. Enquanto esperávamos pela conclusão das avaliações dessas duas clínicas, decidimos iniciar o tratamento medicamentoso após o resultado do TLMS, caso nossa suspeita fosse confirmada. O paciente, entretanto, manteve sempre uma frequência de acompanhamento ambulatorial irregular, alegando dificuldades financeiras, quer para comprar a medicação, quer para adquirir passagens para transporte de ônibus. Em dez meses de acompanhamento ambulatorial, compareceu tão somente a seis consultas, o que infelizmente prejudicou a eficácia da abordagem terapêutica.

As provas de função tireoidiana, exame neurológico, tomografia computadorizada de crânio e o eletroencefalograma, exames complementares que também haviam sido solicitados, revelaram-se normais. O Teste Múltiplo de Latência do Sono (TLMS) mostrou início precoce de sono REM em três oportunidades, confirmando nossa suspeita clínica de narcolepsia. O registro do fluxo aéreo nasal e do esforço respiratório torácico revelava, ainda, um quadro de apnéia obstrutiva do sono.

A avaliação otorrinolaringológica detectou um desvio de septo nasal à direita com úvula alongada, com indicação de septoplastia e uvulopalatofaringoplastia. A avaliação pneumológica não revelou alterações ao exame clínico e espirométrico.

Após o resultado do TLMS, iniciamos tratamento com metilfenidato na dose inicial de 10 mg por dia, havendo tolerância regular ao fármaco (queixava náuseas e mal estar, abandonando o uso inicialmente). A dose foi posteriormente aumentada para 10 mg pela manhã e 5 mg antes do almoço, objetivando-se conseguir um padrão de vigília apenas durante o dia. Houve melhora da sonolência, mas o paciente continuava a se queixar de um medo inexplicável de que alguém fosse atacá-lo pelas costas e insistia em dormir com uma faca debaixo do travesseiro, conferindo as trancas das portas e janelas da casa antes de dormir. Além disso, relatava um sentimento de raiva que lhe parecia incontrolável e também inexplicável que descrevia "como se tivesse uma vontade de bater ou matar alguém"(sic). Embora não houvesse queixas compatíveis com humor deprimido ou anedonia, dizia que chorava muito facilmente quando assistia cenas emocionantes na televisão e sentia-se constantemente nervoso e irritado. Atribuía tais sintomas às dificuldades financeiras, tal como o exíguo auxílio-desemprego que recebia e aos obstáculos para conseguir um outro trabalho. Por outro lado, continuava mantendo queixas de sono conturbado por pesadelos. Decidimos, então, acrescentar imipramina ao tratamento instituído devido à possibilidade de haver um quadro depressivo atípico associado à narcolepsia. Novamente o paciente não tolerou a medicação, queixando vômitos e sensação de fraqueza. Reiniciamos a imipramina em dose muito baixa (10mg/dia), cogitando efetuar um aumento gradual ao longo do tempo. Retornou trinta dias depois, em uso de 15 mg de metilfenidato e 10 mg de imipramina por dia, comunicando melhora e remissão completa dos sintomas com desaparecimento total da hipersonolência, dos medos indefinidos e da irritabilidade. Sentia-se muito disposto, "muito bem mesmo" (sic). Relatava melhora completa dos pesadelos, da inquietação noturna e dos medos infundados. Apresentava, porém, náuseas ocasionais e dificuldade de ejaculação. Entretanto, não compareceu à última consulta e não conseguimos estabelecer contato novamente com ele.

Dessa maneira, em relação ao dignóstico final, concluímos que o paciente era portador de narcolepsia e que talvez, também, estivesse acometido de um episódio depressivo de leve para moderada intensidade. A análise da correlação entre sua sintomatologia clínica e o registro polissonográfico compatível com uma síndrome da apnéia obstrutiva do sono será discutida a seguir.

DISCUSSÃO TEÓRICA:

As doenças que cursam com sonolência excessiva diurna são relativamente frequentes, causam sérios prejuízos à qualidade de vida dos pacientes e levam a diagnósticos errôneos de cunho psiquiátrico. Como não são familiares a clínicos, neurologistas e psiquiatras, nem sempre são diagnosticadas e tratadas adequadamente. Os pacientes são vistos por parentes ou colegas de trabalho como indolentes e preguiçosos ou como pessoas que querem obter algum ganho secundário, como uma aposentadoria precoce. No entanto, são doenças de curso crônico, incapacitantes e bastante mórbidas, pois expõem o paciente a acidentes pessoais domiciliares, profissionais e de trânsito, além de prejudicar seu desempenho no trabalho e na escola, com prejuízos financeiros, sociais e psicológicos. O presente trabalho discute as principais condições relacionadas com sonolência excessiva diurna que foram consideradas no diagnóstico diferencial deste paciente.

A patologia mais frequente que causa hipersonolência diurna é a síndrome da apnéia obstrutiva do sono, conhecida por síndrome de Pickwick, que acomete 5 a 15% da população adulta. O paciente apresenta um quadro de sonolência excessiva diurna, gerada por um sono fragmentado por microdespertares noturnos. Estes ocorrem por uma hipóxia cerebral motivada por uma obstrução ou colabamento de vias aéreas superiores, com consequente queda da saturação de hemoglobina e estimulação central do despertar. O estado de alerta corrige a obstrução, melhora a oxigenação cerebral e a pessoa volta a dormir, o que leva ao reinício do processo fisiopatológico. Ocorre principalmente em indivíduos do sexo masculino (relação 10:1), obesos, com pico de incidência entre 40 e 60 anos. O ronco é um dos principais sintomas da síndrome, acontecendo em 95% dos casos. Os pacientes se queixam de sono conturbado e inquieto, com sensação de angústia, podendo haver também uma atividade motora anormal, como abalos musculares, movimentos das pernas, etc. Como o sono noturno não é reparador, pois o paciente desperta inúmeras vezes e tem uma redução das fases de sono profundo ou lento, oitenta por cento deles queixam-se de sonolência excessiva diurna. Podem ocorrer, também, comportamentos automáticos, amnésia retrógrada, dificuldade de concentração e de raciocínio, mudanças de características da personalidade, comportamentos impulsivos e agressivos, irritabilidade, sintomas depressivos e ansiosos e redução da libido. A polissonografia é o método de escolha para o diagnóstico, pois permite estudar a presença e as características das hipo ou apnéias associadas à dessaturação da hemoglobina, à fragmentação do sono e à gravidade do quadro. É necessária uma avaliação penumológica completa que estude uma obstrução em vias aéreas inferiores e a otorrinolaringológica, para detectar uma obstrução física em nível oromandibular. A obesidade, que é o principal fator agravante, deve ser combatida. O tratamento consiste na reversão da causa básica, seja utilizando métodos artificiais que melhorem a respiração noturna desses pacientes, seja com a correção cirúrgica do defeito anatômico (AVERBUCH, 1996). É interessante notar que o paciente em estudo apresenta vários sintomas dessa condição, além de ter sido detectado um defeito anatômico compatível com a fisiopatologia desse transtorno. No entanto, deve-se considerar que houve uma melhora completa do quadro apenas com o tratamento medicamentoso com psicoestimulantes. Questionamos, então, se o defeito de septo nasal e de úvula de G.S. não poderiam consistir apenas em achados casuais. É sabido haver uma co-morbidade considerável de apnéia obstrutiva do sono com outras doenças do sono e que achados polissonográficos são comuns a muitas delas (por exemplo, redução da latência de sono, redução de fases de sono REM, etc). Assim, é necessário um julgamento clínico criterioso que indique a melhor ou a primeira abordagem terapêutica a ser instituída para cada caso.

A depressão é um diagnóstico a considerar neste paciente, por suas queixas ligadas à afetividade, humor e sono. Assim, sentimentos de raiva, irritabilidade, emocionalidade exacerbada e choro fácil são sintomas amiúde encontrados nos quadros depressivos, além de, em alguns casos, existirem vivências deliróides auto-referenciais. Mais frequentemente, porém, a depressão manifesta-se com algum grau ou tipo de insônia. A hipersonolência diurna não é tão relatada, a não ser em formas atípicas. Discute-se se a forma anérgica da depressão bipolar é uma manifestação de hipersonolência e se, assim, teria manifestações fisiopatológicas ligadas às doenças primárias do sono, como a narcolepsia. Porém, as comparações polissonográficas não suportaram essa hipótese. A hipersonia no paciente bipolar pode refletir mais uma consequência à anergia, desmotivação e perda de interesse do que uma propensão a dormir per si. O deprimido teria apenas uma dificuldade de iniciar o sono, mas não de mantê-lo. Esse mesmo estudo não encontrou manifestações de hipersonolência no TLMS de bipolares comparados com controles não deprimidos e não narcolépticos (NOFTZINGER e col., 1991). Além disso, as alterações da arquitetura do sono de ambas as condições têm as mesmas características (redução da latência do sono REM, redução das fases 3 e 4, densidade do primeiro período REM aumentada) alteradas em relação ao normal, mas estatisticamente diferentes entre si (por exemplo, narcolépticos têm latência de sono reduzida, mais interrupções, latência do sono REM reduzida, porcentagem do estágio 1 aumentada, atividade do 1º estágio aumentada) (REYNOLDS e col., 1983). Aplicado ao quadro clínico de G.S., é difícil pensar que o paciente tivesse uma evolução tão longa de sintomas e, embora tratado com antidepressivos, não houvesse melhorado.

Por fim, há a narcolepsia, que é uma doença primária do sono, descrita há mais de cem anos como uma tétrade de sintomas típicos (hipersonolência diurna, cataplexia, alucinações hipnagógicas e paralisia do sono), sendo a cataplexia (perda súbita do tônus muscular) o mais necessário para o diagnóstico. É uma doença neurológica, de etiologia desconhecida, caracterizada principalmente por anormalidades do sono REM e pelo sintoma básico de sonolência excessiva diurna que não pode ser completamente aliviada por qualquer quantidade de sono. A arquitetura normal do sono noturno (latência do início do sono, duração e frequência das diversas fases 1,2,3,4 e sono paradoxal ou REM) altera-se, com redução da latência do início do sono, e uma passagem direta do sono REM através das fases precedentes). Essa "invasão" ou irrupção abrupta do sono REM no período de vigília é o que leva, teoricamente, aos sintomas clássicos da doença, como se houvesse uma dissociação entre os diversos elementos do sono paradoxal (hipotonia muscular, sonhos, inconsciência) acontecendo tanto durante o adormecer ou o despertar quanto durante o dia. Tem uma prevalência de 1 por 2.000 a 5.000 habitantes, com acometimento igual em ambos os sexos (REIMÃO e LEMMI, 1996).

A doença inicia-se geralmente durante a adolescência, é crônica e traz consideráveis prejuízos sociais e psicológicos aos pacientes. Não há fator precipitante, embora em metade dos casos os pacientes associem o início do distúrbio a um período de estresse emocional ou privação do sono. Pode, também, associar-se a um trauma craniano agudo ou tumor hipotalâmico. Os pacientes vêem sua performance nos estudos ou no trabalho ser prejudicada pelos sintomas da doença, ao mesmo tempo em que são acusados de negligentes, preguiçosos ou, mesmo, de bêbados ou drogados. A doença prejudica diretamente áreas como segurança pessoal (taxa aumentada de acidentes domiciliares e de trânsito), situação conjugal (taxas aumentadas de divórcios), trabalho (ganhos salariais, taxa de emprego e promoções reduzidos). As crianças portadoras da doença podem sofrer brincadeiras dos colegas, o que, por sua vez, precipita os ataques catapléticos. Sofrem, também, com os sintomas psíquicos clássicos reativos à sua doença, derivados de uma auto-estima baixa, sensação de culpa, vergonha e medo ligados aos sintomas específicos do transtorno (DOUGLAS, 1998). Pode haver um considerável atraso no diagnóstico (em até dez anos), particularmente quando o quadro não é típico ou porque os professores e médicos não estão familiarizados com o diagnóstico.

Os dois sintomas principais da doença são a hipersonolência diurna e a cataplexia. Há os sintomas secundários como a paralisia do sono, as alucinações hipnagógicas e os comportamentos automáticos. A hipersonolência diurna geralmente precede os demais sintomas, mas há casos em que surge até três anos após a cataplexia e as alucinações hipnagógicas. A cataplexia ocorre em 70 a 79,3% dos casos, as alucinações hipnagógicas em 25 a 67%, a paralisia do sono em 5 a 64%. A tétrade inteira ocorre em 10 a 48%, enquanto 10% dos pacientes manifestam a doença apenas com hipersonolência (REIMÃO e LEMMI, 1996 e CHESSON e col., 1997).

A hipersonolência diurna é o principal sintoma, presente em 100% dos casos. Consiste na propensão para dormir em situações de relaxamento e deve ser diferenciada da fadiga ou cansaço (quando o indivíduo não dorme com facilidade quando inativo fisicamente). A pessoa pode sentir uma sonolência que atravessa todo o dia, ou que aumenta em momentos de monotonia e pode não conseguir se controlar (ataques de sono). Após um cochilo de 10 a 20 minutos, sente-se recuperada. Esse é um dos sintomas que mais podem atrapalhar os pacientes, por reduzir diretamente seu desempenho na escola ou no trabalho, estimular a incompreensão dos colegas e aumentar a probabilidade de acidentes, pois podem passar o dia com concentração e estado de alerta reduzidos. A cataplexia é o sintoma mais típico da narcolepsia e, no presente caso, foi de grande valor diagnóstico, aliada à boa resposta ao psicoestimulante. Pode ocorrer, também, em outras doenças como doença de Nieman-Pick, tumores mesencefálicos e de cataplexia familiar isolada. Trata-se da perda súbita, localizada ou generalizada e reversível do tono muscular durante o dia, de intensidade variável, sem perda da consciência, de duração breve (poucos minutos, nunca mais de meia hora), precipitada por emoções fortes (alegria, riso, choro, orgasmo). As alucinações hipnagógicas e hipnopômpicas ocorrem, respectivamente, na transição do adormecer e do despertar. São quase sempre visuais (embora também ocorram formas auditivas, táteis, olfativas, etc). Podem ser muito vívidas e complexas, tendo o caráter de sonhos e acontecendo em um estado de consciência vigil. Por vezes, os pacientes hesitam em falar dessas alucinações devido a constrangimento ou, até, com medo de serem considerados loucos. Pelo fato de que tais alucinações podem ser bastante floridas e complexas, alguns pacientes narcolépticos podem ser erroneamente diagnosticados como esquizofrênicos (DOUGLASS e col., 1993). Há, inclusive, a possibilidade de que cerca de 7% de pacientes diagnosticados como esquizofrênicos sejam, na verdade, narcolépticos (DOUGLASS e col., 1991). No caso em estudo, é bastante provável que os ruídos estranhos que o nosso paciente escutava correspondessem a essas modalidades de alucinação e reforçassem sobremaneira suas suspeitas auto-referenciais, por sua vez, dotadas de teor tipicamente depressivo.

A paralisia do sono é uma inabilidade de mover-se e falar por segundos a minutos durante o início e o fim do sono. Normalmente termina de forma espontânea ou com estímulos leves (toque, conversa), mas pode ser particularmente aterrorizante porque também é acompanhada de um estado de consciência clara. Os comportamentos automáticos ocorrem durante o dia e podem ser simples ou bastante complexos como dirigir um carro, conversar ao telefone, trocar as coisas de lugar e são acompanhados geralmente de um período de amnésia quanto ao episódio (REIMÃO e LEMMI, 1996 e ALDRICH, 1998).

Excetuando-se a cataplexia, praticamente todos esses sintomas podem aparecer nas diversas doenças que cursam com hipersonolência diurna (obstrução de vias aéreas superiores, hipersonolência idiopática, síndrome dos movimentos periódicos do sono, etc). Devido a isso, o diagnóstico de narcolepsia deve ser feito com muito cuidado quando não há fenômenos catapléticos (GUILLEMINAULT e col., 1994).

Além do quadro clínico, que é no mais das vezes sugestivo, para o diagnóstico é necessário o estudo polissonográfico do paciente. É consenso realizar uma polissonografia noturna, que fornecerá informações sobre a latência de sono (tem que ser menor que dez minutos) e a quantidade de episódios de sono REM de início precoce, ou seja, intrusivo, que tem que estar presente pelo menos duas vezes. A polissonografia noturna é importante, também, para excluir as outras doenças que cursam com hipersonolência diurna e coexistem, com frequência, com a narcolepsia (embora nunca sejam graves o suficiente para justificar os sintomas) (CHESSON, 1997). No dia seguinte à polissonografia, faz-se o Teste Múltiplo de Latência do Sono (TMLS), que deve mostrar uma latência média de sono menor que cinco minutos e dois ou mais episódios de sono REM de início precoce (EIPSREM). É preciso notar que a latência diminuída de sono e a ocorrência de dois ou mais EIPSREM também pode acontecer em quase todas as doenças com hipersonolência diurna, o que aumenta a importância da presença da cataplexia como sintoma discriminatório da narcolepsia (GUILLEMINAULT e col., 1994).

O tratamento inclui medidas farmacológicas (psicoestimulantes) e não farmacológicas (instrução e aconselhamento sobre a natureza da doença, estratégias como tirar pequenas sonecas durante o dia e ter um sono noturno regular de sete a oito horas por noite). Os psicoestimulantes (anfetaminas, metilfenidato, pemolina) levam a um estado de alerta e de vigilância aumentados, com redução da sensação de fadiga e aumento da performance em algumas tarefas, provavelmente por ação ligada a centros dopaminérgicos, possivelmente vias mesolímbicas e nigroestriatais. Têm eficácia de 65 a 85% em reduzir a sonolência destes pacientes, mas poucos estudos controlados avaliam sua eficácia. Acarretam diversos efeitos colaterais, como nervosismo, insônia, acatisia, cefaléia, náusea, dor abdominal, redução da libido, anorexia, mas, geralmente, em intensidade tal que não impede o tratamento. Como todas são drogas de abuso, o paciente deve ser orientado quanto aos riscos de dependência e aconselhado a fazer intervalos de tempo de interrupção da droga (como fins de semana). Há um novo medicamento em estudo, o modafinil, que parece não alterar a liberação dopaminérgica ou noradrenérgica, não tem os efeitos colaterais das anfetaminas e tem sido eficaz nos estudos duplo-cegos com pacientes narcolépticos (FRY, 1998).

Considerando-se a resposta terapêutica ao uso de metilfenidato, a presença de cataplexia e a idade de início dos sintomas, podemos supor que, de fato, esse paciente tivesse narcolepsia. Possivelmente, havia uma associação com apnéia obstrutiva do sono, embora não possamos determinar o grau de contribuição para a sonolência produzido por esta última condição clínica. No entanto, é preciso ter cuidado ao avaliar pacientes com queixa de sonolência excessiva diurna, pois as síndromes se sobrepõem com frequência e têm sintomatologia semelhante, embora, quando associadas à narcolepsia, quase nunca sejam graves o suficiente para explicar os sintomas. Além disso, os achados polissonográficos podem ser bastante parecidos. É necessário, portanto, uma avaliação clínica e neurológica cuidadosas, com propedêutica e avaliação criteriosa dos achados, pois as diversas condições clínicas têm prognósticos e tratamentos diferentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALDRICH, M.S.(1998). "Diagnostic aspects of narcolepsy". Neurology 50 (Suppl 1): S2-S7.
AVERBUCH, M.A. (1996). "Síndrome da apnéia obstrutiva do sono: quadro clínico e diagnóstico". Em: Reimão, Rubens. Sono: Estudo Abrangente. Editora Atheneu, São Paulo, pp. 295-307.
CHESSON e col. (1997). "The indications for polysomnography and related procedures". Sleep, 20(6): 423-487.
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DOUGLASS, A.B. e col. (1991). "Florid refractory schizophrenia that turn out to be treatable variants of HLA-associated narcolepsy". J Nerv Ment Dis 179 (1): 12-7.
DOUGLASS, A.B. e col. (1993). "Schizophrenia, narcolepsy and HLA-DR15, DQ6". Biol Psychiatry 34 (11): 773-80.
FRY, J.M. (1998). "Treatment modalities for narcolepsy". Neurology 50 (Suppl 1): S43-S48.
GUILLEMINAULT, C. e col. (1994). "Controversies in the diagnosis of narcolepsy). Sleep 17(8). S1-S6.
REIMÃO, R. e LEMMI, H. (1996). "Narcolepsia: quadro clínico e diagnóstico". Em: Reimão, Rubens. Sono: Estudo Abrangente. Editora Atheneu, São Paulo, pp. 280-289.
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