A FENOMENOLOGIA DAS VIVÊNCIAS DELIRANTES:

DOIS CASOS CLÍNICOS

Souza, G.F.J. *

*Médico psiquiatra

Preceptor da Residência de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da U.F.M.G.

UNITERMOS: Delírio, Fenomenologia, Transtornos delirantes, Transtornos de personalidade, Psicoses atípicas, Estados psicóides.

RESUMO:

O presente artigo pretende revisar o amplo conceito de delírio, submetendo-o às dificuldades naturais de sua caracterização fenomenológica naquelas condições psicóticas atípicas que, frequentemente, acometem pacientes portadores de transtorno borderline de personalidade. Para cumprir essa tarefa, o Autor apresenta dois casos clínicos, sendo que o primeiro corresponde a um transtorno delirante e o segundo a uma psicose atípica, que designa estado psicóide. Depois de rever os atributos clássicos das vivências delirantes presentes no primeiro caso clínico, o A. passa a analisar as características psicopatológicas do segundo, concluindo que, provavelmente, existe um spectrum fenomenológico e, talvez, nosológico que abrigaria desde as manifestações atribuídas às desordens de personalidade até aquelas próprias dos transtornos psicóticos.

1) INTRODUÇÃO:

Parece que a morfologia psicopatológica de muitos quadros psicóticos vem, atualmente, apresentando algumas variações no que diz respeito à natureza e à verdadeira multiplicidade de vivências anômalas relatadas pelos pacientes. Assim, através da pesquisa da literatura especializada e da análise de comunicações escritas e relatos verbais de outros colegas, além da nossa própria observação de centenas de casos ao longo de duas décadas de prática psiquiátrica cotidiana, constatamos que, não poucas vezes, o material psicopatológico que se nos apresenta mostra-se fenomenologicamente incaracterístico e atípico. Além disso, a observação da evolução clínica de muitos casos suscita dúvidas importantes quanto ao diagnóstico definitivo por força da própria metamorfose sintomatológica e das flutuações súbitas e imprevisíveis da intensidade psicopatológica das vivências, assim como da sua própria natureza ou caráter intrínseco.

Em diversas ocasiões, aquilo que aparentava ser uma vivência fenomenologicamente bem determinada e nitidamente delineada, de modo súbito transmuta-se e sobrepõe-se a outra categoria de vivências anômalas, confundindo decisivamente a formulação diagnóstica e, consequentemente, comprometendo a uniformidade da conduta terapêutica, sujeitando-a a mudanças constantes e nem sempre desejáveis. Em muitos casos não conseguimos discriminar, com segurança, se determinado juízo é, classicamente, deliróide ou delirante, se determinadas convicções, claramente inverossímeis e que irrompem em um certo momento da vida do enfermo, são fruto de um longo desenvolvimento anormal da personalidade ou se correspondem a um tipo de eclosão processual "circunscrita"(1). Em outros, deparamo-nos com vivências anômalas algo estranhas ao padrão clássico de registro fenomenológico, aparentando constituir-se mais em elementos clínicos resultantes da evolução incompleta e abortada do cortejo sintomatológico das psicoses endógenas tradicionais (23) do que a um material psicopatológico em princípio inclassificável e relegado a um esquecido escaninho taxonômico do DSM-IV sob o título "Transtorno Psicótico Sem Outra Especificação"(2). No que se refere a isso, é provável que a presença de tal escaninho diagnóstico, reservado para abrigar as ‘aparas’ semiológicas que não se encaixaram no interior dos outros moldes sintomatológicos típicos no desenrolar do exercício diagnóstico dos quadros psicóticos, de acordo com o DSM-IV, traga mais prejuízos do que vantagens para a prática psiquiátrica de maneira geral. Isso pode estimular – e é esse o grande problema do diagnóstico criteriológico – a cristalização de uma visão simplista e artificialmente estática e compartimentada do adoecer psíquico e empobrecer enormemente os recursos pessoais do médico na captação e apreensão empática das vivências mórbidas.

De qualquer maneira, parece que - ao lado daquelas enfermidades processuais típicas como a esquizofrenia, com os seus sintomas, subtipos e evolução clínica bastante característicos – atualmente, em nosso meio, abundam e multiplicam-se os quadros psicóticos atípicos e mistos, tais como certas formas clínicas esquizoafetivas acompanhadas de vivências e alterações do comportamento singulares e outras correspondentes a complicações psicóticas em pacientes portadores de transtornos de personalidade com características semelhantes.

Com vistas à posterior discussão teórica, ocasião em que discutiremos dúvidas e controvérsias em relação ao diagnóstico de alguns quadros, procurando caracterizar melhor alguns elementos semiológicos atípicos e ambíguos, passaremos, a seguir, à apresentação de dois casos clínicos que tivemos a oportunidade de atender no consultório médico.

2) RELATOS DE CASOS :

CASO I :
K. é um homem de trinta e um anos de idade, casado, cor branca, engenheiro agrônomo e que atualmente está trabalhando na área de vendas. Foi trazido pela esposa à consulta devido a um permanente estado de insegurança e nervosismo frente aos menores problemas. É educado e fala com desembaraço, fluidez, adequação e coerência a respeito dos sintomas que o afligem. Também é pessoa ativa e resoluta, com boa disposição para o trabalho. Considera-se ansioso e crê que a pressão do trabalho, o "stress" das vendas, especialmente de setembro a janeiro de cada ano, é a responsável pelo seu estado de tensão e ansiedade. Enquanto fala, seu semblante mostra-se algo contraído e sombrio, denotando preocupação e certa inquietação.

Relata que bebeu imoderadamente dos quinze aos vinte e nove anos e que a bebida lhe fazia mal, tendo, no entanto, conseguido parar completamente há cerca de dois anos. É homem impulsivo, sujeito a excessos alimentares e à prática desmedida de jogos de azar, características que são criticadas e desaprovadas pela esposa. No entanto, o casamento aparentemente é harmônico e o entendimento conjugal é bastante satisfatório. Diz que, frequentemente, surpreende-se com muita insegurança e indecisão para resolver as dificuldades do dia a dia e, nesses momentos, experimenta uma espécie de expectativa angustiosa e inquietante entremeada por sentimentos melancólicos. Contudo, não são visíveis os demais sintomas da constelação depressiva além de queixas específicas sobre a má qualidade do sono em algumas ocasiões.

No que diz respeito ao passado médico, K. informou que foi um menino hiperativo e, desde a adolescência, um jovem demasiadamente tímido que cedo recorreu ao álcool para sentir-se mais à vontade dentre outras pessoas.

No final da primeira consulta, minha impressão diagnóstica foi que se tratava de quadro atenuado de transtorno de ansiedade generalizada em personalidade com traços evitativos e temerosos e com flutuações distímicas. Receitei-lhe fluoxetina 20mg/dia e recomendei que retornasse dentro de um mês para reavaliação.

Passados trinta dias, K. retornou ao consultório com o semblante um pouco mais ameno, dizendo que havia melhorado um pouco. Com efeito, a qualidade do sono havia melhorado, assim como a ansiedade e insegurança haviam diminuído. Permanecia, no entanto, com o semblante um pouco carregado e circunspecto. Depois que falou sobre seus sintomas ansiosos, K., para minha surpresa, começou a contar uma série de fatos que haviam ocorrido há cerca de três anos, pouco antes de seu casamento e que o tinham intrigado muito.

Em resumo, ordenados todos os acontecimentos, os fatos narrados por ele podem ser descritos de acordo com o que se segue: há cerca de quatro anos, certa noite, tendo discutido com sua então noiva, saiu sozinho para "paquerar". Conheceu, então, certa garota que aceitou seu convite para "dar umas voltas". Como tivesse estacionado o carro em local ermo e tivesse tentado maior intimidade física com ela, eis que a moça o repeliu energicamente e abandonou o carro, correndo desabaladamente e desaparecendo do local. Aproximadamente um mês depois, recebeu um telefonema, supostamente do pai da garota que, após identificar-se, passou a repreendê-lo e ameaçá-lo. Ficou um pouco assustado no início, mas depois considerando que não havia feito nada grave, terminou esquecendo o incidente por completo após alguns meses.

Certo dia, decorrido um período equivalente a pouco mais de um ano, estando K. a dirigir sua caminhonete por uma estrada vicinal rumo a determinada fazenda para onde estava levando sua carga, sentiu ocorrer, subitamente, uma sequência extraordinária de fatos. De início, sentiu-se seguido e observado na estrada. Percebia que alguns carros o seguiam, a princípio lentos, mas depois o ultrapassavam muito rapidamente para estacionar logo depois, principalmente após algumas curvas. Os motoristas desses carros saíam dos veículos e postavam-se ao seu lado, parecendo despistar e disfarçar algo, ora simulando uma troca de pneus, ora parecendo detectar outro defeito mecânico, mas, de qualquer modo, evitando olhá-lo diretamente. K. sentiu-se, então, seriamente ameaçado. Percebia que a estrada, usualmente vazia e silenciosa, estava agora estranhamente animada e movimentada. Começou a entrar em pânico, até que resolveu deixar passar qualquer veículo que viesse em sua retaguarda, diminuindo bastante a velocidade. Então, quando conseguiu que todos o ultrapassassem, deu meia volta e rumou, em disparada, por um atalho, para determinada oficina, cujo dono conhecia e que era a única proteção que havia ao longo de toda a estrada. Lá chegando, observou, com espanto, que dois motoristas que haviam participado de sua perseguição estavam tranquilamente conversando com o dono da oficina. Num misto de raiva e sobressalto, mas controlando-se surdamente, aproximou-se e constatou que haviam indagado a respeito da localização de certa fazenda. "Para despistar", pensou. Quando os estranhos se foram, perguntou quem eram. "Parece que vão à fazenda X para fazer umas medidas...", respondeu o conhecido. Em suma, foram esses os fatos enigmáticos e extraordinários que sucederam há cerca de três anos e que deixaram tão forte impressão em K.

Após ouvir em silêncio toda a narrativa, perguntei-lhe se, além desse fato, já havia ocorrido outro acontecimento estranho e obscuro no qual ele fosse seu protagonista. Respondeu-me que sim, que há cerca de dez anos teve um relacionamento amoroso com uma mulher mais velha e pela qual se apaixonou. Pois bem, que a tal mulher era muito bonita, rica e vivia em companhia de uma empregada de há muitos anos, negra. Que após algum tempo, passou a desconfiar que existia um interesse sexual recíproco entre elas e que procuravam ocultar habilmente. Entretanto, durante certa ocasião em que as duas mulheres ficaram juntas por curto espaço de tempo no banheiro, teve a certeza de ouvir insinuações e palavras de elogio erótico, por parte da empregada, à sua namorada. De outra vez, ao beijá-la no pescoço, sentiu um odor forte e ativo em sua pele, "um cheiro próprio de pessoas de cor" e depois, quando, ardilosamente, deu um jeito de deitar-se em seu colo, percebeu, de forma muito nítida, que dali emanava o mesmo cheiro característico. As suspeitas transformaram-se em certeza quando, após levantar-se e passar à cozinha, deparou-se com a empregada que estava sentada, com os olhos semicerrados e "extremamente pálida". Tais evidências, segundo ele, eram suficientemente fortes para provar uma ligação amorosa entre as duas mulheres e isso o aborreceu tanto que terminou o namoro nesse mesmo dia, embora gostasse muito da parceira.

Com o passar do tempo esses fatos foram caindo no esquecimento mas, mesmo em relação à sua esposa, desde que eram namorados notava muitos "fatos estranhos" acontecendo entre ela e suas colegas de pensionato. Percebia, muitas vezes, episódios de "troca de olhares" sugestivos de interesse recíproco entre a noiva e alguma colega. Em outras ocasiões, notava, nitidamente algum outro modo de comunicação secretamente "codificada" entre elas.

Por exemplo, certo dia, ao ir lá buscá-la, notou que uma de suas colegas apontava insistentemente para seu relógio de pulso e olhava de modo sugestivo para ela, parecendo-lhe, sem dúvida, que isso representava a marcação disfarçada de um encontro íntimo. Desde essa época, segundo ele, apesar de nunca ter confessado claramente suas dúvidas e suspeitas à esposa, vem procurando "sondar" e investigar discretamente seu comportamento. Às vezes, lança alguma "indireta" e comenta algo sugestivo na sua presença mas, até hoje, ainda não obteve, por parte dela, uma "confissão" definitiva. Em determinados momentos vêm-lhe ímpetos de desmascará-la, mas consegue conter-se, mesmo porque gosta dela e a considera uma boa esposa. Atualmente padece de uma série de suspeitas, especialmente no que diz respeito a ela e sua colega de consultório, sentindo-se confuso com algumas coisas que percebe de modo esporádico. Entretanto, para seu alívio, a outra mulher vai transferir-se para outra cidade, separando-se em definitivo da esposa. K. fala tudo isso de maneira séria e grave, não duvidando, em nenhum momento, da verossimilhança de suas convicções. Diz, no entanto, que procura sempre não "deixar-se vencer" por essas impressões que tanto o atormentam e humilham.

CASO II :
M. é uma mulher de vinte e três anos de idade, solteira, cor branca, professora do primeiro grau e que me procura pela primeira vez em junho de 1985. Levada pelos pais à consulta, ouve-os dizer na minha presença que ela vem apresentando mudanças em seu comportamento desde o ano de 1983. No mês de dezembro daquele ano, viram-na, bastante transtornada, dizer que "o mundo iria acabar-se em fogo". Naquela ocasião ingressou em tratamento ambulatorial psicoterápico e medicamentoso intensivo durante quatro meses em uma clínica, tendo usado associação de bromazepan e maprotilina em doses baixas, havendo remissão completa da crise aguda. Entretanto, desde o mês de janeiro de 1985, M. mostrava-se diferente, instável e caprichosa. Exigia que os pais a levassem aos diversos lugares "por medo e vergonha", incluindo a escola onde trabalhava e na qual sentia que as pessoas a observavam incessantemente. Manifestava insônia rebelde e a luz de seu quarto permanecia acesa a noite inteira. No decorrer da consulta, quando tive oportunidade de conversar a sós com a paciente, observei que, apesar de uma leve hostilidade que exprimia, mantinha, aparentemente, sua dimensão afetiva íntegra e preservada. Parecia pessoa inteligente e o contato verbal era muito bom, expressando-se de maneira fluente, detalhada e precisa. Contou-me que na época na qual sofreu a crise aguda, em dezembro de 1983, acreditava "que estava prevendo as coisas", sendo que no dia trinta e um de dezembro daquele ano foi tomada por uma forte crise de ansiedade porque cria que iria suceder alguma coisa grave e de grandes proporções. Começou a ter algumas intuições apocalípticas de fim de mundo e, com o passar do tempo, ficou restrita ao seu quarto, pois era o único lugar onde se sentia mais ou menos protegida. Na ocasião, tinha a convicção de que o mundo estava prestes a ser invadido e destruído por um oceano de fogo, que seu corpo iria desaparecer e sua alma fluir, dissipar-se por inteiro.

Apesar da melhora, M. relata que ainda sente, frequentemente, medo e ansiedade. Crê que suas colegas de escola a observam e comentam coisas a seu respeito. Em todos os lugares onde vai, sente-se observada e envergonhada. Atualmente, tem vontade de ficar sozinha, de afastar-se de todos, não confia mais em ninguém.

Meu diagnóstico foi de um quadro psicótico breve e indiferenciado, tendo receitado haloperidol (5mg/dia) associado a biperideno (2mg/dia) e proposto acompanha mento psicoterápico semanal.

A partir de então, ao longo dos últimos treze anos, até os dias de hoje, tive a oportunidade de observar, de perto e minuciosamente, a evolução clínica dessa moça graças à sua férrea adesão ao tratamento e ao seu enorme desejo de curar-se. No início, ela sentiu-se melhor com o neuroléptico prescrito mas, com o passar das semanas, sobrevieram desânimo, fraqueza muscular, inquietação e insônia, tendo sido obrigado a substituir o haloperidol pela trifluoperazina(5mg/dia), com sucesso. Desde o começo do tratamento psicoterápico, M. passou, pouco a pouco, a revelar-me as dúvidas cruciais e os pensamentos que a perturbavam continuamente. Relatou ter sido uma criança aparentemente sem maiores problemas de saúde, embora muito tímida e arredia, preferindo brincar sozinha durante todo o tempo. A menarca ocorreu aos treze anos de idade. Após esse evento, principiou sentir muita vergonha, especialmente de seu corpo. Julgava-se gorda e chegou a manifestar muitos episódios de bulimia (cometia abusos alimentares e provocava vômitos depois). O interesse por rapazes sempre existiu, mas a timidez excessiva fez com que somente tivesse um curto namoro já aos dezoito anos de idade.

Continuou considerando-se feia e desajeitada, notando que esse tipo de constrangi mento aumentava a cada dia. Por volta dos vinte anos, começou a sentir-se especialmente ansiosa e apreensiva, surgindo, em sua mente, suspeitas e desconfianças vagas e indefinidas. Uma ocasião, estando ela ministrando aulas em uma escola que se situava próxima de uma fábrica, na região industrial da cidade, foi tomada, subitamente, pela certeza de que haveria um "escapamento de gases" letal e generalizado. Tal convicção, segundo ela, havia sido precedida pela percepção do "cheiro terrível dos gases venenosos que se espalhava pela escola". Como estivesse muito ansiosa e temerosa, conseguiu uma licença médica e afastou-se temporariamente do trabalho. Em casa, para passar o tempo e, também, para tranquilizar-se, começou a ler um livro de ficção chamado "Eram os Deuses Astronautas?", um conhecido sucesso bastante popular dos anos setenta. Então, nesse momento preciso, iniciaram-se suas convicções anômalas e algo apocalípticas de que "o mundo iria terminar em fogo".

Todavia, M., em seus relatos, contrastando com suas vivências psicóticas, parecia mais uma paciente neurótica, com um componente histriônico importante, ansiosa, inquieta, sugestionável, impressionável e sujeita a mudanças bruscas do estado de ânimo. Era pessoa muito responsável e compromissada com os seus afazeres e obrigações, manifestando altivez e orgulho e relatando suas desventuras com a face crispada e um brilho de ódio no olhar. Denotava, ao longo do tempo, desconfiança, rispidez, ironia, desalento, mau humor e, raramente, afabilidade e benevolência. Disse, ainda, que na época de sua primeira crise, ocasião na qual tratara-se em uma clínica constituída por um médico e vários psicólogos, principiou a desconfiar que os profissionais achavam que ela era "homossexual". Havia, depois, percebido nitidamente, de acordo com o modo pelo qual as psicólogas tratavam-na, através de certas insinuações e gestos sutis, que, sem dúvida, ela era homossexual. Isso, para ela, era algo absolutamente intolerável e inadmissível, mesmo porque, em nenhum momento de sua vida, segundo suas palavras, havia experimentado algum desejo por outras pessoas do mesmo sexo. No entanto, sucediam-se certas percepções claramente anômalas da paciente quando freqüentava lugares públicos.

Certa vez, estando no supermercado com o pai, sentiu-se observada e criticada pelos circunstantes e ficou tão envergonhada que teve que sair de lá precipitadamente. Em outra ocasião, quando entrou em um ônibus, notou que dois rapazes que estavam conversando, após olhá-la de soslaio, comentaram o seguinte: "hoje em dia a gente não sabe mais quem é homem e quem é mulher". Acreditava, convictamente, que as pessoas criticavam seu corpo, com ênfase para seus pés que julgava grandes e disformes, ou seja, caracteristicamente "masculinos" e, aos vinte anos, tentou cirurgia de joanetes para "melhorar a aparência" dessa parte do corpo. Quando olhava-se no espelho, sentia-se mortificada, pois parecia-lhe que seu corpo possuía formas masculinas, assemelhando-se aos contornos caricaturais de um "travesti", segundo suas próprias palavras. Isso atormentava-a particularmente, deixando-a completamente arrasada e sem forças. Além disso, não raro, vinham-lhe, despropositadamente, ímpetos fantasiosos de infligir lesões aos seus próprios genitais.

Tais convicções não deixavam de ser bizarras e curiosas, caso se considerasse o fato de que M. era uma mulher de traços delicados, alta e esguia. Entretanto, todas essas vivências anômalas continuaram a manifestar-se incessante mente, persistindo até hoje, apesar de todas tentativas terapêuticas efetuadas. Nos momentos de crise usava neurolépticos em baixas doses e, se necessário, pois frequentemente apresentava sintomas depressivos importantes, antidepressivos.

Com o passar do tempo, notei que as pioras ocorriam, muitas vezes, durante os períodos pré-menstruais, dissipando-se completamente em seguida. A paciente sempre relutou bastante em aceitar terapêutica com carbonato de lítio e nunca usou o medicamento por mais de um mês, insistindo na alegação de ganho de peso. Atualmente, vem aceitando usar, até o momento, ácido valpróico (1g/dia) associado a clomipramina (75mg/dia) com visível melhora geral, mostrando-se mais estável e tranquila, embora persistam idéias tênues de homossexualidade, raras e episódicas. Quanto ao trabalho, depois de provocar muitos atritos no ambiente profissional devido às desconfianças e suspeitas infundadas, está licenciada há alguns meses devido à sua doença. Nas ocasiões de desentendimento com as colegas e diretoras de escola tornava-se especialmente querelante e reivindicativa, escrevendo longas cartas denunciando supostas irregularidades administrativas e hipotéticas injustiças sofridas. Casou-se há alguns meses e está se formando, após muitas dificuldades, em Psicologia.

Há vários anos vem cometendo abusos esporádicos de benzodiazepínicos, notadamente nas ocasiões em que briga com o marido ou quando ocorre intensificação da instabilidade afetiva. Vez por outra, M. ainda vivencia pensamentos de homossexualidade e de que está sendo observada, além de crer, por vezes, que muitas pessoas acham e "comentam" que o marido também "tem jeito de homossexual". Recentemente, vivenciou falseamento perceptivo – ou alucinação hipnagógica (?) - em relação ao cônjugue, acreditando que, através da percepção de certos movimentos rítmicos do leito, ele se masturbava enquanto dormia à noite ao lado dela, apesar dos dados da realidade factual, confrontados posteriormente, desmentirem tal impressão. Nessa ocasião usou pimozide (2mg/dia), mas não o tolerou devido à sonolência e sedação. No mais, M. mostra-se satisfeita e, na medida do possível, feliz, relacionando-se sexualmente bem com o marido, exceto naqueles breves períodos em que é atormentada pelas vivências anômalas e durante os quais apresenta-se desconfiada, irritável e taciturna.

3) DISCUSSÃO :

Em relação ao primeiro caso clínico, podemos afirmar que K. padece provavelmente, de acordo com o DSM-IV (2), de um Transtorno Delirante.

O primeiro episódio da doença ocorreu cedo, abruptamente, por volta dos vinte anos de idade, mas foi bastante característico, considerando-se sua peculiar fenomenologia, compatível com um subtipo clínico de delírio celotípico (delírio de ciúmes). São comuns, nesses casos, falseamentos ilusórios da percepção e da memória, além de vivências delirantes que podem ser, como no caso em estudo, fugazes, mutáveis e pouco sistematizadas (1). Quanto a isso, podemos dizer que nosso paciente K. vivenciou, com certeza íntima irrefutável, a convicção de que sua namorada estava se relacionando com outra mulher, mais precisamente com sua empregada. As "provas", as "evidências" incontestáveis, segundo ele, consistiram na apreensão de alguns "fatos" do dia a dia e que, para nós, constituem-se em fragmentos de falseamentos ilusórios da percepção, vivências e percepções delirantes. Assim, as frases maliciosas, os olhares cheios de intenções obscuras, a "palidez" cutânea que surge depois de um suposto orgasmo, tudo isso concatena-se de modo absolutamente lógico e ordenado para o paciente, passando a alimentar a significação de novas convicções delirantes.

Possivelmente, além das vivências delirantes que experimentou, é provável que K. tenha apresentado raras alucinações, no caso em pauta, de natureza olfativa. Parece-nos que, ao falar de "cheiro penetrante, próprio de pessoas de cor", K. referiu-se a uma vivência dotada de alto grau de frescor sensorial, cujo teor assemelha-se mais a uma experiência perceptiva nova do que a um falseamento ilusório da percepção. Ademais, vivências alucinatórias não são tão incomuns durante a evolução clínica dos transtornos delirantes (3).

No que se refere aos outros episódios delirantes de K., podemos dizer que os mesmos elementos psicopatológicos já vistos compuseram e emolduraram a trama fenomenológica específica de cada um deles. Após sua primeira ocorrência psicótica, K. apresentou um episódio delirante persecutório agudo, constituído por percepções delirantes maciças, tendo sido aparentemente desencadeado por circunstâncias emocionais estressantes, de ameaça e de perigo. Em relação às vivências anômalas experimentadas por K., vale a pena lembrar que o delírio origina-se de uma profunda alteração da capacidade de julgamento ou ajuizamento, dando lugar a convicções ou idéias errôneas, falsas e distorcidas. Desse modo, o delírio é, essencialmente, uma convicção ou juízo anômalo, uma espécie de premissa falsa da qual vão se sucedendo conclusões também falsas, desdobramentos inverídicos cujas principais características são a incorrigibilidade, crença íntima inabalável e inverossimilhança do conteúdo (4,5).

Depois do episódio psicótico persecutório, ou mais ou menos na mesma época, parece que K. desenvolveu uma variante de delírio celotípico em relação à esposa que vem se arrastando até hoje de maneira crônica e intermitente. Assim, os mesmos elementos psicopatológicos que já vimos anteriormente, de tempos em tempos, parecem multiplicar-se e intensificar-se em suas vivências, consolidando suspeitas, falseamentos mnêmicos, perceptivos e os juízos anômalos experimentados anteriormente. Aparentemente, de acordo com os seus relatos, K. parecia nutrir grande convicção íntima em relação à verossimilhança de suas vivências anômalas, podendo-se dizer que sua crença íntima nelas mantinha-se praticamente uniforme e sem flutuações visíveis, exceto naquelas ocasiões de exacerbação subaguda do quadro clínico.

Poderíamos interrogar, no caso de K., uma associação entre alcoolismo e o quadro delirante, considerando-se o seu relato de abusos alcoólicos desde a adolescência até há dois anos atrás. Quanto a isso, JASPERS (1) afirma que KRAFT-EBING encontrou delírio celotípico em 80% dos bebedores que ainda mantinham atividade sexual, explicando sua relação com as conseqüências somáticas e mentais do abuso alcoólico (aumento da libido concomitante ao decréscimo da potência sexual, dificuldades conjugais, menosprezo da mulher, etc.). Ainda, que o delírio originar-se-ia de uma maneira combinada, considerando-se vários fatores em sua gênese, tais como comentários fortuitos e inocentes, a peculiaridade especial da afetividade do alcoolista, presença de demência, uma certa deterioração e incontinência sexual e fundamentação débil do juízo. Além disso, seria possível, com a suspensão do álcool e manutenção do estado de abstinência, obter-se, senão a cura, uma melhora satisfatória que, contudo, poderia ser interrompida por irrupções intercorrentes do delírio (1).

No entanto, no caso de K., parece que os abusos alcoólicos eram esporádicos e se prestavam a diminuir a ansiedade social e timidez. Não detectei, durante a entrevista, dados que pudessem comprovar períodos importantes de intoxicação ou abstinência sintomáticos. Ademais, não havia sinais ou evidências de comprometimento mental, somático, social, ocupacional ou existencial resultantes de uso prolongado e maciço de álcool. Dessa maneira, parece-nos correto neste caso falar, segundo o DSM-IV, de um Transtorno Psicótico Primário (Transtorno Delirante) ao invés de um suposto Transtorno Psicótico Induzido por Substância com Delírios (2).

Em relação ao diagnóstico diferencial, torna-se necessário assinalar que há mais ou menos vinte anos, vêm sendo intensamente investigadas as relações nosológicas entre os transtornos delirantes, as esquizofrenias e as doenças afetivas (3,6,7,8,9,10,11). Desde a época de KRAEPELIN, alguns autores ou consideram os transtornos delirantes como formas clínicas de doença afetiva ou como formas ‘brandas’ de esquizofrenia. Os trabalhos de pesquisa da atualidade parecem apontar para a autonomia dos transtornos delirantes, coincidindo com a concepção de KRAEPELIN de separar a paranóia, como entidade clínica, da ‘dementia präecox’ e da loucura maníaco-depressiva. Os sólidos trabalhos de KENDLER (6,7,8,9,10) vêm concluindo que os fatores ambientais podem ser mais importantes do que aqueles genético-constitucionais na etiologia dos transtornos delirantes, ao contrário das esquizofrenias, fato que já era reconhecido por KRAEPELIN (8). Por outro lado, a personalidade pré-mórbida dos pacientes portadores de transtorno delirante, em estudos retrospectivos, parece constituir-se, em sua maioria, de traços de extroversão, tendências dominadoras e hipersensitivas, ao contrário dos pacientes esquizofrênicos, cujas personalidades pré-mórbidas exibem, predominantemente, traços esquizóides e tendência para a introversão e submissão(7). Tal evidência já havia sido observada por JASPERS(1) que, analisando minuciosamente as histórias clínicas de dois pacientes portadores de delírio celotípicoS , constata que "... as duas personalidades apresentavam um complexo sintomático que é comparável ao hipomaníaco: auto-afirmação constante jamais denegada, fácil excitabilidade, tendência à cólera ou ao otimismo ou a ocasionais contradições e constante atividade. Prazer na atividade..." O mesmo autor, após concluir que as vivências anômalas desses pacientes eram fenomenologicamente "incompreensíveis" e inderiváveis, pois não provinham de um "desenvolvimento" ou hipertrofia de traços importantes de suas personalidades, postula que a doença corresponderia a um "processo circunscrito", considerando-se a preservação integral da personalidade mesmo após anos de evolução clínica (1).

Quanto ao caso de M., parece acertado dizer que, segundo o DSM-IV (2), essa paciente possui traços importantes do Transtorno ‘Borderline’ de Personalidade, tais como instabilidade afetiva devido a uma acentuada reatividade do humor, propensão a transtornos de controle de impulsos, perturbação da identidade e fantasias de auto-mutilação genital. Além disso, preenche, também, critérios para o Transtorno Dismórfico Corporal, apesar do referido manual referir que alguns pacientes ‘borderline’ podem desenvolver sintomas psicóticos caracterizados por alucinações, distorções da imagem corporal e fenômenos hipnagógicos (2).Em relação a isso, vários autores mostram-se unânimes quanto à inespecificidade dos sintomas psicóticos apresentados por esses pacientes (12,13,14,15,16,17,18). Há, ainda, evidências importantes de frequente comorbidade e parentesco nosológico (2,19) do T. ‘Borderline’ com os Transtornos de Humor.

No que se refere aos relatos dessa paciente, poderíamos indagar se suas vivências delirantes coincidem com os padrões rígidos exibidos pelos delírios clássicos, ou seja, crença íntima, incorrigibilidade e inverossimilhança, como vimos há pouco.

A resposta é não caso consideremos as constantes flutuações, ao longo de um largo espectro de certeza subjetiva, de sua convicção íntima quanto à verossimilhança das vivências. Mesmo no primeiro e marcante episódio psicótico, suas vivências delirantes, se por um lado eram fenomenologicamente "incomprensíveis" e inderiváveis no sentido jasperiano (1,5), correspondendo a algo "novo" e inusitado, por outro eram parcialmente refutáveis e flexíveis como um todo, fazendo com que a autocrítica à sua verossimilhança oscilasse enormemente. Isso não ocorre com o delírio primário esquizofrênico que mantém, rigidamente, aqueles atributos de modo constante e permanente. M. experimentava, ao longo do tempo, uma transição gradual desde juízos sobrevalorizados, deliróides até aqueles delirantes, além de falseamentos ilusórios perceptivos, mnêmicos e, muito provavelmente, alucinações. Por outro lado, numa visão clínica evolutiva, podemos observar, panoramicamente, uma espécie de desenvolvimento paranóide da personalidade - ou, talvez, um processo "circunscrito" - no sentido de JASPERS (1), que culminou sintomatológica mente, de forma aguda, no primeiro episódio psicótico da paciente, mas que continuou se manifestando ao longo de sua existência de maneira crônica e intermitente. Desse modo, mantinha, continuamente, um comportamento basal ativo com tendência à reivindicação e à beligerância e, nos momentos de exacerbação do quadro clínico, tomava algumas atitudes que lembravam a descrição dos pacientes pseudo-querelantes de KRAEPELIN (1). Como se isso não bastasse, mesmo durante os períodos intercríticos da doença, nos quais se mantinha aparentemente assintomática, M. demonstrava certa dúvida em relação à verossimilhança de algumas "certezas" penosas que a atormentavam.

Por exemplo, nesses períodos, apesar de não notar que as pessoas a olhavam ou comentavam algo desabonador sobre ela, permanecia considerando que o podiam continuar fazendo "às escondidas". Desse modo, poderíamos vislumbrar, levando-se em conta as nuances fenomenológicas da evolução clínica de M., um tipo de transtorno delirante subagudo ou minor, talvez frustro e malogrado, mas que, da mesma maneira que as formas clínicas clássicas e acabadas, progrediria inexoravelmente ao longo da vida da paciente, acarretando-lhe inumeráveis prejuízos e sofrimentos.

Ao longo desses últimos treze anos tive a oportunidade de observar e analisar, minuciosamente, uma ampla gama de vivências anômalas relatadas por M. e, em minha opinião, a maior parte delas era, do ponto de vista fenomenológico, atípica e incaracterística. Em muitas ocasiões, queixava-se que, subitamente, sentia-se "estranha", "ridícula", percebia que as pessoas achavam que era "homossexual" e "travesti". Nesses momentos, o material psicopatológico assemelhava-se a fenômenos obsessivos, considerando-se o seu caráter intrusivo e persistente. Em outros, as vivências anômalas pareciam-se com percepções delirantes, como, por exemplo, em um dia que solicitou consulta de urgência, dizendo que lhe havia ocorrido uma "grande revelação", pois, ao chegar em um determinado lugar, percebeu que todas as pessoas, através de "troca de olhares" e "certos gestos", "confirmaram" a sua "homossexualidade".

No mais, sentia "confusão e incoerência de sentimentos", além de "inveja, desconfiança, ódio, irritação e angústia", segundo suas próprias palavras, além de se intensificarem, em alguns períodos, episódios de despersonalização e desrealização. À primeira vista, é razoável supor que todas essas vivências relatadas por M. sejam aparentadas com aqueles conhecidos sintomas schneiderianos (20) que costumam estar presentes nas psicoses esquizofrênicas, dada a sua semelhança quanto à estrutura fenomenológica. Assim, as percepções delirantes, as ocorrências delirantes, as outras pseudopercepções, sentimentos de perplexidade e estranheza (20,21) e o sintoma bleuleriano (22) de ambivalência podem ser identificados nos relatos de M., mas de uma forma incaracterística e rarefeita, como se fora uma expressão sintomatológica, por algum motivo, frustra e malograda.

É interessante observar que a fenomenologia das vivências de M. diferia, em profundidade e gravidade, daquela correspondente ao verdadeiro delírio primário (5), matéria prima das ocorrências delirantes (wahneinfall) (20) e que é visto usualmente em pacientes esquizofrênicos. Nele, assim como nas percepções delirantes típicas (wahnwahrnehmung) (20,24), há um caráter de "revelação", de "algo comovedor, transcendental, um sinal, uma mensagem procedente de outro mundo" (20). Por outro lado, as vivências anômalas relatadas por M. eram descritas como algo que parecia ser, mas, nunca, como alguma coisa que, definitivamente, o era. A convicção íntima em relação à verossimilhança das vivências flutuava nitidamente com o decorrer do tempo, por vezes alternando-se em maior ou menor intensidade, mesmo ao longo de um só dia. Além disso, as narrativas de M. eram carregadas de dramaticidade, vinham acompanhadas de crises de choro, de grandes gestos, mímica vivaz e de emoções intensas, de raiva, angústia e inconformismo. Entretanto, a morfologia psicopatológica dos fenômenos psicóticos dessa paciente configurava-se como um conjunto de esboços fenomenológicos daqueles sintomas clássicos e completos, assemelhando-se a algo mórbido e mais grave mas que, por alguma razão, não teria sido inteiramente deflagrado, manifestando-se, consequentemente, de forma incaracterística e atípica. Alguns aspectos da morfologia clínica do quadro mostravam-se tão mutáveis e fenomenologicamente tão indefinidos que, por outro lado, poderiam consistir na expressão psicopatológica multiforme de um verdadeiro spectrum nosológico, partindo daquilo que se considera transtorno de personalidade até um transtorno delirante minor. Em outra oportunidade (23) já dissemos que, em nossa observação, as vivências anômalas predominantes nos quadros psicóticos atípicos consistem, fenomenologicamente, em sintomas frustros, malogrados ou abortados de expressões psicopatológicas próprias e características de psicoses bem definidas, oriundas, por sua vez, de duas orientações endógenas básicas, seja esquizomorfa ou afetiva. Naquela ocasião, propusemos a adoção do termo estados ou transtornos psicóides (23) para designar quadros clínicos psicóticos marcados por acentuada atipia e indefinição fenomenológica. Isso posto, parece razoável supor que o quadro clínico de M. corresponde à deflagração incompleta e simultânea das duas orientações genéticas já citadas, considerando-se a eclosão periodicamente cíclica de sua sintomatologia esquizomorfa de caráter subagudo e uma evolução clínica que, se por um lado não deixa de comprometer a unidade de sua existência, por outro mostra-se bem mais benigna e complacente do que aquela própria das formas clínicas mais definidas e caracterizadas dos transtornos psicóticos em geral.

Essas concepções teóricas talvez possam ajudar o raciocínio clínico na formulação diagnóstica na prática médica do dia a dia e, consequentemente, facilitar a adoção precoce de terapêuticas capazes de aliviar os sintomas de pacientes acometidos de transtornos psiquiátricos complexos e resistentes. É nossa opinião que somente através da apresentação detalhada de casos clínicos e sua discussão criteriosa, poderemos esclarecer muitos pontos obscuros inerentes às fronteiras nosológicas em Psiquiatria, contribuindo, desse modo, para dissipar uma visão involuntariamente estática e compartimentada do adoecer psíquico. Em relação a isso, consideramos proveitoso citar aqui, finalizando, algumas esclarecedoras palavras de KRAEPELIN a propósito da análise de casos clínicos (1): "A desagregação conscienciosa das formas clínicas em suas variações mais diminutas e aparentemente insignificantes constitui a etapa prévia indispensável na aquisição de imagens nosológicas de enfermidades realmente unitárias e que correspondem à sua verdadeira natureza."

SUMMARY:

This paper reviews the broad concept of delusion by subjecting it to the natural difficulties of its phenomenological features for those atypical psychoses usually manifested by patients with borderline personality disorder. In order to achieve this aim, the author presents two clinical cases. The first one refers to delusional disorder and the second case is about atypical psychosis wich is referred to as psychoid state. After reviewing the classical features of the delusional experiences described in the first case, this study analyses the psychopathological characteristics of the latter and comes to the conclusion that there is probably a phenomenological spectrum, and perhaps nosological, wich consists of manifestations ranging from those of personality disorder to the ones typical of psychotic disorders.

Key Words: Delusion, Phenomenology, Delusional disorders, Personality disorders, Atypical psychoses, Psychoid states.

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